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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O declínio da autoridade docente: impasses na suposição de saber?

 

 

Gilmar Moura da Silva

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação - Psicologia, Psicanálise e Educação da FAE/UFMG. Projeto: Autoridade Docente e Vínculo Educativo Contemporâneo.

 

 


RESUMO

Denúncias sobre a falência das instituições sociais, o aumento das situações de conflito que emergem no cotidiano escolar, manifestas na forma do desrespeito e da indisciplina exacerbada dos alunos, a perplexidade de projetos educacionais ante a diversidade cultural, entre tantos problemas contemporâneos, em regra, veem associados a uma crise de autoridade, consequência de um declínio dos saberes, não só aqueles da tradição e da religião, como também dos saberes filosóficos e científicos na atualidade.Para a psicanálise, a suposição de saber implica a princípio uma crença no Outro, crença de que ao me endereçar a esse Outro um saber não sabido possa se produzir. Haveria na contemporaneidade impasses nesse campo da suposição de saber? A derrisão do saber e o desregramento do gozo seriam efeitos da suplantação dos ideais éticos, sócio-culturais e políticos de uma sociedade que preconiza a precariedade e efemeridade de tais ideais, em prol da eficácia técnica e do culto do excesso hedonista, manifestos nos novos estilos de vida modernos?Tais questões ganham bastante centralidade em nossos tempos. No campo da educação, aparecem expressas nas formas da desautorização docente e fragilidades do vínculo educativo. Vínculo educativo, aqui entendido como a relação do sujeito com a civilização, que envolve sempre um agente, o sujeito e o saber. O saber em jogo define o vínculo. Quando se esmaga a dimensão do saber, o vínculo educativo se reduz a uma suposta relação eu-tu, excessivamente imaginária, e geradora de tensões. A depreciação do saber na esfera educativa parece indicar que, hoje, a aprendizagem se realizaria sem o mestre. Ele talvez tenha se tornado um mero e geral conhecedor das coisas, pouco destro e muito superficial em lidar com o conhecimento e com a experiência. O discurso pedagógico e sua institucionalização contribuíram fortemente para isso. Trata-se de um discurso de inspiração moderna de abafar as diferenças em prol de um mundo de iguais. A dimensão do particular e do desejo fica desse modo desconsiderada. A erosão do saber abrem as comportas do gozo. O descrédito na função da palavra, função essencial à constituição do sujeito suposto saber, inviabiliza um saber fazer com o gozo. Denuncia-se assim, todos os semblantes que sustentam a relação com o Outro, inclusive os de autoridade. Surge no lugar, práticas de ruptura e de impostura, que só faz repetir o gozo. Forma-se uma espécie de comunidade do gozo que os separa do mundo do Outro. Diante desses impasses na suposição de saber do mundo contemporâneo, que saber a psicanálise pode ofertar no mercado do gozo? Seria o de possibilitar ao sujeito formular ou encontrar um nome para dizer do gozo de seu ser? É o que necessitamos saber...


 

 

Pensar a autoridade no âmbito educacional, constitui tarefa da maior importância na atualidade, haja vista, a flagrante crise que assola esse campo, expressa no discurso docente, sob a forma daquilo que consideram comportamentos de desrespeito e indisciplina manifestos em condutas que vão desde a recusa das atividades escolares à violência explícita na vida cotidiana nos espaços educativos, por parte dos alunos.

Parece haver consenso, de que a sustentação do trabalho pedagógico, se dá, sobretudo, pelo exercício da autoridade docente. Atenta a tal processo, Hannah Arendt, filósofa política, nos anos 50, desenvolve a noção de autoridade, a partir da idéia de que esta ultrapassaria a qualificação pedagógica stricto sensu do educador, desdobrando-se numa dimensão precisamente ético-política: a da responsabilização dos mais velhos pela herança cultural e, portanto, o imprescindível apego ao passado. Afirma a autora:

"Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo" (Arendt, 1992, ...)

Desse modo, a autoridade docente, firma-se como base para os fazeres que se dão no perímetro escolar, e sua ausência, impede que a ação pedagógica se desenvolva a contento, redundando em práticas inócuas e desincumbidas da responsabilidade pela transmissão do legado cultural.

A crise da autoridade na educação, ainda segundo a autora, guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição. Tal pensamento ganha importância no contexto atual, onde tradição, conhecimento e saber, declinados do lugar de privilégio para o de desvalorização, pela lógica do capital e do consumo, acaba por fazer declinar também o lugar do mestre como agente de transmissão.

Seria como dizer que " a depreciação do saber na esfera educativa parece indicar que, hoje, a aprendizagem se realizaria sem o mestre. Ele talvez tenha se tornado um mero e geral conhecedor das coisas, pouco destro e muito superficial em lidar com o conhecimento e com a experiência.".

Para iluminar esse ponto convocamos o saber da psicanálise. Freud nos dirá que, cabe ao educador, em sua tarefa de transmitir um saber, fazer uso de uma quota eficaz de autoridade. O declínio da autoridade docente, nesse contexto, pode ser entendido como uma descrença na suposição de saber dos professores? Qual o estatuto desse saber ? Em que difere do conhecimento?

Desde Freud e depois com Lacan, sabemos que a relação do sujeito com o saber dá-se de modo ambíguo. Inicialmente, podemos situar o saber ao lado da psicanálise e o conhecimento ao lado da ciência, inclusive da educação.

Lacan, tal como o lemos em seu seminário O Ato Psicanalítico, é direto e enfático, ao dizer que o "saber não é conhecimento", e alude ao saber-viver e ao saber-fazer como algo distinto do conhecimento. Dito de outro modo, pode haver um conhecimento esvaziado de saber.

O saber ou não-saber, portanto, situa o sujeito de que se trata na psicanálise - o sujeito do inconsciente. O laço entre saber e inconsciente sustenta-se pela articulação que fará Lacan entre saber e pulsão. Trata-se, na pulsão, de um saber que não comporta menor conhecimento, por estar inscrito num discurso do qual o sujeito não sabe nem o sentido nem o texto e em que língua está inscrito. Daí também se depreende a relação entre saber e gozo, outro modo de satisfação da pulsão. O saber faria uma regulação do gozo como algo proibido ao sujeito.

Outra proposição de Lacan é a de que o inconsciente é um saber que trabalha - às vezes anulando o sujeito, prescindindo dele. Assim, para a psicanálise, o sujeito não tem controle sobre o saber, sobre o desejo de saber. Na dimensão do conhecimento, iremos encontrar também esse ponto de opacidade, de desconhecimento se ele se refere ao sujeito, ou seja, o conhecimento não é sem falha, quando se trata do sujeito, isso porque, a função imaginária do saber, que é a da idealização, se estenderia também ao ato de conhecimento, no modo como acontece na relação do sujeito com a própria imagem, desde a sua constituição. É dessa forma, então, que o objeto de conhecimento será sempre insuficiente.

É em torno desse ponto que gravitam as questões que colocam para trabalhar juntas a psicanálise e a educação. O que a psicanálise traz de inédito aos saberes que se constituem após o cartesianismo é que há saber que não se sabe. Tal concepção está presente em Freud, desde as formações do inconsciente, por ele postuladas. Há saber que não se sabe, por não haver saber sobre o inconsciente. Desse saber, o sujeito só sabe atráves disso que lhe escapa ou que lhe vem como enigma. Esse saber "insabido", que o sujeito sabe sem saber que sabe, Lacan conecta-o com a verdade. O sujeito se surpreende com o que diz, justamente, porque diz a verdade sem saber.

É na relação do sujeito com o saber, portanto, que se pode vislumbrar o lugar do Outro. Embora o Outro não seja o detentor do saber é ao Outro que o sujeito supõe o saber que falta. O Outro, sem suposição de saber, não existiria.. É ai também que se poderia situar o reconhecimento da autoridade, via a suposição de que o Outro, na figura do professor, sabe. Uma suposição de saber implica a princípio uma crença no Outro, crença de que ao me endereçar a esse Outro, um saber não sabido possa se produzir. Dái decorre toda trama da transferência. Poderíamos nos perguntar: de que ordem é esse saber que sustentaria a relação professor-aluno a partir do reconhecimento da autoridade?

Para responder a questão, parto da noção de vínculo educativo, tal como o trabalha a psicanalista, espanhola, Hebe Tizio (2003). A autora, reafirma o postulado de que todo vínculo social - e o vínculo educativo como uma de suas formas - assenta-se sobre um vazio. Sua argumentação faz contraponto à natureza biologicista dos vínculos animais: por causa de sua condição naturalista, são guiados por funções que predeterminam seu comportamento. Já o humano, não; este tem que inventá-lo a cada momento. O vínculo educativo é, pois, da ordem de cada encontro, de apelo particular e sujeito a transformações. Tizio, dirá:

"Do lado do educador isto implica tolerar um certo não saber; sem dúvida que deve conhecer sobre sua especialidade (não é este o ponto em questão). Não sabe sobre o sujeito, sobre seus interesses nem sobre o que é que se transmite, nem sobre a apropriação que fará o sujeito e em que tempo" (p.173).

Para que esse momento tenha como base a invenção, e não a estandartização, as respostas prontas e homogeneizadoras, que são excludentes, o educador deverá suportar o vazio que se instala frente ao saber. Se o vínculo educativo se sustenta sobre três elementos, quais sejam - agente, sujeito e saber - o docente tenderia a tolerar não saber antecipadamente sobre o seu aluno para, assim, criar possibilidade de que algo se construa através daquela relação. O saber em jogo define o vínculo. Quando se esmaga a dimensão do saber, o vínculo educativo se reduz a uma suposta relação eu-tu, excessivamente imaginária, e geradora de tensões.

A autora chama atenção para a diferença entre a tentativa de regular o mal-estar na civilização - próprio ao sujeito na relação educativa e a tentativa de homogeneizar os estilos de vida, produzindo uma degradação do vínculo educativo, cuja consequência imediata é a segregação. Porém o segregado não desaparece, se transforma em obstáculo que faz naufragar o discurso e o desejo de reconhecimento da autoridade por parte do educador. O desafio consiste em fazer a junção entre saber e conhecimento.

De volta a Freud e a Lacan, podemos dizer que o saber e o ato de conhecimento não estão apartados da subjetividade do sujeito e ocorrem tendo como pano de fundo o "drama particular" do sujeito, que advém do modo como ele se arranja com sua verdade e do mal-estar daí decorrente, que também, e paradoxalmente, como Freud o demonstrou, não deixa de ser o motor do desejo de saber e da criação.

Nesse sentido, todo esforço pedagógico que não inclua esse saber que atravessa o sujeito - o saber inconsciente, não dará frutos. Se, como nos indica Lacan só há desejo de saber atribuído ao Outro no ponto em que esse saber se encontra barrado, obstaculizado, ao educador resta ser um mestre que não encarna todo o saber, pois é ele que colocará em andamento o saber que relançará a investigação, a pesquisa, as teorizações das crianças e dos jovens.

A partir dessas considerações poderíamos interrogar: seria o saber que falha ou os pontos de não-saber o motor que move o conhecimento? Ou, inversamente, seria a verdade como algo que resite ao saber o que obstaculiza o conhecimento? E nesse jogo, o declínio da autoridade docente teria como uma de suas causas uma certa posição dos educadores frente ao saber e ao conhecimento tomados como absolutos?

No trabalho de Pereira (2008), ao teorizar que "o mestre só o é provisoriamente", o autor, toca em um ponto nevrálgico da discussão sobre em torno do tema do declínio da autoridade docente e do vínculo educativo na atualidade. Debate marcado, quase sempre, pela esperança de um resgate da autoridade nos moldes que a encontramos no passado. Nesse sentido, a pesquisa de Pereira (2008), faz um corte nessa linha de pensamento, para apresentar a idéia de um mestre não-todo, capaz de sustentar um discurso de mestre (do pai, da Lei, do simbólico), e ao mesmo tempo permitir um giro no discurso que inclua a dimensão do desejo, seu e de seu aluno, na relação pedagógica.

É isso que nos lembra Lacadèe (2006) quando diz que para Lacan, como para Hannah Arendt, a autoridade é abordada sob o ângulo da responsabilidade. O texto A Autoridade da língua desse autor é que esclarece esse ponto. Ali é possível fazer distinção entre a autoridade autêntica e autoridade autoritária.

Ao estabelecer uma possível relação entre aquilo que chama de "singularidade criadora" e autoridade autêntica, Lacadèe (2006) - fazendo referência ao sofrimento de Einstein no liceu diante de professores autoritários e após encontrar uma escola diferente onde reinava, nas palavras de Einstein, a " solicitude sincera de seus educadores que não se apoiavam jamais sobre uma autoridade exterior" - o jovem Einstein encontra um lugar para alojar a " subversão criadora" que o animava desde sua tenra infância.

Ainda segundo o autor, A autoridade autêntica, "atenta ao que faz o desejo do sujeito, não pode se apoiar sobre um poder exterior e impessoal, ela é questão de presença e de saber fazer aí". E conclui Lacadèe (2006):

" é simplesmente dizendo à criança as coisas que a interpretam e que lhe dão o sentimento de que aquele que lhe fala conhece um raio de luz e o demonstra que a criança revestirá o adulto com as vestes a autoridade e do respeito" (p.15).

A título de conclusão, Lacan vai tentando depurar o que é o saber e o conhecimento, mas também e principalmente, os efeitos do saber sobre o sujeito. Ele vai deixando entrever que o saber não é dado, não há como ser dado, pois adquire-se saber "com o suor do rosto", e que o saber nada tem a ver com a aprendizagem. O saber é isso, diz Lacan: "alguém lhe apresenta coisas que são significantes e, da maneira como estas lhes são apresentadas, isso não quer dizer nada, e então vem um momento em que vocês se libertam, e de repente aquilo quer dizer alguma coisa", é assim desde a origem.

Para que haja, pois, essa possibilidade de "libertação" do que foi apresentado ou até mesmo ensinado, para que se produza o saber como um clarão, ou mesmo para que o almejado reconhecimento de autoridade aconteça, é preciso que a atenção pedagógica não seja demasiadamente grande, ou que o saber daquele que ensina apresente pontos de opacidade, não sendo, como já dissemos, supostamente completo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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