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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Sobre a falta no analista

 

 

Helena Julio Rizzi

 

 


RESUMO

Seja quando está com o médico, seja quando está com o analista, o paciente traz seu sintoma e procura respostas: quer saber o que há, por que e o que fazer. O médico oferece-lhe informações, sugestões ou medicamentos. O analista, no entanto, não atende a essa demanda por respostas; se atendesse, ele assumiria o lugar daquele que sabe e pode oferecer este saber, enquanto o analisando ficaria como aquele que não sabe e precisa receber. Este trabalho propõe-se a realizar uma discussão clínico-teórica acerca da posição do analista diante deste pedido feito por pacientes atendidos no Instituto da Criança, HC-FMUSP. A experiência na instituição médica mostra que, enquanto o discurso médico se atém àquilo que sabe, mensura, observa e examina, ou seja, àquilo que conhece ou pode classificar dentro do espectro por ele conhecido, o analista desconhece e, por desconhecer, não responde às perguntas: as faz. O paciente depara-se, então, com a falta no analista, pois ele não tem todas as respostas, não sabe de todas as coisas. Deste modo, há a abertura para a assunção de que aquilo que se tem nada mais é do que a própria falta do sujeito, independente de analista ou não: esta é a falta que o discurso médico tenta escamotear. O analista propõe-se a escutar o paciente, considerando que este sabe algo sem saber: o saber inconsciente. Será apresentado um caso clínico, em que a falta no analista possibilitou, durante os atendimentos, o trabalho com a falta no paciente.


 

 

Texto

Ao longo do ano de 2010, cursei o Programa de Aprimorando Profissional de Psicologia Hospitalar em Instituição Pediátrica, realizado no Instituto da Criança (HC-FMUSP). Este trabalho é fruto das indagações decorrentes do atendimento ambulatorial no hospital de uma paciente ao longo deste ano.

Camila1 tem 7 anos e foi encaminhada ao psicólogo por seu médico especialista em nefrologia. A queixa: escape ou perda de xixi durante o dia. A equipe médica realizou uma série de exames e fez uma série de hipóteses, mas nenhuma delas parecia explicar ou dar conta do sintoma de Camila: como era possível ela ter algo orgânico, tendo escapes de xixi durante o dia, mas não de noite, enquanto ela dormia?

Exatamente, Camila não fazia xixi na cama a noite dormindo, mas tinha perdas de xixi durante o dia acordada e, quando fazia xixi na cama, era depois de acordar, enquanto assistia desenho animado.

Nas primeiras entrevistas, realizadas com a mãe, ela afirma imaginar que isso é psicológico, "É a única explicação que eu consigo dar!" (sic) e completa dizendo que os médicos ainda farão mais exames, mas ela acha que não haverá nada no corpo da filha. Ela traz duas ideias principais: de que Camila não consegue se controlar e aí o xixi acaba escapando, ou de que ela se controla tanto, segura tanto o xixi, que no fim ele escapa.

Fabiana, a mãe, é uma mulher com opiniões fortes sendo, em alguns momentos, difícil propor questões para ela refletir sobre aquilo que diz: quando fala sobre a filha, parece sempre trazer uma verdade absoluta. Esses escapes de xixi são para a mãe aquilo sobre o qual ela não sabe, apresentam-se inicialmente como queixa.

Em entrevistas com os pais, Fabiana reclama que o pai é negligente e não consegue impor qualquer limite aos filhos e Guilherme, o pai, deixa-se ficar na posição de quem não tem muito o que dizer quanto a isso: a mãe sabe o que diz.

Camila tem ainda um irmão um ano mais velho, Diego, de 8 anos. Os pais estão de acordo ao colocar o menino a cargo do pai e a menina da mãe, já que Diego quer ser igual ao Guilherme e Camila quer ser como Fabiana.

Durante as primeiras entrevistas com Camila, ela propõe algumas brincadeiras em que traz o tema de ser igual ou ser diferente. Ela se incomoda muito quando jogamos um jogo e acabamos empatando e chega a dizer "Prefiro perder do que empatar de novo!" (sic). Parece dizer "Prefiro ficar na posição daquele que não tem (de quem perde) do que ocupar a mesma posição de outra pessoa, do que ocupar uma posição que não me pertença única e exclusivamente!".

Percebo que ela tem uma fala bem infantilizada e diz várias palavras incorretamente, tais como "peto" (para preto), banco (para branco), entre outras.

Após algumas entrevistas, num dado momento, pergunto para Camila o que ela está achando de vir aos encontros comigo; ela responde que está gostando e que é legal poder brincar. Pergunto, então, por que ela vem, e ela logo diz não saber e começa a me descrever o motivo pelo qual vem no dia e horário em que vem (é o único horário possível para sua mãe). Digo que ela está me explicando porque vem neste horário, mas não por que vem; Camila fala que sua mãe deve saber o motivo e que eu devo perguntar a ela; digo que sua mãe pode ter um motivo para trazê-la, mas, mesmo assim, Camila pode ter outro motivo para querer vir.

Algumas entrevistas depois, Camila está me contando sobre sua escola e eu vou fazer uma pergunta, mas cometo um ato falho e, ao invés de "tarde", digo "torde". Passamos, eu e Camila, uns cinco minutos rindo da troca, do erro, que cometi. Logo, ela volta a contar sobre o que estava falando, mas algum tempo depois, faz uma confissão: ela também não fala todas as palavras corretamente. Diz que acha que eu posso ajudá-la a falar melhor, apesar de ainda não saber me dizer como.

Mais algumas sessões e Camila está tentando falar essas palavras sem errar, vai aos poucos perdendo o jeito infantilizado de falar e, quando erra... Bom, erramos todos!

Num dia, ela me traz o motivo pelo qual sua mãe acha que ela deve passar no psicólogo, conta bastante angustiada que tem "dificuldade em ir ao banheiro" (sic) e que ela "segura muito para fazer xixi" (sic). Camila me diz que acha que eu também posso ajudá-la com isso.

Durante as sessões subsequentes, frente a todas as perguntas que lhe dirijo, tais como o que ela acha, o que pensa, o que sente sobre o que está contando, ela me responde "Não sei!". Aos poucos, Camila vai me falando sobre a dificuldade que tem em lidar quando está brava ou triste com alguém: esses são sentimentos difíceis para ela nomear. Quando relata principalmente sobre sua relação com a mãe, diz que é difícil tentar agradá-la, pois ela nunca sabe o que a mãe quer; fala também da dificuldade que tem em tentar agradar ao mesmo tempo seu pai e sua mãe, pois cada um valoriza comportamentos e atitudes muito diferentes.

Poderíamos sintetizar o sintoma de Camila como perdas de xixi durante o dia. Este é o sintoma de Camila trazido pelos pais para o médico e para o psicanalista na instituição de saúde em busca de respostas: querem saber o que há, por que e o que fazer para cessá-lo. Os dois profissionais são tomados pelos pais como aqueles que podem dar respostas e ajudar a curar sua filha; estes do ponto-de-vista dos pais são aqueles que possuem um saber e, portanto, podem ajudá-los, podem ajudar a criança a livrar-se de seu sintoma.

Moretto afirma "Se entendemos transferência como transferência de saber, o que fica claro é que o paciente vai ao hospital porque supõe encontrar lá o saber médico, ou seja, a transferência é com o médico, já que o saber é dirigido a ele" (2002, p. 98). Na esperança de que os médicos pudessem fazer Camila parar de "perder" xixi durante o dia, seus pais a levam ao nefrologista.

A medicina, como conhecimento científico que é, busca objetividade, homogeneidade, generalização, regularidade, constância, frequência e normalidade dos fatos investigados (Priszkulnik, 2000). Sintomas são compreendidos como disfunções dos órgãos, comprovados por meio de exames; o corpo é lugar da inscrição das doenças, passível de ser objeto do olhar positivo do médico. Ele precisa ter audição seletiva para fazer o diagnóstico preciso e, assim, decidir sua conduta; "o médico precisa se apropriar do discurso do sujeito e transformar os significantes de sua fala em signos, em sinais médicos" (Moretto, 2002, p. 69).

Nessa perspectiva, o médico irá ouvir o que o paciente (e seus pais) tem a lhe dizer, tentando recolher aspectos relevantes; irá realizar o exame físico e demais exames que julgar necessário; buscará fazer um diagnóstico preciso para, então, estabelecer um processo de tratamento que leve a cura do paciente. Os médicos, como representantes da medicina, oferecem aos pais e pacientes informações, sugestões ou medicamentos: apresentam-se a partir do lugar daqueles que sabem e, portanto, podem ofertar este saber.

Concebendo que o trabalho médico se dá no corpo do paciente, mais precisamente no órgão que sofre algum tipo de alteração, o médico tenta a qualquer custo abolir a subjetividade, tanto a sua quanto a de seu paciente: procura dados que sejam puramente objetivos e que lhe deem subsídios para o tão sonhado "saber" (Moretto, 2002).

A experiência na instituição médica mostra que o discurso médico se atém àquilo que sabe, mensura, observa e examina, ou seja, àquilo que conhece ou pode classificar dentro do espectro por ele conhecido. Após fazerem uma série de exames em Camila, os médicos ficaram surpresos: não havia sequer uma evidência de qualquer disfunção orgânica. O sintoma da paciente não podia ser classificado em nenhuma categoria médica. A paciente foi, então, encaminhada ao psicanalista da instituição, já que os recursos médicos disponíveis para entender, medicar e curar o sintoma mostraram-se insuficientes.

O analista, diferentemente do médico, desconhece e, por desconhecer, não responde às perguntas: as faz. Segundo Laurent, "a particularidade do psicanalista, que sustenta o questionamento, a abertura, o enigma no sujeito que vem ao seu encontro. Ele, portanto, não se identifica com nenhum dos papeis propostos por seu interlocutor, nem com qualquer mestria ou ideal existente na civilização" (2007, p. 216). O psicanalista certamente não dará respostas como mestre e não ocupará o lugar destinado a ele pelos pais.

Faria (1998) apresenta a ideia de que a criança é sempre trazida ao analista pelos pais se há uma demanda por parte destes em relação à criança, ou seja, se os pais dirigem ao analista uma demanda que localiza um sintoma na criança. Importante ressaltar que esta demanda é dos pais e não da criança.

"A intensão do analista não é a de atender à demanda paterna (...) quando nos deixamos seduzir pela demanda dos pais o sintoma do qual eles se queixam pode se tornar o foco de nosso trabalho, antes mesmo que tenhamos oportunidade de encontrar a criança. Corremos o risco de nos atermos ao sintoma de que os pais se queixam (procurando-o na criança), esquecendo-nos assim de que o sujeito de que se trata é a criança" (Faria, 2004)

Deste modo, o analista trabalha com o sintoma da criança, "sintoma apresentado pelo sujeito em questão que é a própria criança" (Faria, 1998, p. 82), e que vai se revelar como enigma para ela em sua análise.

Para que a análise ocorra "É preciso que essa queixa se transforme numa demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo" (Quinet, 1991, p. 16). Ou seja, a queixa da criança precisa se transformar em demanda também da criança.

Há análise quando o paciente nos traz um sintoma e, para além disso, quando este sintoma é um enigma para o próprio sujeito.

Camila se mostra em diversos momentos alienada no discurso materno, o que ela mostra em seu ápice quando me diz para dirigir aquelas perguntas à sua mãe: é a mãe quem tem um saber, é a mãe quem tem as respostas. E Fabiana apresenta-se como aquela que realmente sabe as respostas, que tem, enquanto o pai apresenta-se como aquele que não sabe, que não tem. Como afirma Nominé, "quando o pai é insuficiente para representar a falta imaginária na mãe, a criança encontra o recurso do sintoma para, por um lado, manter o laço fálico e, por outo, distanciar-se da posição perigosa de ser o objeto de gozo da mãe" (1997, p. 38).

O xixi de Camila parece ser aquilo que consegue escapar diante dessa estrutura familiar: é aquilo que escapa ao desejo da mãe, ali onde Camila pode ter um espaço único, pode ter algo que é dela, que a distancie da posição de objeto de gozo da mãe. O escape do xixi parece ter a ver com a excessiva tentativa de controle por essa mãe, parece ser uma tentativa de Camila de lidar com esse controle e mostrá-lo falho. Por mais que se tente controlar tudo, há o incontrolável, o xixi que escapa.

A partir do momento em que me mostro como faltante, em que cometo um ato-falho, Camila pôde também dirigir-me uma demanda própria, em nome próprio. Nesse momento, eu, sua analista, ocupando para ela a posição de sujeito suposto saber, que teria um saber sobre ela, poderia oferecer-lhe o saber, mas o escondo, simplesmente mostro que não sou completa, não sou perfeita, não sei de tudo, há uma falta.

Essa é justamente a falta estrutural do sujeito, sujeito barrado. Aí está a castração. Essa é a falta que Fabiana tenta escamotear colocando-se na posição daquela que sabe de tudo e é o xixi que escapa de Camila que escapa ao saber da mãe, que vem denunciar sua falta.

A posição do analista é, ao contrário do médico, a de deixar o sujeito em falta: ao não responder às perguntas que o sujeito lhe endereça, deixa-o em falta e o obriga a procurar sua verdade. Quer dizer, o psicanalista oferece o espaço de sua escuta para que o sujeito se escute e possa indagar sobre seu saber, mas este saber está consigo e não com o analista, ainda que o analisando o suponha no analista.

Deste modo, o saber do analista não é outro senão saber que o saber está com o analisando, que o sujeito sabe algo sem saber: o saber inconsciente.

Quando Camila percebe a falta no analista, pode falar sobre sua falta. Parafraseando Faria (2004), houve uma virada discursiva, que fez com que o sintoma, endereçado ao analista enquanto sujeito suposto saber, retornasse ao sujeito como questão ($) instigando-o a produzir um sentido, um saber próprio (S2) sobre esse sintoma.

No encontro com o analista, há a abertura para a assunção de que aquilo que se tem nada mais é do que a própria falta do sujeito, independente de analista ou não: esta é a falta que o discurso médico tenta escamotear com o seu saber.

"A criança, sensível, (...) a tudo o que não se diz, retira de tal confronto (encontro com o analista) a possibilidade de uma nova arrancada, até mesmo de uma primeira arrancada como ser autônomo, não alienado no desejo dos pais" (Mannoni, 2004, p. 118).

 

Referências

Faria, M.R. (1998) Introdução a psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo: Hacker Editores.

Faria, M.R. (2004) Das entrevistas preliminares aos tratamentos com crianças, às entrevistas preliminares com crianças. Comunicação oral apresentada na Jornada de abertura de FCCL: A direção do tratamento na psicanálise com crianças. São Paulo, 05 de março de 2004.

Laurent, E. (2007) Princípios diretores do ato psicanalítico. In: E. Laurent. A sociedade do sintoma: a psicanálise hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.

Mannioni, M. (2004) A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Elsevier.

Moretto, M.L.T. (2002) O que pode um psicanalista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo.

Nominé, B. (1997) O sintoma e a família. In: Nominé, B. O sintoma e a família, Conferências belorizontinas. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise.

Quinet. (1991) As 4+1 condições de análise. São Paulo: Zahar Editora.

Priszkulnik, L. (2000) Clínica(s): diagnóstico e tratamento. In: Psicologia USP, 11(1).

 

 

1. Todos os nomes foram trocados para garantir o sigilo.