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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Das memórias educativas: a emergência da história singular do professor e sua relação com o saber

 

 

Prof Drª Inês Maria Marques Zanforlin Pires de Almeida

Universidade de Brasília

 

 

...foi então que passei a buscar naqueles professores sem vida, sem graça, o que deles eu poderia absorver para essa escolha - busquei a identificação. Mas era sempre tudo muito confuso..Meus professores eram "conhecimentos" ambulantes e sem humanidade, por isto minhas lembranças sejam tão associadas às disciplinas. Quando o professor se mostrava humano e sensível desenvolvia empatia por ele e, pelo menos por algum momento, conseguia entender o que ela estava falando" (mestranda/2010)

 

Há mais de 10 anos, estudos e pesquisas já realizadas e/ou em andamento na linha de Educação e Subjetividade, área de concentração Educação e Ecologia Humana do Programa de Pós-graduação FE/UnB, a elaboração da memória educativa tem-se constituído como dispositivo valioso pelo qual reconhecemos a "emergência mínima do sujeito da enunciação". Os trabalhos junto a professores em formação inicial ou continuada, permitem-nos pensar o quanto na história singular do sujeito seja possível vislumbrar também a emergência de sua relação com o saber. Neste sentido, o texto ora proposto para além de reconhecer a importância e validade da narrativa sobre seu percurso de formação escolar, busca a leitura (des)velada de sua relação com o saber reconhecendo-a como possibilidade de compreensão acerca do valor atribuído ao conhecimento: de uso e/ou de troca?

Importante ressaltar que a evolução do conceito de memória ocorre de maneira correlata à evolução da própria psicanálise e poder-se-ia dizer da própria humanidade. Lembremos que vinte e quatro séculos antes da "invenção" freudiana, na antiguidade clássica Aristóteles já reconhecia o lugar fundamental ocupado pela memória. Kury (1990) destaca no Dicionário de Mitologia Grega e Romana, o lugar da deusa Mnemosine que aparece como enaltecida memória personificada, filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra) e uma das seis Titanides. As nove filhas de Mnemosine (a Memória) e Zeus, além de inspirar os poetas e literatos, os músicos e dançarinos como também astrônomos e filósofos, cantavam e dançavam nas festas dos deuses conduzidas por Apolo. Na civilização grega a memória e o esquecimento atuavam como forças complementares, a primeira associada à sabedoria e pensamento, a segunda à morte e à noite, conforme (Coimbra,1997, apud Carvalho,2003 p.9) ou ainda como Lacerda Segunda (2011) lembra esse par de forças complementares atuava de maneira a manter o equilíbrio necessário entre recordação e esquecimento. Certamente a memória era mais valorizada pois através dela, para os gregos seria possível chegar-se à verdade, quebrando barreiras entre passado e presente assim como entre os mundos da vida e da morte.

Para além desta concepção coloca-se a memória freudiana, memória do inconsciente à qual não temos acesso direto, mas nossas experiências e pesquisas sinalizam para a possibilidade de pensar a memória do professor como um enigma a ser decifrado, que através dela alguma verdade possa se insinuar, ou seja, como o passado escolar se constitui também em matéria-prima que nos permita em suas trilhas encontrar marcas que evidenciem suas relações com o saber e conhecimento. Afinal sob que império coloca-se o educador diante dos mesmos: valor de uso e/ou valor de troca?

Assim, retomando a metáfora utilizada por Freud no emblemático texto da Etiologia da Histeria (1896/1996) sobre o trabalho de escavação do arqueólogo e o trabalho psicanálise, pensamos com o "arqueólogo do inconsciente" que na elaboração da memória educativa nos deparamos com os restos que a escrita transporta os quais não apenas instigam, quanto suscitam por vezes a necessidade de re-escrever, de remover o lixo começando dos resíduos visíveis e descobrir o que está enterrado, para que uma vez decifrados e traduzidos fornecerem informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais remoto passado... Saxa loquuntur!  (as pedras falam)

Desde 1891 a noção de memória está presente nos trabalhos de Freud, mostrando como age na base da causalidade psíquica, como produz e organiza o presente e a sua dependência ao aspecto pulsional envolvido, ou seja, constitui atributo essencial do aparato anímico. No Projeto para uma Psicologia Científica (1895) apresenta-a como o poder que uma vivência possui de continuar produzindo efeito. As questões da temporalidade e da memória, nunca deixaram de ser objeto de seu interesse, como observa Tanis (1995) embora um território traiçoeiro.

Quando na virada para o século XX, intencionalmente, lança a Interpretação dos Sonhos, Freud (1900/1996) introduz o que chamou: "uma primeira diferenciação na extremidade sensorial. Em nosso aparelho psíquico, permanece um traço das percepções que incidem sobre ele. A este podemos descrever como "traços menêmicos" e à função que com ele se relaciona damos o nome de Memória" (p.568)

Em outros escritos, como Lembranças Encobridoras cujo texto original foi publicado em 1899 chama a atenção sobre as fantasias que podem brincar com a nossa psique e muitas lembranças dos primeiros anos não são como elas foram e por isso mesmo "encobridoras". No texto do Bloco Mágico (1924/1996) para explicar o funcionamento do aparelho psíquico enquanto aparelho da memória, utilizou da analogia com um pequeno invento semelhante a uma prancha de escrever para demonstrar que por trás do sistema perceptual que recebe as impressões (mas não retém seus traços), existem os sistemas mnêmicos que armanezam estas percepções e são inapagáveis.

Aos educadores, o artigo Algumas Reflexões sobre a Psicologia Escolar (1914/1996) suscita especial interesse. Escrito para um volume coletivo em comemoração ao 50º aniversário de fundação do colégio no qual tinha sido aluno, refere-se não apenas sobre a escolha de uma profissão mas das "marcas" dos velhos mestres:

Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres  (p.248)

Neste sentido, pensamos que os saberes metapsicológicos possam contribuir para a compreensão do ato da escrita da memória educativa e apontar para um possível reposicionamento do sujeito não apenas diante das vicissitudes da profissão docente, mas também ao encontro das marcas sinalizadoras sob as quais estão se constituindo. Reconhecemos como Blanchard que "cada professor, através deste ato de fala singular que constitui uma aula, impõe ao aluno um cenário pessoal implícito. Trata-se de uma construção que identifica o professor quase da mesma maneira que uma assinatura" (BLANCHARD-LAVILLE,2001,p.2009) assim como pensamos encontrar nas memórias a assinatura de seu posicionamento quanto às relações conhecimento e saber.

A partir dos dados expressivos, em números absolutos de candidatos inscritos no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação/UnB nos últimos anos ((Mestrado/Doutorado) fica evidenciada a demanda crescente pela qualificação/titulação profissional. De outro modo, nos interrogamos sobre o que, realmente, move os docentes nesta direção. A profissão de educador também estaria caminhando pela lógica do capital, do mais ter? Mais diplomas, mais cursos e/ou metodologias na direção do ganho fácil, rápidas progressões funcionais ou qualquer outro valor de troca disponível no mercado da formação docente?

Diante destas e outras questões, vislumbrou-se que a análise de memórias educativas elaboradas por mestrandos e doutorandos deste programa, inscritos na área de concentração Educação e Ecologia Humana, linha de pesquisa Educação e Subjetividade (2009/2010), permitiria alguma compreensão do que, possivelmente, os mobilizaram em busca da pós-graduação considerando o instigante tema do 8º Colóquio Internacional do Lepsi e 3º Congresso da Ruepsy- declínio dos saberes e o mercado do gozo: a psicanálise na educação.

A importância da memória educativa e sua leitura tem-se inspirado, como já referendado, nos escritos freudianos. Em nossas palavras estão outras, falam com outras e a psicanálise que trabalha com o discurso, vem nos lembrar: é a memória do dizer. Nós nos constituímos neste dizer, o que nos afeta e/ou afetou - ou seja, a memória produz sentido.

Os textos dos memoriais (14) estão repletos dos mais diversos professores que vão se insinuando enquanto personagens fundamentais da história construída em vários tempos e por várias mãos. Por intermédio destes mestres, na escrita da mestranda (2009)

que nos encantamos ou desencantamos com áreas de conhecimento e saberes. Nosso percurso enquanto profissionais está irreversivelmente articulado à história deste. Seus traços vão continuar conosco, compondo novos textos a cada novo encontro/desencontro

Assim, o conhecimento não deve ser dissociado dos territórios existenciais, há uma rede semiótica e a subjetividade do educador se constitui conforme a história pessoal, a sua formação não é dada à priori. Afinal, o que importa é "mais" conhecimento? Mas que conhecimento?

Da mestranda ( 2009) professora de um curso on-line:

...as pessoas temem muito se expor através da escrita. Muito mais do que pela fala. Por incrível que pareça. Esta experiência foi o que me trouxe à Faculdade de Educação para o curso de mestrado, pois me encontrei orientando estes alunos em produção escrita e percebi que precisava me qualificar para orientá-los com condições mais profundas. Por isso estou hoje aqui.

Em suas memórias o pós-graduando (2009) escreveu:

...passei por muitas escolas em minha vida profissional. Não posso dizer que não sou feliz. Sou feliz e faço o que me dá prazer e conclui: o meu desejo se completa todos os dias, o que aprendi como aluno me dá certeza que estou no caminho certo!

Com meridiana clareza é possível reconhecer que a elaboração da memória educativa não é apenas um texto-documento, mas um dispositivo. Dispositivo que se fundamenta na emergência mínima do sujeito da enunciação.

Do relato à reflexão:

Sonho crescer. Do alto dos meus quase 1,70 metros de altura, desejo alcançar novos níveis de desenvolvimento pessoal e profissional. Não sei, exatamente se é possível separar o pessoal do profissional. Se o que ainda quero aprender de cinema, literatura, filosofia, línguas estrangeiras, de teorias sobre a educação ou gestão, vão ter influência em um ou outro plano da minha vida. Seja pelo meu lado "direito" ou pelo meu avesso, planejo cada dia da minha vida buscando Ser uma pessoa cada vez mais especial para mim e para aqueles que me acompanham nessa trajetória.

Na verdade, tudo se articula em nossas experiências do cotidiano escolar e ao escrever o memorial é como uma tentativa de ordenação na formação e constituição do sujeito. Blanchard analisa:

...escrevo hoje este relato do meu percurso, num efeito de ao-depois (aprés-coup) no sentido freudiano. Isto é, observando meu trajeto passado á luz de hoje e tentando conferir-lhe um sentido, elaborá-lo à luz do presente. O presente, advindo sem cessar, nos obriga constantemente a refazer esse sentido para agir de modo que a história passada seja integrável à história em vir-a-ser (BLANCHARD, 2001,p.39)

Na escrita das memórias, ficam evidenciadas que o momento privilegiado da aprendizagem é quando ele desdobra sua relação de desejo, o aluno se torna testemunho, expectador de como o professor se relaciona com o objeto de conhecimento. O encontro é muito especial, transmite-se algo do sujeito, possivelmente até mesmo as relações de fruição do conhecimento como possibilidade de emancipação, sem justificativas extras: valor de uso.

Na outra face da moeda, também emerge a aposta nos cursos de capacitação como garantia de sucesso profissional, bom para o consumo sob o império do valor de troca

...acreditava que fazendo muitos e bons cursos de capacitação seria uma professora melhor...seria um caminho para o sucesso dos meus alunos e o meu enquanto profissional. Diante dos conflitos sentia sempre uma angústia, visto que não tinha soluções e faziam com que ficasse com uma sensação de impotência e muita culpa (mestranda/2009)

Assim, reconhecemos que os textos das memórias são preciosos na revelação de que longe de serem personagens coadjuvantes, principalmente, por intermédio dos mestres é que nos encantamos ou desencantamos com determinadas áreas ou saberes, deixamo-nos seduzir pelo conhecimento tal como no império adâmico e/ou utilizamos no mercado do gozo e consumo. Enfim, que a história da nossa formação poderá melhor dizer onde está nosso "desejo".

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, I.M.Z P. (2006) O lugar da memória de vivências na instituição escolar e a constituição da identidade do professor: (im) possíveis conexões com a psicanálise. In Anais do V Colóquio do LEPSI IP/FE-USP. São Paulo.

BLANCHARD-LAVILLE,C. (2001) Os professores entre o prazer e o sofrimento. São Paulo: Edições Loyola.

CARVALHO,P. (2003) Uma investigação sobre a memória em Freud. Dissertação de Mestrado- Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Psicologia.

FREUD,S. (1896/1996) A etiologia da Histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão,trad.). (vol 3, p. 190). Rio de Janeiro: Imago.

__________(1886-1889/1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S.Freud (Jayme Salomão,trad). (vol 1, pp.382-384). Rio de Janeiro: Imago.

_________(1900/1996) A Interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão,trad.). (vol 5, pp. 564-579). Rio de Janeiro: Imago.

_________(1889/1996) Lembranças Encobridoras. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão,trad.). (vol 3,pp. 287-309). Rio de Janeiro: Imago.

__________(1924/1996) Uma nota sobre o bloco mágico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S.Freud (Jayme Salomão,trad.). (vol 19, pp. 251-261). Rio de Janeiro: Imago.

__________(1914/1996) Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão,trad.). (vol 13, pp.247-259). Rio de Janeiro: Imago.

KURY, M G (1990). Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro, RJ. pp. 405.

LACERDA, S.K M de. (2011) Memorial: uma escrita de si? Dissertação de Mestrado- Universidade de Brasília: UnB, Faculdade de Educação.

TANIS,B (1995). Memória e temporalidade: sobre o infantil em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.