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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A recusa em Freud e o mal-estar na educação

 

 

Gustavo Alexandre Martins

Programa de Pós-Graduação em Educação - FaE/UFMG

 

 


RESUMO

Este artigo é orientado a partir da construção de uma pesquisa de mestrado que visa investigar o posicionamento do sujeito de desejo na educação, especialmente aquele em que se pode localizar a recusa como significativo mecanismo de defesa na contemporaneidade. Pretende-se neste recorte investigar profundamente a evolução do conceito de recusa (Verleugnung) em Freud, dialogando com outras leituras sobre o termo. Em princípio, toda recusa é a rejeição da castração. Isto implica para o sujeito uma carência simbólica que impede o encadeamento de laços sociais. Em seguida, busca-se aproximar do tema central da pesquisa esboçando possíveis implicações deste mecanismo que, ao lado do recalque, configura outros contornos ao mal-estar na educação.

Palavras-chave: Recusa, Mal-estar, Subjetividade


 

 

Introdução

A proposta deste artigo surge a partir de um recorte de pesquisa de mestrado cuja construção inicia-se em 2010 e pretende investigar o desejo do sujeito na escola em face daquilo que o impede de se manifestar. Considera-se que o mal-estar na educação aparece como tema bastante pesquisado em nosso contexto, proporcionando aqui uma interlocução.

Ao contrário da tradicional unidade e consciência, do pensamento racionalista, o que caracteriza o sujeito freudiano é o domínio de pulsões inconscientes que precisa ser a todo tempo reorientada pelo eu. O eu emerge como instância psíquica que não funciona como síntese, mas é marcado pela cisão, pela castração simbólica. Esta diz da perda de um objeto fálico, imaginário, de poder e completude que, entretanto, nunca existiu.

A ideia lacaniana dos três registros é uma contribuição para o que será articulado na segunda parte deste artigo: O Simbólico, apoiado na linguagem é o que possibilita o encadeamento de significantes. Uma vez que não são totais, funcionam na transitoriedade, na constante reconstrução que leva aos enlaçamentos do sujeito. O registro Imaginário é onde se localizam as tentativas de encobrir a falta. A 'imagem' é o que tenta representar o todo. O encontro com o Real traz sempre um desconforto. Além de ser um registro inapreensível pela consciência, impõe-se de forma desmedida, incessante e por vezes traumática.

A partir dessas referências, criou-se a suposição inicial, para orientar a pesquisa, de que o sujeito recusaria a escola. Os fenômenos que vão da evasão escolar à violência, do adoecimento docente ao absenteísmo renovam o desconforto do mal estar e a necessidade de compreensão e intervenção. Daí, a questão fundamental era localizar algo do desejo que pudesse ser inscrito, mesmo com esta recusa. Entretanto, a pergunta conduziu a uma trilha que logo de saída impôs uma interrogação: Talvez não seja propriamente a instituição escolar o objeto de recusa. Mas, pode ser que esta faça reaparecer algo anterior no sujeito. Assim, o que de fato, o sujeito recusa? Nesta pergunta que surge, tem-se o foco proposto neste artigo.

 

Sobre a Recusa

À tentativa de encontrar isto que é anterior deve preceder uma imersão no conceito psicanalítico de Recusa (die Verleugnung). Seguimos a noção primeira de que o que o sujeito recusa, antes de tudo é a castração. É quando o menino se depara com a visão do corpo da menina, não somente diferente do seu, mas indicador de uma falta, do pênis, que ele deve suprimi-la. Esta ideia está presente já nos 'Três ensaios sobre a teoria da sexualidade'(1905).

Nas investigações sexuais, a criança não deixa de perceber a existência de dois sexos. Entretanto, isto não se conecta ao conhecimento dos órgãos genitais. Ainda é inconcebível, para o menino, que outra pessoa qualquer não tenha o mesmo órgão que ele. Mesmo diante da observação direta da diferença, que contradiz sua crença, isto não é facilmente retificado, a não ser após muita luta interna. Contudo, o conceito aparece na obra freudiana sem uma elaboração sistemática, tomando contornos diferentes até os textos finais em que trata do tema.

Três anos mais tarde, Freud teoriza "Sobre as teorias sexuais das crianças" e não só retoma os pontos destacados no parágrafo anterior como avança naquilo que o sujeito busca acerca da sexualidade desde a infância até a puberdade. A questão fundamental, que se ergue em torno da origem dos bebês, tem uma resposta sempre insuficiente do adulto e impõe o enigma. Assim, aquela concepção supracitada de que toda pessoa seria dotada pênis, consiste na primeira das teorias sexuais da criança. Ao ver esta teoria não se confirmar, cabe ao menino recusar e à menina invejar e, em ambos os casos, tentar sustentar a hipótese de que o órgão da menina ainda cresceria (FREUD, 1908b).

É importante salientar a notável observação de Penot (1999) ao indicar que Freud, nos "Três ensaios...", trabalha o verbo 'recusar' (verleugnen) e o discute enquanto uma ação. Somente em 1925 utiliza o substantivo 'recusa' (die Verleugnung), começando então a sistematizar um conceito. Além disto, uma dificuldade que merece destaque refere-se à diferença do idioma. Neste sentido, Hanns mostra que a tradução da palavra em alemão para o português comporta diferenças no significado e conotação. Por outro lado, salienta que, a rigor, "O termo mantém sempre esta conotação coloquial, de algo não muito correto, uma distorção que não chega a se configurar como mentira (algo consciente e planejado), mas que nega a verdade" (HANNS, 1996 p.310).

Deve-se notar ainda, principalmente nas citações de Freud, que a verleugnen foi muitas vezes traduzida como rejeitar. Aqui os termos serão mantidos tais como aparecem nas referências consultadas, mas considerando as traduções de verleugnen e die Verleugnung com significados e conotações semelhantes para os termos recusar e Recusa, adotados na pesquisa.

Freud volta a dar destaque ao momento em que a criança se depara com a diferença entre os sexos (1923, 1925b). Neste momento a Verleugnung tem o significado de rejeição. E o que a criança rejeita é o fato de a outra - a menina - 'não ter' o órgão sexual. Considerando a ênfase dada por Freud à fase chamada de primazia do falo (Freud, 1923), o que a criança identifica que falta na outra é o órgão sexual, não enquanto função anatômica, mas como significante do falo. Isto remete à castração simbólica. Vê-se que a diferença entre os sexos se coloca sob uma questão fundamental: Ter ou não tê-lo. O que o menino rejeita é a possibilidade de ser ou ter sido castrado, enquanto o que a menina rejeita é a visão de que de fato fora castrada.

Outro elemento teórico fundamental que ganhará maior importância a partir dos artigos sobre neurose e psicose (1924) se encontra já em 1911 no artigo "Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico". Freud trabalha a descoberta do princípio da realidade, que se opõe ao do prazer e perturba o repouso e harmonia no qual o sujeito se conservaria neste princípio. Logo de início é destacado, condensada e brevemente, o afastamento da realidade na neurose, ainda que este seja menos extremo do que nas psicoses. Todavia, tal afastamento se dá na medida em que há algo de insuportável na realidade e que precisa ser deixado à parte. Isso se conecta com o mecanismo do recalque que, por sua vez, está na etiologia das neuroses.

Em "A perda da realidade na Neurose e Psicose"(1924), Freud corrige algumas ideias que colocara em "Neurose e Psicose", do mesmo ano. Ele chega a perceber, por fim, que também na neurose há um afastamento da realidade e não apenas na psicose, como supusera anteriormente. No caso da neurose, tal afastamento ocorre posteriormente ao recalque. Neste texto, traz o verbo verleugnen significando uma defesa da psicose. Se na neurose, a cena traumática1 seria aceita e as ideias subsequentes a ela suprimidas - e retornadas como sintoma, na psicose a própria cena seria renegada, recusada. Em "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos" (1925) Freud retoma esta ideia e diz: "pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de 'rejeição', processo que, na vida mental das crianças, não aprece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de uma psicose". (FREUD, 1925b, p.281-2).

Outros sentidos para o termo serão trabalhados a partir de então, inicialmente no texto "Fetichismo" (1927). Neste texto a Verleugnung é traduzida como recusa e renegação. De uma defesa da psicose, Freud passa a privilegiar o conceito como mecanismo fundamental da perversão. Ele defende que o fetiche se coloca no lugar do pênis. Aquele pênis da mulher, cuja crença na existência deveria ser abandonada na vida adulta, como foi apontado em "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos". Mas é exatamente para preservá-lo que o sujeito o substitui. Assim, o fetiche seria um "indício do triunfo sobre a ameaça de castração e como uma proteção contra ela" (FREUD, 1927, p.162) e a recusa é o mecanismo que estaria por trás da construção do fetiche.

Não obstante, no mesmo artigo localiza-se um importante avanço teórico. Freud retoma os escritos sobre neurose e psicose comparando-os com as investigações de dois casos acerca do fetichismo. Neste ponto indica a suspeita de que a rejeição de uma parte da realidade ocorreria na infância de sujeitos ditos 'normais'. Haveria uma parte da vida psíquica que se ajustaria ao desejo, enquanto outra se dirigiria à realidade. Freud parece, neste momento, apontar para o que abordaria nos artigos seguintes acerca de uma divisão do eu. Assim, começa a acenar também para outra alternativa, que conduz à ideia de que a recusa não estaria limitada ou seria definidora de uma estrutura psíquica, seja psicose ou perversão.

No texto "A cisão do Eu no Processo de Defesa", escrito em 1938 e publicado postumamente, Freud fala da reação da criança que, na incessante satisfação pulsional, acaba por se deparar com alguma experiência que lhe colocaria em risco caso se mantivesse nesse circuito de satisfação. Seu exemplo clínico remete ao fetichismo e, também com base nos textos anteriores, já é possível supor que tal experiência é a assustadora ameaça de castração.

Diante deste perigo, como nomeou Freud, o eu renuncia ao domínio das pulsões ou recusa esta realidade que se impõe. Na segunda alternativa, estaria certo de que o perigo era injustificável e não haveria por que abandonar a satisfação. Para a criança lidar com o conflito que se instaura, submeter-se à realidade ou as pulsões, Freud diz que, "com o auxílio de certos mecanismos, ela rechaça a realidade e rejeita quaisquer proibições, ao mesmo tempo, ela reconhece o perigo que emana da realidade, acata dentro de si esse medo como um sintoma e mais adiante tenta lidar com este medo" (FREUD, 1938, p.173-4).

Assim, a solução encontrada atende tanto às pulsões quanto à realidade. Contudo, o alerta de Freud é claro. Há que se pagar por uma solução 'engenhosa' deste tipo.

"Esse resultado tão bem-sucedido só foi alcançado ao preço de um rompimento na tessitura do Eu, a qual não mais cicatriza, ao contrário, só aumenta à medida que o tempo passa. Assim, as duas reações opostas com as quais o Eu respondeu ao conflito passam a subsistir como núcleo de uma cisão no Eu" (FREUD, 1938, p.174).

Tal formulação se opõe à tradicional suposição de que o Eu seria uma instância erguida sob uma síntese. A ideia de Cisão do Eu não é terminada neste breve artigo deixado inacabado, mas retorna em outra obra do mesmo ano.

No "Esboço de psicanálise", texto que também não foi escrito até o fim, Freud diz que quanto maior a atenção que o ego dá às exigências do id, maior o afastamento da realidade. Os casos mais extremos seriam os patológicos, como nas psicoses. O fundamental aqui é que, independente da estrutura, o conflito entre as exigências se resolve à custa da cisão do eu. "Duas atitudes psíquicas formaram-se, em vez de uma só - uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da realidade. As duas coexistem lado a lado" (FREUD, 1940, p.215). Em seguida, de maneira bastante precisa e sintética, Freud volta a explicar ideias que vinha trabalhando com mais intensidade desde os artigos que diferenciam neurose e psicose:

"o ego da criança, sob o domínio do mundo real, livra-se das exigências instintivas indesejáveis através do que é chamado de repressões. Suplementaremos agora isto afirmando ainda que, durante o mesmo período da vida, o ego com bastante freqüência se encontra em posição de desviar alguma exigência do mundo externo que acha aflitiva e que isto é feito por meio de uma negação das percepções que trazem ao conhecimento essa exigência oriunda da realidade. Negações desse tipo ocorrem com muita freqüência e não apenas com fetichistas e, sempre que nos achamos em posição de estudá-las, revelam ser meias-medidas, tentativas incompletas de desligamento da realidade. A negação é sempre suplementada por um reconhecimento: duas atitudes contrárias e independentes sempre surgem e resultam na situação de haver uma divisão do ego2" (FREUD, 1940, p.217).

Temos até aqui as seguintes indicações: a recusa diz primeiramente da ação de não aceitar a visão da diferença entre os sexos, ou seja, recusa-se a castração; a recusa se impõe como mecanismo fundamental, ao lado do recalque, na divisão do eu e, desta maneira, se processa em alguma medida em qualquer estrutura psíquica.

É importante ressaltar que mesmo considerando esta releitura de Freud imprescindível, a questão não parece apaziguada. Para melhor operar com a ideia de recusa é necessário também dialogar com autores que também o fizeram e trouxeram contribuições essenciais.

Bernard Penot indica a importância da tradução da obra freudiana do alemão para o inglês, coordenada por James Strachey (e de onde foi traduzida a Edição Standad Brasileira). "Disavowal foi escolhido de propósito por Strachey para mostrar que se tratava de um mecanismo diferente da denegação e do recalque" (PENOT, 1999). Em "Fetichismo" (1927), Freud diz que "se quisermos diferenciar mais nitidamente o percurso e destino da ideia daquele do afeto, e reservar a palavra 'recalque' para o afeto, então a palavra alemã correta para nomear o destino da ideia seria 'renegação'[Verleugnung]" (Freud, 1927, p.127).

No recalque as representações psíquicas são forçadamente dirigidas para o inconsciente. Não são apagadas. Uma vez que não deixam de existir, elas também não cessam de se inscrever. O afeto ligado a tais representações aparece na consciência de forma destorcida, por meio do retorno do recalcado e a manutenção deste mecanismo impõe ao sujeito grande dispêndio de energia (Freud, 1915).

Por outro lado, na recusa, algo diferente se processa. Para que não haja ligação da representação com sentimentos indesejados, o que é suprimido é a própria representação. Daí uma ambigüidade se impõe: Ao mesmo tempo em que 'a coisa vista', ou, o corpo castrado, não sofre alteração de ordem perceptiva, a ameaça a que esta visão pode remeter - a castração simbólica - conduz a supressão desta representação. Dizendo de outra maneira: ainda que o sujeito veja e saiba que viu, o sentimento que causaria esta ideia o leva a não reconhecê-la, de forma que ele atue como se isto não tivesse ocorrido. O objeto de fetiche é, na perversão, o que elege para garantir que a visão da ausência do pênis e a ameaça de castração não apareçam. Com isto, a carência simbólica é o resto que sobra da recusa. A representação em si não é eliminada, mas reduzida ao ponto de não adquirir registro simbólico. Penot (1999) explica: "esse tipo de recusa me pareceu constituir a outra pedra angular do sistema binário de defesas que integra o sistema simbólico constituído, onde encontramos a rejeição simbólica".

O mesmo autor diz como diferencia os dois mecanismos de defesa, recalque e recusa.

"As defesas do eu dizem respeito ao mundo intrapsíquico já constituído, com julgamentos de atribuição e de valor operando, quer dizer, há a possibilidade do eu rejeitar algumas coisas e aceitar outras. Tais defesas do eu encontram-se em Freud, sob o modelo do recalcamento. Há ainda outros problemas, com outros mecanismos que não têm a ver com uma defesa de negar ou uma defesa contra alguma coisa reconhecida, porque têm a ver com o próprio reconhecimento, o próprio fato de pensar, de simbolizar alguma coisa. Para isso, a Verleugnung é o modelo" (Penot, 1999).

Uma vez que a representação da coisa vista não é reconhecida, ela não se inclui no arcabouço simbólico do sujeito. Enquanto o retorno do recalcado comporta sentido - ainda que cifrado para o sujeito - a recusa implica em uma falta de sentido.

A leitura de Luis Cláudio Figueiredo sobre o texto "Fetichismo" o leva a dizer que "o esforço da defesa é no sentido de reduzir ou anular a autoridade dessa percepção" (FIGUEIREDO, 2003, p.60). Entende-se com isto que diminui ou exclui-se a capacidade de aquela visão recusada, ligar-se a uma cadeia simbólica, de atribuição de sentidos.

Podem-se resumir aqui as apreensões, pela releitura de Freud e nas contribuições dos demais autores citados, acerca do conceito de recusa. Em primeira instância, o que se recusa é a representação da diferença entre os sexos. Trata-se de um mecanismo de defesa que, junto com o recalque, opera a cisão do eu. Assim, o eu se defende das ameaças externas - a rigor, a castração simbólica ou algo que remete a ela - por meio de mecanismos antagônicos. No recalque, as representações são forçadas para o inconsciente e os afetos ligados a elas retornam de maneira cifrada. Na recusa, a defesa incide sobre a própria representação esvaziando o sujeito da possibilidade de se inscrever em uma cadeia de significações. Este tipo de defesa, em alguma medida, pode operar em qualquer estrutura psíquica.

Não se pode dizer que este foi um conceito privilegiado por Freud, mas a própria evolução de seu uso mostra o quanto o instigou. Embora as últimas produções em que trata do tema tenham ficado inacabadas, o caminho apontado por ele e seguido por outros autores, como os citados aqui, pode conduzir a outra leitura possível do social, sempre às voltas com o mal-estar e as tentativas de suportá-lo.

 

Mal-Estar, modernidade e recusa

O percurso de Freud até aqui indica as mudanças constantes em sua construção teórica. Isto não se resume ao conceito de recusa a que nos dedicamos, mas se estende a toda obra. Não é difícil imaginar que a ideia de mal-estar na cultura também passou por um processo longo de sistematização. Basta retornar ao texto "Moral sexual-civilizada e doença nervosa moderna" para se perceber ali, ainda de forma rudimentar, o que trabalharia duas décadas depois. Contudo, para os objetivos do artigo, não devemos nos ater aos pormenores desta trajetória. Segue-se uma breve abordagem da bastante citada obra de 1930.

Logo no segundo capítulo de "Mal-estar na civilização", Freud diz que nem a Religião é capaz de cumprir com a promessa da felicidade, uma vez que ela impõe uma homogeneização dos fiéis. Posteriormente indica como esta tentativa de igualar a todos se impõe de forma bastante ostensiva não apenas na religião. A contenção da agressividade e da sexualidade aponta como movimento crucial da civilização. Se esta só pôde erguer à custa da renúncia das pulsões, como adiantara em "Moral sexual civilizada...", a solução psíquica para o sujeito comungar da organização fraterna foi um tanto quanto penosa. A introjeção da agressividade não minimiza a culpa instaurada. Diferentemente da crença dos textos anteriores em que a sublimação, a educação ou a própria psicanálise poderiam dar conta da angústia e do desamparo, Freud termina o texto declarando a vitória de Tanatos sobre Eros. A pulsão de morte é soberana e o mal-estar além de constitutivo é persistente.

Entre as exigências pulsionais, que jamais se satisfazem senão por esporádicas e efêmeras realizações, e a contraditória cobrança social - que promete igualdade, mas oferta objetos inalcançáveis como elemento diferenciador - o mal-estar se alimenta.

O que recusaria o sujeito no atual estado de organização social? O mecanismo do recalque, que sustentaria em grande parte a civilização forjada por Freud, perderia um pouco da sua eficiência, cedendo espaço cada vez mais à recusa? O trabalho de recalque é extremamente dispendioso e tem os desconfortáveis retornos - sintomas, sonhos, lapsos de linguagem, muitas vezes ávidos por um sentido, ou seja, mergulha o sujeito em um mal-estar que não cessa. Por outro lado, a recusa, carente da possibilidade de dar sentido, é a defesa que conduz o sujeito a um alheamento nas cadeias significantes mais elaboradas. Não podemos nos precipitar em supor que este mecanismo se sobrepôs ao outro e que a perversão é forma subjetiva dos tempos atuais. Mas, admitindo que tal mecanismo se processa em qualquer estrutura psíquica, são pertinentes algumas referências da clínica para dizer de como isto tem se apresentado no cotidiano.

Vera Zimmermann apresenta estudos acerca de dois casos de adolescentes cuja recusa se manifestava na escola. Um caso identificado como neurose e outro no limite entre neurose e psicose. A psicanalista indica que na adolescência há uma "reatualização no uso dos mecanismos de recusa da castração, mecanismos que se explicitam e se organizam de acordo com os recursos estruturais de cada sujeito" (ZIMMERMANN, 2001b, p.15). A alta exigência, pulsional e social, por um posicionamento fálico estaria no cerne desta 'reatualização'. A rigor, isso remete à experiência análoga do sujeito quando criança. Qual o lugar que ocupava no discurso parental e como se deu a percepção - recusada - da falta do falo na mãe.

Referindo-se a outro caso a autora percebe que o tratamento se apresenta de início como um reencontro com a castração, o que coloca uma dificuldade inicial e a necessidade de mediações no processo. Acrescenta ainda que "no caso de adolescentes, a dificuldade não decorre apenas da falta de recursos simbólicos - mas também de seu evitamento, utilizando como denúncia de suas próprias questões, incorporadas por identificação narcísica ou por identificação com o agressor" (ZIMMERMANN, 2001a, p.178). Seu lugar, como analista, é então de contribuir como agente para a subjetivação deste que demanda o tratamento. A intervenção possível se pauta em "pontuar a falta recusada, ou seja, a recusa da representação da mesma através do deslocamento de seu foco. O sujeito não se questiona sobre a sua dificuldade, mas esconde-se sob mecanismos onde sua inteligência poderá ser utilizada para livrá-lo do confronto. (ZIMMERMANN, 2001b, p.20)".

Foi dito anteriormente que a recusa se difere do recalque e que uma das conseqüências deste último é o desconcertante retorno do conteúdo recalcado. Na recusa, por sua vez, a carência simbólica não é a única implicação. Luiz Cláudio Figueiredo que propõe haver neste mecanismo um retorno de 'quase-coisas', manifestações cotidianas de excesso, sem sentido e que se opõe a possibilidades de reorganização subjetiva.

"A sucessão de retornos das 'quase-coisas' geradas pela desautorização é muito mais perturbadora que o retorno do recalcado a que estamos acostumados na neurose e na vida cotidiana dos 'normais', e ao qual já se opõe tantas resistências. As 'quase-coisas' que retornam indigestas e fora de controle geram uma nebulosa de informações que, desligadas umas das outras, produzem nos casos menos graves, uma espécie de 'ruído', uma névoa, um estado crônico de confusão em que muitos pacientes se confessam continuamente envolvidos" (FIGUEIREDO, 2003, p.64).

Podemos pensar que, assim como os sintomas - efeito do recalque - as 'quase-coisas' dão contorno ao mal-estar do sujeito. Quando Moreira diz que "a recusa mantém um não investimento específico de certas representações do mundo exterior, através da retirada de sua possível significação" (MOREIRA, 2010) tem-se uma leitura dessa confusão e da falta de conexão entre sujeito e sociedade. Não obstante, na medida em que o investimento em enlaçamentos simbólicos é carente, a própria sociedade faz ofertas antagônicas.

Neste sentido, Enriquez salienta que "a racionalidade institui um 'fetichismo' generalizado" (Enriquez, 1991, p.260). Há multiplicidade de objetos que ao mesmo tempo apaziguam e realimentam o mal-estar, que negam e reconhecem a falta, diferenciam e igualam os sujeitos. Importante lembrar que estes objetos de fetiche assumem um lugar diferente daquela escolha do perverso. Freud já dizia nos "Três ensaios..." que todo sujeito elege objetos deste tipo e o que diferencia o perverso é a exclusividade que essa escolha assume em sua organização sexual.

Pela abordagem de Enriquez podemos identificar um modo de funcionamento social bastante próximo do que pudemos reunir até aqui. A troca incessante de objetos 'fetichizados' não ocorre por deslizamento metonímico, por substituição de significantes amparados pelo simbólico. Isto se dá por uma eleição quase forçada pela sociedade daquilo que, como todo fetiche, negaria a falta. O sujeito que recusa, que rejeita a representação da falta, encontra-se às voltas com o que não faz sentido, não faz laço. O que lhe deixa estático na nebulosa cujos únicos elementos que o amparam - e sustentam sua posição - são os objetos de fetiche.

No lugar da palavra, o sem sentido. Em vez do sintoma a ressignificar, o objeto imaginário e 'fetichizado'. A repetitiva e, portanto, mortífera, pulsão desorganizada, governa para além da possibilidade de representação, o mal-estar.

 

Questões por concluir

Ainda que a extensa abordagem da Verleugnung de Freud e as interlocuções sobre o conceito tenham sido imprescindíveis e; ainda que o esboço de uma abordagem da recusa no mal-estar contemporâneo indicasse-nos algum norte, há várias questões em aberto. Em primeiro lugar, a pesquisa teórica não se conclui neste ponto, tendo em vista que indubitavelmente encontrar-se-ão outras contribuições tão importantes quanto as citadas até aqui. Em segundo lugar, buscou-se apenas um breve recorte do que se pretende como pesquisa a ser desenvolvida.

Sem a ilusão de suturar todas as lacunas, há que se interrogar e, consequentemente, investigar outros campos essenciais. Neste sentido, perguntas sobre o campo específico da educação se colocam como passo a ser dado em sequência.

A exploração dos casos clínicos realizada por Vera Zimmermann é bastante elucidativa. Entretanto, parece haver uma sutileza naquilo que se pode diferenciar, para além da teoria, das defesas provenientes do recalque e daquelas que hoje se manifestam como recusa. É preciso dedicar, na pesquisa que se segue, em maneiras de localizar o fenômeno no cenário social, principalmente nas instituições educativas, sem a presunção de uma 'análise para todos'.

Um caminho pode começar a ser percorrido investigando o que há de função da escola que reedita a recusa no sujeito, principalmente o aluno adolescente, a quem é dirigida grande parte das queixas escolares. Por outro lado, o que aparece como recusa do aluno e que toca no professor ao ponto de acentuar também neste o mal-estar, como tem sido bastante pesquisado recentemente. Disto, vislumbra-se a abertura do espaço para interrogar e, por ventura, intervir na possível inscrição do desejo onde até então se destaca o sem-sentido da recusa.

 

Bibliografia

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1. Na passagem do texto em que há esta referência, Freud remete ao caso Elizabeth Von R. em "Estudos sobre a Histeria" (1985), no qual o desencadeamento dos sintomas histéricos se dá após os pensamentos que lhe surgem de desposar o cunhado quando ainda se encontrava no leito de morte da irmã.
2. De acordo com a atual leitura da obra freudiana, podemos rever o texto apresentado pela tradução inglesa e: onde se lê ego, impulsos, repressões e negação, ler-se eu, pulsões, recalque e recusa, respectivamente.