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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A especificidade do saber na operação analítica: impasses e possibilidades da psicanálise na universidade

 

 

Jamille Lima

Doutoranda do programa de Pós –graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ), Bolsista da CAPES

 

 

Esse trabalho surgiu a partir da pesquisa da minha tese de doutorado que tem como primeiro eixo de investigação a pontuação de Lacan (1967-68) de que o discurso analítico obedece a uma lógica determinada. Partindo dessa premissa, a pesquisa se fundamenta na problematização da lógica que rege o discurso do analista, tendo como contraponto a lógica em jogo na operação científica e suas relações com a produção do saber no discurso universitário.

Dessa maneira, o presente trabalho tem por objetivo destacar a distinção entre a posição ocupada pelo saber no discurso do analista e no discurso universitário. Tendo como ponto de partida tal distinção, Lacan (1969-70/1992) nos enuncia que saber não é a mesma coisa que conhecimento. Contudo, a diferenciação entre esses dois campos se coloca em relação ao discurso do analista, não sendo problematizado pelo discurso universitário.

A distinção entre saber e conhecimento é ressaltada por Lacan (1969-70/1992) com o intuito de demonstrar que a operação da linguagem se articula a uma estrutura e não a um conteúdo. Dessa maneira, o saber próprio à psicanálise diz respeito a um encadeamento significante que obedece a uma estrutura determinada, ou seja, não tem relação com o acúmulo de conhecimentos ou informações.

Esse é o ponto central no qual gira os nossos questionamentos sobre os impasses que a psicanálise encontra na sua relação com o discurso universitário, e, ao mesmo tempo, sobre os caminhos a serem tomados para a articulação entre esses dois discursos no processo de construção dos conceitos em psicanálise na universidade.

Vale ressaltar que o objetivo ao recorremos à distinção entre o lugar que o saber ocupa no discurso do analista e no discurso universitário não é fazer uma confrontação entre esses dois modelos, muito menos uma tentativa de estabelecimento de uma valoração entre eles. Ao contrário, trata-se de demonstrar os impasses e possibilidades que tal distinção coloca para a articulação entre a psicanálise e a pesquisa universitária de seus conceitos.

Em contraposição ao saber em jogo no discurso universitário − onde o conteúdo se traduz em conhecimento − o discurso analítico coloca o saber no lugar da verdade produzida pelo encadeamento significante a partir do trabalho de um sujeito. Um ponto importante de ser ressaltado nessa distinção é o fato de que o saber da psicanálise é um saber inconsciente.

Podemos nos perguntar, então, o que quer dizer um saber que não se sabe, isto é, o que caracteriza um saber que é inconsciente?

É em torno dessa questão que Freud vai trabalhar na escuta das histéricas. Ao ouvir suas pacientes ele percebe que o que está em jogo nesses relatos não são os fatos em si, mas o modo como esses sujeitos constroem a sua história a partir do seu posicionamento diante desses fatos. O caso Dora (FREUD, 1905[1901]/1996) explicita bem o modo com o qual Freud operava no discurso analítico, na medida em que diante da queixa da paciente ele a questiona sobre o que ela tinha a ver com aquilo do qual se queixava. Dessa maneira, o que interessa a Freud na sua investigação não é o acontecimento, mas o modo como o sujeito se posiciona frente ao seu relato e se vê implicado na produção de um saber enquanto verdade inconsciente do seu trabalho em análise.

Lacan (1969-70/1992) retoma essa proposição freudiana para demonstrar que no discurso do analista o saber inconsciente está estritamente vinculado ao trabalho de um sujeito em análise, ou seja, esse saber se articula em uma estrutura própria.

Partindo dessa especificação do saber em jogo na operação analítica, nos perguntamos sobre o lugar que a psicanálise pode ocupar na universidade; uma vez que na universidade o que predomina é o saber ocupando a posição de agente que movimenta o discurso universitário e está desvinculado da experiência de um sujeito, isto é, pode ser repetido, reaplicado, e, até mesmo, contestado sem que se saiba sequer quem o produziu.

Lacan (1968-69/2008) problematiza essa questão ao comentar sobre a entrada do saber no campo da mercadoria e suas implicações para a transmissão universitária. Nesse contexto, salienta que com o advento do modelo científico há uma disjunção entre saber e trabalho.

Ao partir do advento da ciência e de suas implicações com um novo modo de articulação do saber, Lacan (1968-69/2008) define o discurso universitário como sendo aquele no qual o saber ocupa uma posição de comando que exclui da sua operação o sujeito que o produziu, ou seja, o saber em jogo na universidade tem relação com o modelo de funcionamento científico que se caracteriza por não depender do posicionamento do sujeito que o aplica.

Um exemplo desse modo de funcionamento é a operacionalidade das fórmulas físicas e matemáticas, isto é, não é preciso saber sobre o sujeito que as inventou ou sobre as condições onde elas foram produzidas para que se possa constatar a sua operacionalidade ou eficácia. Esse modo de funcionamento aproxima a transmissão do conhecimento universitário ao modelo lógico da ciência, no qual o saber se origina de uma articulação de possibilidades combinatórias entre proposições desprovidas de qualquer sentido e sem que um sujeito seja convocado a responder por essa articulação.

Lacan diferencia a lógica da ciência de uma teoria do conhecimento, porém, reafirma que "é justamente à luz do aparato da ciência, na medida em que podemos apreendê-lo, que é possível fundar os erros, os tropeços e as confusões que, efetivamente, não deixavam de se apresentar no que se articulava como conhecimento [...]" (LACAN, 1969-70/1992, p.151). Dessa maneira, apesar da lógica científica não se pautar no acúmulo de conhecimentos, ela permite que o conhecimento seja veiculado através dos efeitos que a articulação significante que ela introduz no mundo produz. Dito de outro modo, a ciência introduz no mundo coisas que não são da ordem do conhecimento ou da percepção, porém, é através dessa introdução de uma operação significante que um tipo de conhecimento passa a ser articulado enquanto tal. Assim, é a partir do advento da ciência que o saber no discurso universitário passa a operar embasado na lógica científica fazendo equivaler saber e conhecimento.

É nesse ponto que o nosso problema de pesquisa se insere. Se, como Lacan já havia destacado, a clínica nos indica que o discurso analítico obedece a uma lógica determinada, nos perguntamos sobre a especificidade dessa lógica.

Partindo da referência freudiana à lógica fálica − na qual a diferença entre os sexos se coloca em relação à presença ou ausência do pênis e não enquanto constatação da existência de dois sexos − tomamos como ponto de investigação a lógica clássica. Com base nesse modelo lógico, Freud (1925/1996) trabalha a partir de uma perspectiva atributiva, na qual o falo tem um valor predicativo, isto é, a argumentação lógica clássica se baseia na articulação entre um sujeito e um predicado. É nesse modelo lógico que Freud se apóia para dar curso à sua investigação da diferença entre os sexos, articulando o falo ao pênis e atribuindo a sua presença aos sujeitos do sexo masculino e sua ausência como característica do sexo feminino.

Lacan retoma a investigação freudiana sobre a lógica fálica no seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-63/2005) e, ao contrário da leitura clássica atributiva, passa a analisar o falo enquanto função. Nessa perspectiva, o falo adquire o estatuto de variável e passa a operar na articulação entre proposições, isto é, deixa de ter uma vinculação com um sentido unívoco − como o que estava em jogo na lógica atributiva − através da sua vinculação ao pênis. Contudo, essa aproximação do falo ao discurso matemático não implica uma redução do discurso analítico ao modelo lógico-matemático.

Essa é a sutileza da análise lacaniana da lógica fálica, na medida em que ao abrir mão da univocidade de sentido em jogo na lógica  atributiva clássica, Lacan não coaduna a lógica fálica ao modelo lógico-matemático − no qual a relação entre as proposições prescinde completamente de qualquer articulação com o sentido. Ao contrário, reafirma que a função fálica diz respeito a uma significação muito particular, a significação do falo, com toda singularidade que essa significação pode comportar.

Esse é o paradoxo da análise lógica lacaniana. Se por um lado, o falo não pode ser analisado como um atributo − o que ocorre na lógica clássica − tampouco pode ser considerado um caractere matemático desprovido de qualquer sentido, como na lógica matemática.

Desse modo, o problema que se coloca para a pesquisa em psicanálise na universidade é a inadequação dos seus conceitos aos modelos de construção do conhecimento científico na universidade. O saber em jogo na transmissão universitária se confunde com um tipo de concepção de conhecimento, isto é, uma apropriação de conteúdos que serão reaplicados, contestados ou comprovados com base numa argumentação lógico-científica.

Segundo Lacan (1968-69/2008), esse é o tipo de saber que se transformou em mercadoria, na medida em que passa a ser algo que pode ser adquirido, comprado por qualquer um que se disponha a pagar por ele. Não se trata de um saber no qual o sujeito é convocado a dar provas de um percurso, nem onde a transmissão se vincula a uma tomada de posição e o saber se articula ao trabalho de um sujeito. Trata-se de uma operação capitalista onde o saber torna-se um produto ofertado, como nos diz Lacan (1968-69/2008, p. 35), "no ar de feira que tomam as coisas desde algum tempo na universidade".

Lacan (1968-69/2008), ao longo do seu ensino, sempre chamou a atenção dos psicanalistas para o fato de que ao propor que a psicanálise opera com um saber que se estrutura como inconsciente, ele não quer dizer que a psicanálise não tenha uma preocupação com o rigor na aplicação de seus conceitos. Ao contrário, é nesse ponto mesmo que ele convoca os psicanalistas a darem provas sobre o que o discurso analítico comporta de especificidade na produção de um saber como verdade inconsciente.

Assim, a dificuldade em jogo na articulação entre o discurso analítico e o discurso universitário diz respeito à própria construção dos conceitos em psicanálise. Lacan problematiza essa questão nas primeiras lições do seminário XI ao pontuar que "nossa concepção do conceito implica ser este sempre estabelecido numa aproximação que não deixa de ter relação com o que nos impõe como forma, o cálculo infinitesimal" (Lacan, 1964/1985, p. 25). Dessa maneira, para Lacan, a construção dos conceitos em psicanálise tem como ponto de partida sempre um salto, uma passagem ao limite, onde o que se produz é sempre um resto que não pode ser eliminado, ou seja, para a psicanálise, a construção de um conceito não pode ser separada de um percurso − seja do autor ou do estudante que se debruça sobre os escritos psicanalíticos. Partindo dessa premissa, a construção dos conceitos em psicanálise não equivale ao modelo conceitual em jogo no discurso universitário.

Ao se distinguir de uma compilação de sentidos empregados para os seus termos, onde o melhor exemplo é o dicionário, a construção do conceito em psicanálise diz respeito ao trabalho de um sujeito que se depara com a impossibilidade de fazer equivaler conceito e termo, isto é, o conceito em psicanálise não pode ser, por exemplo, reduzido a um verbete de dicionário. Lacan (1962-63/2005, p.281) exemplifica essa impossibilidade ao pontuar que na elaboração dos conceitos em psicanálise nos deparamos com o mesmo obstáculo reconhecido como o que constitui os limites da experiência analítica, a saber, a angústia de castração. Assim, o conceito se articula a uma falha no saber e não a sua adequação à produção do conhecimento. Essa é uma das vias de transmissão do saber em jogo na psicanálise e, ao mesmo tempo, indica os caminhos de uma articulação entre a psicanálise e a pesquisa universitária.

Dessa maneira, o saber em jogo tanto na experiência analítica quanto na construção dos conceitos em psicanálise tem por estrutura ser um saber que não pode ser todo, que se organiza a partir da castração e que se transmite através da apropriação pelo sujeito de sua impossibilidade de tudo saber.

Nesse ponto reside a diferença radical entre a posição do saber no discurso universitário e no discurso analítico, isto é, enquanto no discurso universitário o saber na posição de agente que movimenta o discurso tem a ilusão de produzir um sujeito que seja "senhor do conhecimento", o discurso analítico aponta para o fato de que a própria estrutura do saber implica na sua origem a impossibilidade de tudo saber.

 

Bibliografia consultada:

BLANCHÉ, R. (1985) História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russel. Lisboa: edições 70.

FERNANDES F. & COSTA-MOURA, F. "Lógica da ciência, formalismo e forclusão do sujeito" in Costa- Moura,F. (org.) Psicanálise e laço social. Rio de Janeiro: 7 letras: 2010.

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

(1905[1901]) Fragmento da análise de um caso de histeria, vol. X

(1925) Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, vol. XIX

LACAN, J. (1962-63/2005) O Seminário. Livro 10: A Angústia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

____________. (1964/1985) O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise , Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

____________. (1967-68) O Seminário. Livro 15: O ato psicanalítico, obra não publicada.

____________. (1968-69/2008) O Seminário. Livro 16: De um Outro ao outro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

____________. (1969-70/1992) O Seminário. Livro 17 O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

LO BIANCO, A.C. "O saber inconsciente e o saber que se sabe nos dias de hoje". In: Agora v XIII, n. 2. Rio de Janeiro: Contracapa, Julho-dezembro 2010.