8Das memórias educativas: a emergência da história singular do professor e sua relação com o saberA produção de conhecimento em um caso de psicose author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Inibição na escrita num adolescente e sua transferência com o Outro

 

 

Isael de Jesus Sena; Maria de Lourdes Soares Ornellas

 

 

A partir do um, a clínica tenta aceder ao múltiplo, para em seguida reencontrar o um. Porém o sujeito é, por definição, uma exceção ao universal: ele resiste precisamente a ser universalizável.

François Ansermet, psicanalista, 2003

 

O desejo de escrever estas letras

A escuta psicanalítica de adolescentes oriundos de segmentos da classe social menos favorecida, que enfrentam dificuldades de aprendizagem, me coloca a interrogar a teoria psicanalítica, contribuindo nesse mesmo tempo para a minha escrita sobre um caso o qual irei relatar mais adiante.

Cada caso permite observar que a dificuldade de aprendizagem é uma saída do sujeito frente ao desejo de outrora dos pais, a demanda da escola e até mesmo um mal- estar que pode ser lido como uma questão de ordem inconsciente. Por outro lado, não podemos desconsiderar que a escola ao nomear esse entrave como "fracasso escolar", aponta diversos fatores como hipóteses: a questão social, dado o ambiente onde convivem esses sujeitos, em condições precárias de subsistência, família "desestruturada", presença efetiva da participação dos responsáveis na vida escolar do estudante, a falta de capacitação do professor, entre outros exemplos.

A psicanálise, certamente, não vai se debruçar a analisar essas nuances que fogem à escuta do seu campo. Porém, é necessário saber que fazem parte do contexto os tais entraves anteriormente citadas e, que possivelmente exercem alguma causalidade neste conjunto de situações onde se misturam sujeito, política e direitos. Da adolescência à qual me refiro, compreende meninos e meninas encaminhados pela coordenação das escolas, com a queixa de que tem inibições, não progridem e demandam uma escuta.

Diante de uma escuta e de um olhar diferenciados sobre essas vicissitudes, e que constituem as tramas de cada sujeito, emergiu em mim o desejo de pesquisar sobre a inibição na escrita. Trabalho que me debrucei na conclusão do Curso de Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica, pela Universidade Federal da Bahia, orientado pela Profª Phd. Maria de Lourdes Soares Ornellas (2010).

 

A escrita e a sua inibição no escrevente

A escrita é feita sobre a folha de papel, tendo esta, sofrido diversas mudanças ao longo da História,como bem nos situa Ornellas (2009, p. 31). A autora nos remete ao momento histórico das inscrições nas rochas, na areia, até o pergaminho, passando pelo papiro, chegando às paredes das casas e, na atualidade, a tela do computador. "Escrever é o começo dos começos", ressalta Ornellas.

É sobre a questão da escrita que a psicanalista Rego (2005, p. 66-90) se debruçou a estudar. Em sua tese de doutorado nomeada de Traço, letra e escrita na/da psicanálise, abordou questões fundamentais acerca da escrita, recorrendo a importantes teóricos do campo da lingüística, da história e da psicanálise, que trouxeram contribuições significativas sobre o tema. Rego faz referência ao conceito defendido por Février, em seu livro clássico Historie de l´écriture, quando ele declara ser a escrita um procedimento do qual nos servimos para fixar a linguagem articulada, uma vez que esta é fugaz em sua própria essência. A escrita era apenas uma ação independente, mas tornou-se ao longo dos anos uma forma de notação do pensamento e da palavra.

Historicamente a escrita era contemplada em diferentes contextos. Era um ato mágico criado pelos homens das cavernas que, para garantirem uma boa caça, desenhavam os bisões flechados e sangrando. Por esta razão, Rego (2005) considera que o surgimento da escrita está relacionado às representações gráficas. Essas representações eram incisões e entalhos feitos sobre a superfície da madeira, outras ganhavam formas de gravuras na pedra, em algumas situações encontrava-se em superfícies tatuagens e marcas variadas, que estabeleciam funções de signo, pois representavam objetos materiais e seres animados. Esta relação entre a escrita, o mágico e o divinatório tem despertado o interesse dos psicanalistas pelo valor simbólico que é atribuído aos signos.

Ainda em Rego (2005), é destacada a atribuição desse interesse dos psicanalistas pelo fato de os primeiros desenhos de uma criança apresentarem fantasmas que serão recalcados e depois, retornarão como letra. A idéia concebida é que entre o desenho e a letra localiza-se o evento diacrônico do recalque. Portanto, quando uma criança apresenta uma dificuldade de aprendizagem na escrita, pode-se deduzir que o que está em jogo não se trata de uma limitação funcional, mas o valor psíquico atribuído a essa representação pictural.

A inibição da escrita deve ser buscada também nessa representação que o sujeito faz de si que vem do campo do Outro. Nesta perspectiva, concordamos com Rego (2005) quando destaca que e representação em si, ou seja, qualquer traço é originalmente representação do corpo. É uma tentativa de recuperar uma imagem do corpo que é perdida quando o sujeito é capturado na rede simbólica da linguagem. O traço vai representar o corpo como retorno do recalcado. O recalcado é cifra, não tem essência. Entendida como retorno do recalcado, a escrita pode ser vista como um rito de iniciação que realiza uma transmissão, inconsciente para quem escreve.

A entrada na linguagem coloca o sujeito diante de uma perda. A rede simbólica que sustenta a linguagem permite, através da escrita das letras, uma possibilidade de o sujeito fazer contornos frente a um recalcado perdido. A psicanálise revela que, em relação à inibição da escrita, o desejo do sujeito encontra-se ocultado, e a dificuldade em traçar letras sobre o papel revela um impasse entre o sujeito e o Outro.

A clínica, lócus da prática psicanalítica, permite observar fenômenos que envolvem adolescentes que apresentam inibição na escrita. Isto constitui a necessidade de analisarmos esta problemática tendo como perspectiva os impasses do sujeito frente à aprendizagem que remete também a um saber de ordem inconsciente.

Freud (1926) aponta em sua obra Inibições, sintomas e ansiedade que as perturbações patológicas da vida sexual poderiam desencadear em inibições do desenvolvimento, entre essas a inibição intelectual. Assinalou que um modo de analisar a inibição seria observar as funções do ego com objetivo de descobrir as formas que as perturbações dessas funções assumiram em cada neurose.

A inibição, numa perspectiva freudiana, é a expressão da restrição de uma função do ego. Restrições dessa espécie podem ter causas muito diferentes. Em se tratando da questão da escrita, Freud (1926, p. 94) acreditava que nesse ato de escrever, o órgão envolvido com a atividade tinha se tornado erotizado de forma muito acentuada. Em citação literal, Freud afirmou: "[...] o escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo para um pedaço de papel branco, assume o significado da copulação [...] Escrever fica paralisado porque representa a realização de um ato sexual proibido". Neste sentido, portanto, o ego renuncia a função da escrita para não ter que adotar outras medidas de repressão. Tal defesa visa evitar o conflito com o id ou o contato com o superego. As inibições eram concebidas como medidas de precaução.

Algumas inibições, de acordo com Carvalho (1993), representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia, daí o fato de o eu, renunciar a esta determinada função. É nessa perspectiva que Freud destaca que a função está restrita ao sentido erógeno, ela é restringida quando sua erogeneidade é aumentada.

A letra sobre um papel tem esse propósito de convocar o olhar do outro. Esse olho que lê, mas não fala de um leitor, pode provocar na criança alguma inibição. Os contornos de cada traço da letra trazem uma parte dessa imagem do corpo da criança. Os sintomas que surgem em torno da impossibilidade de escrever paralisam o sujeito. É nessa perspectiva que Carvalho (1993) aponta que este 'gozo do olhar' pode implicar no impedimento da criança de traçar outras formas, além do próprio corpo.

A psicanalista Klein (1970 [1931], p. 326) considerou que a angústia da criança é um fator básico de inibição do desejo de aprender. Apontando em sua obra, que o essencial para um desenvolvimento favorável do desejo de conhecimento, é que a representação do corpo da mãe esteja integrada, uma vez que a mãe representa, no inconsciente, o tesouro de tudo que é desejável.

Isso permite considerar que a razão para a inibição deve ser procurada do lado da demanda esmagadora do Outro que diz "aprenda". Segundo Cordié (1996, p.155), quando a pulsão de saber é interditada, o desejo fica abandonado. Pode-se considerar que, se a criança dedica-se somente a satisfazer à demanda do Outro corre o risco de ficar enleada numa armadilha na condição de objeto. A angústia passa a ter uma ascensão direta sobre o corpo da criança, desencadeando nela os medos de destruição. Como conseqüência o desejo será anulado. A angústia assinala o perigo, e a inibição protetora se põe imediatamente no lugar.

Se por um lado, alguns educadores consideram que a inibição do adolescente é resultado da ausência da participação da família nas questões escolares, justificada pelo declínio da imago paterna, assim como pela emancipação feminina, Santiago (2005), por sua vez, destaca que no processo de inibição, o que há de particular é o fato de que o próprio sujeito que sofre as conseqüências de uma inibição é ele mesmo agente da ação inibitória.

Os transtornos da aprendizagem apresentam desafios à psicanálise. Methelin (2008) traz a sua experiência clínica com crianças adotadas que apresentavam incapacidade de escrever. A autora nos esclarece que a idade em que a criança aprende a escrever corresponde também à idade em que ela aprende a se controlar. Nesse sentido, a criança vai ter controle sobre a sua fala, sobre o modo como vai se expressar, e as letras trazem essa questão de domínio do movimento. As dificuldades vivenciadas nesse tempo reenviam ao tempo da castração. "Os rastros da mão tem ligação com o olhar. No começo da vida, a criança "vê" com suas mãos. Na idade da escrita, sua mão, ao escrever as letras, vai dar a ver rastros." (METHELIN, 2008, p. 152).

Nesta perspectiva, podemos analisar que no ato da escrita, ou seja, no instante de produzir manualmente um rastro sobre o papel, a questão com o olhar se torna incontornável. A escrita é apreendida pela visão. O olhar, pois, antecede a leitura. Pasquier e Schnaidt (2008) consideram que, nessa precessão, neste ato escrito de linguagem, o ver e o entender referem-se a um julgamento atributivo, tanto da parte de quem escreve, quanto de que lê. Ainda que à maneira de incipiente escrita, os rastros falam de um sujeito, aquele que escreve, que traça algo de si, de sua história.

Garcia (1999) traz para a discussão que o discurso da ciência contém a promessa de um dia atingir o saber total sobre as coisas. É nessa perspectiva que compreende a inibição como uma limitação ou mesmo uma impotência de saber do sujeito. A psicanálise funda, através de Freud, uma subversão em relação ao saber quando infere que "há um saber não sabido". Isso permite analisar a inibição por outro viés que, inicialmente, foi abordada por Freud (1926) como renuncia do ego para evitar um conflito com o isso e com o "supereu". Uma função que não se realiza por causa de uma defesa. Na referência do inconsciente, não há coincidência entre olho e olhar. O olhar só intervém aqui por estar sustentado na função do desejo. Dessa forma, o olhar é o avesso da consciência. Garcia (199, p.80) considera que:

No sujeito inibido, aquele que não pode realizar o ato, o desejo falta e falta porque o sujeito se fundiu com o ideal. Para este sujeito o que há de desconhecimento na estrutura, como se pudéssemos dizer que a inibição é estruturante como limite. Como opacidade, falta, é encoberta pelo ideal. O sujeito inibido é aquele que acredita saber sobre seu desejo, o ato fica impedido, preso na armadilha do ideal.

No mesmo lugar da inibição, um desejo se realiza. A inibição é uma resposta. Trata-se de uma posição subjetiva em relação ao objeto, em seu vazio radical, implicando em uma imobilidade do sujeito. A inibição faz parte da constituição do sujeito em sua relação ao desejo do Outro; não se inscreve apenas numa dimensão clínica, é da ordem da estrutura. (LOPES, 1999, p. 83-86).

Burgarelli (2009) chama a atenção para o fato de que no período da alfabetização, o que está em jogo no movimento de entrada da criança na escrita, encontra-se bem vinculado ao que está em jogo também no seu próprio corpo, ou seja, a representação que o sujeito tem sobre si mesmo. Trata-se do momento da criança, na medida em que a leitura e a escrita vão se tornando correntes, libertar-se do corpo da mãe. Na borda do Édipo, ao assumir o falo como significante, a criança se confronta com a ordem simbólica das trocas, cujo pivô é a função paterna.

É visível encontrar nas letras um procedimento homólogo ao do complexo de castração. As bordas dessas letras, como as do corpo, precisam ser erotizadas para que passem a formar cadeias. Quanto à inibição, o que impede, uma criança de escrever antes de certa idade, não é uma incapacidade técnica, mas sim, o valor psíquico de sua relação com a representação pictural, assim afirma Burgarelli (2009).

É sobre essa questão que Bergès (2008) vem declarar que as crianças que apresentam dificuldades com a aprendizagem não devem ser reduzidas a um sintoma familiar, social e institucional. Estes sujeitos vem revelar que a entrada na linguagem não é uma aprendizagem, mas sim, uma "forçagem" do simbólico que pode ser aproximada da castração. Da mesma maneira que a criança tem contato com a fala antes da sua entrada no mundo, nas nossas sociedades, logo são inundadas pela linguagem escrita e, desse modo, inauguram suas aprendizagens e suas vicissitudes. Um caminho apontado por Bergès é que um trabalho do sujeito sobre essas questões, não pode mais ser evitado, assim como, paralelamente, à educação e reeducação do saber. Essas crianças que não aprendem, não nos ensinam somente a precisar fatores e os motores de sua ignorância, mas nos permitem observar que o "socorro" que lhes podemos aportar é possibilitar uma escuta que vai incidir não somente no imaginário, na significação, na atualização do sentido, mas sobretudo sobre o real da letra, a verdadeira escolha para apreender um saber.

 

A escuta psicanalítica

Traremos agora, um caso clínico a guisa de ilustração. Dada a extensão do caso, serão privilegiados alguns extratos do mesmo. Trata-se de um adolescente de onze anos, com a queixa inicial de inibição na escrita. Quem trouxe esse adolescente em palavras foi a sua mãe a quem nomeio de Aparecida: uma jovem senhora, com 35 anos de idade, empregada doméstica, de religião cristã evangélica, tendo cursado até a 3ª série do Ensino Fundamental I, vivendo um segundo casamento.

Nas palavras de Mannoni (1980) estávamos diante do discurso da mãe, falando sobre o filho a ela alienado. A entrevista realizada numa primeira consulta, tanto com a criança como com os pais, traz a marca da escuta psicanalítica. Ao analista cabe apurar para além desse objeto trazido, o sentido do seu sofrimento na própria história dos pais.

Aparecida conheceu Francisco (nome fictício), seu primeiro marido, numa festa de sua família. Dois anos foi o tempo que durou o namoro, até que decidiram morar juntos. Após o nascimento de sua filha Fernanda (nome fictício), teve um parto prematuro, no 6º mês de gestação, de um menino que conseguiu sobreviver mais três meses. Conforme relatou, se o filho estivesse vivo, traria o nome do pai.

Apesar da queixa de ciúmes e da violência doméstica, a ponto de causar-lhe ferimentos, Aparecida mantinha-se naquela relação com Francisco. Após saber que estava grávida de um menino, decidiu terminar o relacionamento conturbado. Durante o parto, enquanto aguardava sozinha, na enfermaria, em situação de desamparo, decidiu nomear o filho de João Gabriel. Se consultarmos a tradição judaíco cristã, esses nomes são significantes que, em comum, apelam para missão.

Quando João Gabriel nasceu, o seu pai decidiu visitá-lo na maternidade. Após esse encontro com o filho, foi até o Fórum para fazer o registro da Certidão de Nascimento. Para surpresa da mãe, e "salvação" da criança, o pai decidiu registrá-lo com o seu primeiro nome (Francisco). Essa marca do pai é um significante fundante para esse sujeito. De volta ao hospital, com a posse do documento, surpreende a ex-esposa com um novo nome. Nesse sentido, concordamos com Lacan (1999), quando situa o pai como uma metáfora. Uma metáfora é um significante que surge no lugar de outro, o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno.

Francisco, ao completar onze anos, no momento preciso das entrevistas, começou a apresentar uma inibição na escrita. O que essa inibição denunciava, justamente na letra, no começo de sua adolescência?

Melman (2007) se propõe a analisar a adolescência sob o termo de "crise psíquica", considerando o fato de que o sujeito, nesse tempo, é convocado a ocupar um novo papel, mudando o seu estatuto social, tendo que se assumir "responsável" por seus atos, pela própria mudança subjetiva e pelo seu lugar no mundo dos adultos. O adolescente ocupa outra posição. Posição que exige rupturas, mas, ao mesmo tempo, tem a possibilidade de manifestar a sua singularidade, na medida em que constrói laço social com um grupo, novas identificações de caráter sexual e fálico. Dúvidas e incertezas frente as novidades são tentativas de responder ao Outro, uma vez que o adolescente não compreende o que o Outro quer para si.

Em entrevista, Aparecida relatou que seu filho tinha perdido o ano escolar, era um menino que vivia mais interessado em jogar bola, apresentava timidez para dirigir-se ao quadro e era caracterizado como "o brigão" em uma turma de alunos da qual era o menor. As frequentes repetências levaram a mãe a pagar um reforço escolar. Esse esforço vinha justificado por seu desejo de que ele fosse bem sucedido, porque ela tinha "fracassado" em seu curso escolar. "Ele é apegado a mim. Não fica sem eu. Se eu não estiver em casa ele não se alimenta direito; as vezes levo ele para o trabalho", revelou.

Mannoni (1980) observa que ao viver com o seu filho, a mãe acaba às vezes se esquecendo do ser que se esconde atrás do objeto que deve ser cuidado. Falta-lhe, em relação a si própria, certo distanciamento que lhe permitiria às vezes espantar-se com determinado estilo de comportamento.

Na primeira entrevista, Francisco, enquanto falava, chorava e, dizia que sofria violência física de sua mãe e do seu padrasto. Eles batiam com fios condutores de eletricidade para forçá-lo a estudar e a escrever. Às vezes, batiam a sua cabeça contra a parede ou jogavam sobre o seu corpo qualquer objeto que tivessem próximo às mãos (madeira, vasos e outros). Sua mãe insistia para que durante as férias ele pegasse os livros da escola e ficasse dentro de casa. O pai de Francisco tinha constituído uma nova família e morava numa cidade vizinha. No discurso da mãe, o pai era destituído de sua função, desqualificado, desvalorizado e tratado como um dependente, porque fazia uso esporádico de cannabis sativa. "Praticamente, eu sou a mãe e o pai para ele. O pai dele usa coisas erradas", afirmou Aparecida.

Na primeira entrevista, Francisco chorou intensamente e manteve-se falante, revelando que, às vezes, gaguejava na frente da mãe, quando esta lhe exigia ser bem sucedido nos estudos. Questionei sobre como poderíamos encontrar alguma saída diante daquele excesso de castigos que sofria? Ele respondeu: "Diga para ela me deixar em paz, me deixar aprender por si próprio, me deixar ir pra casa do meu pai e parar de falar de violência".

O pedido de Francisco para morar com o pai poderia ser analisado como um apelo como saída frente à perversão do padastro? Se o Nome-do-Pai não se fazia presente no discurso da mãe, e o pai não podia comparecer para fazê-la dividida, qual deveria ser a posição do analista, diante daquela configuração? "Quando a mãe faz a hipótese de uma demanda no filho é porque formula a hipótese prévia de que o filho vai articular essa demanda ao desejo dela." (BALBO e BERGÉS, 2002, p. 33).

O sintoma de um adolescente dentro da estrutura familiar tem uma função de projetar o mal-estar desses laços e simbolizar uma configuração de posições subjetivas. Cordié (1996) nos chama a atenção para o fato de que, em relação às inibições, a angústia será tanto maior no sujeito quanto mais esta permanecer identificada ao objeto "a" da pulsão do Outro (materno). Essa posição subjetiva de alienação ao desejo materno deixa o sujeito devotado à satisfação desse Outro, o que pode provocar um estado de "anorexia escolar", e o sujeito despenderá toda a sua energia para nada saber.

Foi ofertada a Francisco a possibilidade de ele retornar ao serviço para poder falar sobre aquele mal-estar frente a demanda da mãe. No entanto, Aparecida não o trouxe.

Passado alguns meses, enquanto aguardava um atendimento com a assistente social, Aparecida se depara comigo na sala de espera e logo anuncia que tem um comunicado a ser feito - aperta firmemente a minha mão e diz: "doutor, depois que o meu filho esteve aqui e falou com o senhor, ele voltou a escrever, está bom na escola".

A psicanálise revela que, em relação à inibição da escrita, o desejo do sujeito se encontra ocultado, e a dificuldade em traçar letras sobre o papel revela um impasse entre o sujeito e o Outro. Se, de um lado, as instituições públicas trazem desafios à psicanálise, de outro, percebe-se que a oferta de uma escuta psicanalítica que considera a questão do tempo, as questões sociais e outros fatores, trazem contribuições ao sujeito. E ratificando as considerações colocadas por Piñon (2010, p. 69), acabam "produzindo efeitos, na direção da formulação de uma demanda e, consequentemente, na mudança de posição".

 

(In) conclusões

(In)conclusões - este final é assim considerado porque tenho dúvidas em apontar conclusões fechadas, acabadas. Na verdade, elas ainda me colocam a pensar, refletir, (re)ver, reexaminar aquilo que poderia fazer avançar o processo de ensino e aprendizagem, e os impasses de um sujeito frente ao tempo posto pela escola e a família.

Avançar remete a certas condições colocadas para que cada sujeito possa fazer laço social. Avançar no ensino, como foi o caso de Francisco. Ele aprendeu que traçar as letras sobre o papel implicava, sobretudo, em sua transferência com o Outro.

A transferência desprazerosa com o Outro pode trazer consequências em que a anulação do desejo e a inibição do sujeito surgem como resposta. Se o desejo de saber, fica numa posição ideológica, marcado na condição de uma obrigação, que não percorre o circuito do desejo, as implicações em torno disso é a fragilização do sujeito.

Por isso, precisa-se de um pai, também, para fazer essas passagens. "Deixe eu morar com o meu pai", era esse o desejo de Francisco. O pai surge como aquele que tem um importante legado, desde a entrada de Francisco no mundo da linguagem. O pai nomeia o filho com o seu próprio nome. Essa nomeação também vem desvelar o desejo do pai de marcar uma diferença para a mãe de Francisco. No momento do desespero, o pai surge como aquele que pode "salvar" a criança. O pai é o significante que vem substituir o desejo da mãe. O filho tinha o nome do pai, mas, frente ao modo como se configuravam as vicissitudes da transferência com Aparecida, Francisco precisava do Nome-do-Pai para lidar com aquela realidade na qual o real em jogo o paralisava e provocava angústia.

Enquanto a marca sobre as bordas do papel nos convida a ler, os rastros deixados na subjetividade, efeito de linguagem, requerem um tempo subjetivo para elaboração. É neste sentido, que antes da criança ou adolescente chegar ao consultório as impressões sobre este sujeito os antecedem. O parental comparece para falar do mal-estar do filho, mas, nessas falas, as marcas inconscientes começam a revelar o lugar do sujeito dentro do complexo familiar.

É preciso abrir o envelope das histórias de vida das tramas do sujeito que nos procuram, pela via da suposição do saber e transferência, para lermos o não dito nas entrelinhas dessas cartas. Mãe, pai e filho, amalgamados em seus enredos, nessas marcas de linguagem, deixam as suas pegadas quando falam sobre os dramas que lhes acometem. O analista lê e escuta. Ler o discurso, a fala, para não cair num engodo. À medida que a demanda vai se formulando, as letras mudam de posição e o amalgamado cede lugar às idiossincrasias. O filho "melhora" quando vai ao analista. Isso revela a marca da psicanálise. Não se trata somente do bem-estar, do cuidar, mas da ética do sujeito, do desejo que enlaça as escrituras inconscientes que se revelam quando dá a cada um o lugar para falar. É preciso ressaltar que o sujeito da psicanálise é implicado e responsabilizado por seu enunciado.

A psicanálise lança uma luz para a educação. Uma luz que clareia e ao mesmo tempo desvela e pode elucidar. Ao contrário de manter o professor na condição de impotente, pode-se possibilitá-lo em interrogar de qual maneira lidar com a problemática do aluno-sujeito inibido na letra.

 

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