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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A função do educador em uma casa lar: reflexões acerca de uma prática

 

 

Gabriel Bartolomeu

Graduando em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Oficiante em Psicanálise no Núcleo de Estudos em Psicanálise e Educação. Contato: gbartolomeu@gmail.com

 

 

Enquanto serviço de acolhimento institucional provisório, a casa lar é destinada a crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por determinação judicial, em situações de abandono ou em que a família ou responsável esteja impossibilitado de exercer sua função - por exemplo: violência e pobreza (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Conselho Nacional de Assistência Social, 2009).

Tal configuração de acolhimento em instituição visa superar problemáticas do abrigo. Enquanto o abrigo se caracterizava como um ambiente em que até cem crianças e adolescentes poderiam estar, em uma casa lar o máximo permitido são dez. A Casa Lar, ao contrário do abrigo, pretende ser um ambiente familiar, com um funcionamento o mais próximo possível de uma casa comum (SCHOGOR, 2003).

Dentre os profissionais que compõem a equipe deste estabelecimento temos o Educador Social. Assim, pretendo aqui apresentar algumas reflexões construídas a partir de minha experiência nesta função no trabalho com dez adolescentes e uma criança, devendo ser encarada não como uma receita, mas como um testemunho deste trabalho, que seria o de contribuir para que sujeitos, ainda não adultos, não inteiramente donos do seu nariz, posicionem-se como responsáveis, mantenedores do laço social e construtores culturais.

Superar entraves oriundos de eventual marginalização dos sujeitos colocados em abrigos é difícil. Ainda mais diante de proposições de atendimento que buscam extirpar um mal que assola a sociedade abrigando, ou seja, as crianças e adolescentes pagam o pato por uma configuração familiar fruto do mal que é um desamparo social. Então, ouvimos os vizinhos da casa lar bravejarem desesperadamente: "tirem estes meninos daqui, depois que mudaram para cá minha paz foi embora!". Aqui ou acolá todos parecem gritar a mesma coisa, mesmo quando os adolescentes não abrem a boca.

Um dos entraves que carrega tal modalidade de atendimento: a marginalidade de sua existência - mesmo em bairros centrais. É neste contexto que a casa lar se insere, e que resistentemente deve emergir como uma instituição educativa, devendo estar configurada como um contexto de promoção de experiências culturais e sociais ao processo de subjetivação (inspiro-me em Zimmermann (2007) para apresentar tal concepção de instituição educativa, embora à autora não apresente discussões específicas sobre casa lar). Ambiente estruturado e funcionando em uma lógica que permita aos atendidos terem a chance de se constituírem do ponto de vista cultural, sendo capazes de se inscreverem como sujeitos inseridos na sociedade.

Em meio a tudo isto está também o Educador Social, que no contexto em que trabalha deve se posicionar, não ignorante ou ingenuamente. Entendo que para não ser mais um a marginalizar é necessário algum saber, que dividirei aqui em três e que estão longe de serem os únicos: saber sobre o ineducável, o educável e a transferência amorosa (JACOB et al, 2008). Em outras palavras: a (im)possiblidade de se educar e o veículo motor da educação.

O educador disposto a se colocar frente à criança ou adolescente como outro representante do Outro barrado tem que atentar para a educação, para o ato educativo como um dos impossíveis freudianos. Para Freud (1974b) a educação é uma das profissões em que se pode estar seguro que se chegará a resultados insatisfatórios. Ainda bem! Pois, chegar a resultados satisfatórios poderia implicar satisfazer somente o educador e não ao educando. Ainda mais em instituições que facilmente podem sucumbir a uma configuração tal como as instituições totais descritas por Goffman (1999). Aí poderíamos não ter sujeitos - o que temos em uma Casa Lar - mas, assujeitados.

Segundo Amigo (2001), este impossível freudiano diz da impossibilidade de educar todo o real. Há e sempre haverá algo do real intocável, inapreensível, que as palavras do educador e do educando jamais atingirão. Por mais que se ofereça palavras, olhares, vozes e toques que pretendam localizar e orientar o educando no caminho destinado ao estar em sociedade, algo irá escapar. Por mais que as regras existam, que combinados sejam feitos ("tudo bem, você pode ir a festa, mas chegue em tal horário") algo vai sair fora do esperado ("mas isto são horas? Você disse que chegaria tal horário!"). Combinados ligados a respeito aos colegas da casa, a ir a escola e a fazer os deveres em algum momento irão falhar. Falha que necessariamente deverá ser suportada pelo educador, e encarada como uma falta que também faz parte do processo educativo. Não suportar o resto que escapa à educação pode levar o educador a um sentimento de impotência ou a tirania: "eles não tem jeito mesmo, então deixa pra lá"; ou: "vocês vão fazer exatamente o que estou mandando, senão...".

O sentimento de impotência e a tirania podem levar a posicionamentos delicados, elevando a extremos o descaso e a dominação. Colocar-se tiranicamente em uma relação é tentar excluir o sujeito que ali há, é impor, muitas vezes sobre o discurso do amor e do bem, a alienação do educando de construir relações entre si e os objetos. Se o educando não tem a possibilidade de falhar, de faltar, por que as coisas têm que sempre estarem organizadas, nos seus devidos lugares, ele não poderá se articular frente às dificuldades, as inconsistências da vida. Desorganizar é colocar em xeque o que dado está, para numa reorganização significante produzir novos sentidos. Tiranizar é manter o educando refém numa situação de guerra, mas não é disto que se trata o contexto de uma casa lar e, sim, de produção de subjetividade.

O Educador Social precisa atentar para o risco de se colocar como Outro absoluto, tomando os educandos como puro objeto de gozo: dorme a hora que eu quero, come o que eu quero, faz o quê e quando eu quero, não dando espaço para o desejo, exercício do querer enquanto produtor de subjetividade. É preciso tomar cuidado no exacerbamento das regras, que pode levar o educador a acreditar que o cumprimento destas é a salvação, a resolução do inapreensível que implica toda educação, ocorrendo a desresponsabilização de quem educa acerca do processo de construção de sujeitos críticos e criativos.

A função do Educador Social consiste em um posicionamento através do qual suas ações sejam de caráter educativo. O educador fala e responde de um lugar: daquele que pretende oferecer aos educandos a possibilidade de construírem-se enquanto sujeitos responsáveis. Ele exerce sua função no dia a dia, na vida cotidiana: na hora de acordar, do café, de escovar os dentes, de tomar banho, de ir à escola, de fazer o dever de casa, do educando sair de casa com os amigos ou namorado (a). E neste contexto não existe um método pronto a ser aplicado, o que existe é uma práxis, uma teoria que norteia uma prática que se reinventa a cada momento, com cada educando.

O Educador Social deve encarnar a Lei enquanto outro na relação com os educandos. Para tanto, o educador deve estar submetido também a esta Lei, operador simbólico que possibilite um posicionamento organizador (educacional) dos discursos dentro da instituição. Ser capaz de escutar o que os educandos têm a dizer, sejam suas histórias de vida, acontecidos, reclamações, divagações, xingamentos. Sabendo receber o que se ouve numa escuta que em parte é uma hesitação - além do que ele diz, o que ele está dizendo -, em outra um adiantamento - é uma resposta ao que ele disse e ao que ele quis dizer. E seria interessante compreender o quanto seu posicionamento é uma resposta a seus interesses pessoais ou aqueles do educando, ou seja: saber da extensão da contratransferência de sua escuta, suportada na relação transferencial com o educando. Para isto, a supervisão e análise pessoal revelam a possibilidade do educador se distanciar e olhar a partir de outras perspectivas as relações estabelecidas.

Assim, surge uma questão ligada ao manejo da relação transferencial entre educador e educando: em que lugar ele nos coloca e nós os colocamos? Questão imprescindível de ser colocada e, de certa maneira, respondida na relação que estabelecemos. Segundo Lacan (2003), o sujeito é suposto pelo significante que para outro significante o representa. Talvez a partir disto possamos afirmar que é o outro quem tentará ditar o personagem que iremos interpretar na cena consigo. São os educandos que se posicionam na tentativa de remontar um jogo de repetição, no qual ocupamos transferencialmente o lugar de objeto: podemos ocupar vários lugares, como Freud (1974a) apontou o lugar que os professores ocupavam: imagos de pai, mãe, irmãos ou cuidadores. É necessário atentarmos para o lugar que somos localizados no discurso dos educandos, a figura que eles produzem, pois, é em torno desta figura que o educando vai construir suas relações com educador.

Neste sentido, o Educador Social deverá ter a disponibilidade para perceber qual a dimensão do jogo transferencial estabelecido para que possa intervir. Inclusive para, de acordo com a necessidade, não entrar no circuito que a dinâmica transferencial com determinado educando impõe. Ou seja, seria interessante o Educador Social tentar se posicionar na busca de produzir efeitos educativos que apontem para outras possibilidades de se relacionar consigo e com os outros. Posicionamento educativo cujas intervenções acontecem através do silêncio, de orientação, ora com palavras de acordo, ora com palavras de desacordo, mas sempre com tons de entendimento. Entrar em uma briga, em que o educador se coloca numa relação especular com o educando - "ou eu ou você" - não parece trazer muitos benefícios educativos. E é bom lembrar que quando um não quer dois não brigam!

O pano de fundo do discurso do Educador Social se faz de cadeias significantes que produzam um sentido que aponte aos educandos para a inserção social, que direcionem para uma maneira positiva de lidar com a falta. Ou seja, o que se diz deve estar referido a Lei, dizer que age como Nomes-do-pai, com o intuito de organizar o discurso do educando, dizendo a ele o que é permitido culturalmente e como ele poderia contribuir para o desenvolvimento desta cultura. O que significa que o educador deve apontar e revelar os interditos, a fim de que o limite delimite a gama de possibilidades de exercer seu papel social.

O Educador Social seria aquele que cuida, prepara e causa. O cuidar se caracteriza como oferecer casa, comida, higiene, saúde, escola. Preparar significa direcionar o educando para o convívio em sociedade e contribuição com a produção cultural. Causar diz de um posicionamento, que se apresenta como oferecimento de possibilidades para o que educando possa dar conta de se enveredar pelos caminhos do exercício do seu desejo, de uma produção autoral. É favorecer espaços para que cada educando questione o que a cultura impõe, ou seja, faça um recorte singular do discurso do Outro, para, assim, fazer-se seu próprio discurso. Isto é produção de subjetividade, isto é produção de sujeito.

Enfim, eu penso educar como um ofício análogo ao do agricultor, que rega e aduba uma macieira em crescimento e que na verdade não sabe o quanto ela crescerá ou a qualidade dos frutos que irá produzir. É claro que ele espera o melhor possível, mas é impossível ter certeza. Educar é apostar que cada educando tornar-se-á a melhor macieira que puder ser, mesmo diante da ignorância do educador dos frutos que produzirá. Aposta que só pode ser feita com efeito no jugo de uma relação que leve em conta o impossível de se saber de tudo, crente de que algo é possível:

é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos - porque não admitir outros tantos? - ela foi por causa disso definitivamente bloqueada (FREUD, 1974a, p. 248).

Obrigado!

 

REFERÊNCIAS

AMIGO, Silvia (2001). Notas sobre o discurso do analista. In: VEGH, Isidoro; WAINSZTEIN, Silvia; FLESLER, Alba; AMIGO, Silvia; NANCLARES, Anália B. Meghdessian de. Os discursos e a cura (pp. 75-111). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Conselho Nacional de Assistência Social (2009). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília.

FREUD, Sigmund (1974a). Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. In: FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 13, pp. 243-250). Rio de Janeiro: Imago.

FREUD, Sigmund (1974b). Esboço de psicanálise. In: FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 151-221). Rio de Janeiro: Imago.

GOFFMAN, Erving (1999). Manicômios, prisões e conventos (6 ed.). São Paulo: Editora Perspectiva.

JACOB, Claudia Alves; VICENT, Monique de Freitas; SERAFIM, Oziléa Clen Gomes; COHEN, Ruth Helena Pinto; MELO, Daisy Christine (2008). Conversação com educadores: uma troca possível. Psicologia em Revista, 14 (2), 65-79. Recuperado em 10 de agosto de 2010, da PEPSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia): http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1677-11682008000200005&script=sci_arttext.

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (2003). In: LACAN, Jacques. Outros escritos (pp.248-264). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

SCHOGOR, Walkiria L. C. (2003). Um olhar simbólico sobre a casa lar: veneno e remédio. Monografia (conclusão do curso), Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Pós-graduação em Psicologia Analítica, Curitiba.

ZIMMERMANN, Vera Blondina (2007). Adolescentes estados-limite: a instituição como aprendiz de historiador. São Paulo: Escuta.