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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Inclusão: uma maneira especializada de compreender o outro

 

 

Kelly Cristina Brandão Silva

 

 

Todos concordam, porém, que a mudança produzida no mundo do homem moderno pela ascensão da competência especializada e a irrefreável tecnologização do ambiente humano foi radical e, com toda probabilidade, irreversível. O mundo humano jamais será novamente como foi antes da ascensão da tecnologia. Se a mudança produz maior felicidade ou miséria mais funda é questão discutível e fadada a continuar a sê-lo. (BAUMAN, 1999, p. 239)

 Neste trabalho serão discutidos o excesso de sentido atribuído ao outro, numa forma de compreensão especializada, e o discurso do capitalista (LACAN, 1972/1978) – como paradigma da nossa época – a partir da perspectiva da educação inclusiva.

 

Compreensão: excesso de sentido?

Não compreender as palavras que escutava não era apenas um handicap. A ilusão de compreender, graças à qual podemos nos sentir aliviados face a um autista, era aqui impossível. Era preciso proceder a um trabalho especial de decifração, tradução e interpretação. (LAZNIK-PENOT, 1997, p. 16)

Compreensão, do latim comprehensio, "ação de agarrar com as mãos; ação de se apoderar de alguma coisa; apreensão; prisão" (FARIA, 1982, p. 124).

A Associação dos Amigos do Autista (AMA), a partir da parceria com Maurício de Sousa – criador da Turma da Mônica –, veicula através de seu site seis filmes e um gibi em que aparece um novo personagem da turma, o André, um autista. Além do site, é possível assistir a esses filmes nos comerciais de alguns canais da NET – TV por assinatura. O que chama a atenção na "apresentação" desse novo personagem é a diferença entre o contato estabelecido pela Mônica e pelo Cebolinha com o André. A seguir, algumas falas da personagem (e também narradora) Mônica em relação ao novo amiguinho:

– Os autistas não olham nos olhos das pessoas. Não acham brinquedos e nem ligam para coisas interessantes. Podem não evitar, mas também não procuram outras crianças.   (FILME 1)
– Ele é autista e crianças assim não falam ‘oi' nem acenam. Também não dão tchau. (FILME 2)
– Ele é autista e crianças assim quase não falam e nem têm interesse em falar. (FILME 3)
– Crianças assim não apontam para coisas interessantes. (FILME 4)
– O autista não imita outras crianças. Eles também não brincam de faz-de-conta. (FILME 5)
– Os autistas são crianças especiais. Às vezes têm interesses específicos e podem até fazer certas coisas melhor do que crianças da mesma idade. Por meio de terapia adequada eles podem chegar a levar uma vida quase normal. (FILME 6).

O que provoca as explicações da Mônica é a tentativa de contato do Cebolinha com o personagem André. Cebolinha aproxima-se, fala ‘oi', irrita-se com a falta de resposta, mas continua tentando comunicar-se. Nesses momentos a Mônica intervém e "narra" as características de um autista, descritas acima. No filme nº 4 Cebolinha esconde o famoso coelhinho da Mônica e esta – muito irritada – pede que lhe devolva. Cebolinha, mais uma vez, interpela André, como se este soubesse do ocorrido. Rapidamente Mônica desfaz o mal-entendido, explicando que não seria possível André saber o que estava acontecendo. No filme nº 5 a personagem Magali propõe que todos brinquem juntos e Mônica orienta os amigos a fim de lhes explicar de quais brincadeiras o André pode participar. O título do último filme (número 6) é bem sugestivo: "Quaaase normal".

A apresentação de um material divulgado pela mídia e dirigido a um público leigo – no contexto desse trabalho sobre educação inclusiva – retrata o interesse em discutir as armadilhas da compreensão do outro, a partir do excesso de sentidos que lhe atribuímos. Pretende-se ressaltar que dentre os ideais da educação inclusiva subjaz um certo totalitarismo – configurado pela razão tecnocientífica que predomina na contemporaneidade –, que pressupõe, portanto a priori, o que devemos ver no outro e o que fazer diante dele. Lembrando que o outro deve sempre coincidir com o que inventamos e esperamos dele. "Porém, nesta gestão do próximo fica sempre um resíduo; no outro se esconde uma alteridade ingovernável, de ameaça, explosiva. Aquilo que tem sido normalizado pode acordar a qualquer momento" (SKLIAR, 2003, p. 26).

A partir dessa perspectiva, podemos salientar que o personagem Cebolinha, no contato com André, parece não recuar diante da complexidade e de toda conflituosidade presentes na experiência humana. E isso não acontece porque André é autista, mas simplesmente porque toda singularidade é irredutível e, por isso mesmo, o outro é sempre incompreensível. Já Mônica compreende André, descrevendo (e prescrevendo) não só as atitudes dele, mas também a de seus amigos. O que se pretende sublinhar aqui é o excesso de compreensão, um esforço para acabar com toda ambiguidade e polissemia que caracterizam o humano.

Sobre essa problemática, é interessante apontar aqui algumas articulações feitas por Jacques Lacan acerca do trabalho de análise. O intuito é estabelecer alguns parâmetros que possam auxiliar a presente discussão acerca dos perigos da compreensão.

Já no Seminário 1, Lacan (1953-1954/1986) criticava a pretensa atitude de compreender o outro: "O que conta, quando se tenta elaborar uma experiência, não é tanto o que se compreende quanto o que não se compreende" (p. 89). Um pouco adiante, no mesmo texto, ele considera:

[...]uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. É exatamente o contrário. Eu diria mesmo que é na base de uma certa recusa de compreensão que empurramos a porta da compreensão analítica. (p. 90)

Cléro (2008), autor do Dictionnaire Lacan, no verbete Compréhension/Explication, considera: "A compreensão é uma espécie de empatia, a sensação de se aproximar ao ponto de imaginar fazer um, apesar de não sabermos nem com quem nem com o quê. Lacan engaja-se em um tipo de psicologia do compreender, girando assim a compreensão contra ela mesma" (p. 73, tradução nossa1). Na sequência do texto, Cléro cita Lacan2: "A saber, que quanto menos os afetos são motivados – é uma lei – mais eles aparecem para o sujeito como compreensíveis" (LACAN apud CLÉRO, 2008, p. 73, tradução nossa3).

No texto Televisão, Lacan (1973/1993) é ainda mais enfático, visto que assinala que as psicoterapias se pautam pela extravagância do excesso de sentido, "despejando sentido aos borbotões" (p. 20), e afirma que a questão não é se a psicoterapia faz ou não algum bem, e sim que ela conduz ao pior. Voltolini (2004), tomando como referência essa ideia lacaniana, escreve o texto A "inclusão" conduz ao pior. O autor enfatiza, entre outras questões, o ponto de semelhança entre a educação especial e a inclusiva: o especialista.

É que de maneira interessante (mas não surpreendente, afinal trata-se das pequenas diferenças), em ambos os lados da polarização da discussão sobre a política inclusiva dá-se a mesma posição de destaque ao especialista. No caso da educação especial de forma direta no trabalho com as crianças. No caso das escolas inclusivas de maneira indireta na formação dos professores para a nova realidade da inclusão. O fato é que a ênfase na participação do especialista faz parte da estratégia moderna, que de um lado investe na gestão dos problemas sociais através de medidas administrativas e do estabelecimento de políticas gerenciáveis e, de outro lado, que vê no saber científico enquanto oferece técnicas o instrumento para isso. Quando se ouve dos professores um pedido de formação especializada, estamos diante da explicitação deste ponto, ou seja, da crença na gestão tecnicamente orientada do problema. (grifos do autor)

Larrosa e Skliar (2001) alertam para o caráter etnocêntrico daquele que compreende:

De um modo um tanto caricatural, poderíamos dizer que o sujeito da compreensão – pelo menos o que se pressupõe em um certo sentido comum – é aquele que pretende abolir a distância no tempo e no espaço, aquele que quer se apropriar da totalidade do tempo e da totalidade do espaço. [...] Ele também se crê capaz de mediar qualquer diferença: entre as línguas, entre os indivíduos, entre as culturas. A compreensão é mediação, um estender pontes no espaço e no tempo, porém pontes em uma só direção: todos os caminhos conduzem ao sujeito da compreensão e ele é o centro de todos os caminhos. [...] Por isso, o sujeito da compreensão é o tradutor etnocêntrico: não o que nega a diferença, mas aquele que se apropria da diferença traduzindo-a à sua própria linguagem. (p. 18-19)

A tão proclamada diversidade – lembrando que diversos são sempre os outros – não estaria mascarando um movimento exacerbado rumo à compreensão? Não estaríamos todos convocados a responder tal qual a personagem Mônica, na linha do politicamente correto? A partir dessa perspectiva, saberíamos a priori como apreender (ou prender?!) o outro, a partir de protocolos muito bem fundamentados. Nada nos escaparia nem muito menos nos surpreenderia, anulando qualquer enigma que se interponha entre mim e o outro. Enigma esse que, de forma projetiva, tentamos apagar em relação a nós mesmos.

 

Discurso do capitalista e discurso tecnocientífico: duas faces da mesma moeda?

"Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais" (Art. 58 - Lei Nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional – 1996).

Ao naturalizar a experiência humana, transformando desejo (fruto da subjetividade) em necessidade natural, obturamos a ambivalência afetiva que caracteriza o humano. Cabe aqui ressaltar o termo necessidade, tão presente no discurso oficial da educação inclusiva. Os alunos a serem incluídos no sistema regular de ensino são nomeados pela LDBN de educandos com necessidades educativas especiais. O filósofo Giorgio Agamben (2008, p. 36) refere-se à necessidade como "ligado à realidade corpórea, mensurável e teoricamente satisfazível". O autor opõe necessidade e desejo, considerando este último como "ligado à fantasia, insaciável e incomensurável" e ainda acrescenta que ambos "não podem coincidir no mesmo objeto". A tão proclamada necessidade dos incluídos seria uma tentativa de apagamento do desejo? A ênfase na necessidade "teoricamente satisfazível", com suas preocupações materiais e estatísticas, pretenderia anular o caráter "insaciável" do desejo?

Voltolini (2007a) assinala esse reducionismo – de desejo à necessidade –, utilizando o conceito lacaniano "discurso do capitalista":

Poderíamos flagrar em Lacan, particularmente em sua fórmula do "Discurso do Capitalista", a escrita de uma operação discursiva característica de uma política que precisaria, em função de seus fins "instrumentais", fazer equivaler o homem e o animal. Trata-se de uma operação discursiva que consiste em "reduzir o desejo à necessidade".

A fim de aprofundar esse conceito lacaniano e articulá-lo aos ideais da educação inclusiva, faz-se necessário explicitar – de forma breve – o surgimento da ideia de discurso na obra de Lacan4. Os laços sociais são tecidos e estruturados pela linguagem e, portanto, denominados discursos. Goldenberg (1997) explicita essa idéia:

Todo vínculo entre as pessoas, segundo Lacan [o avesso da psicanálise], está pautado por um discurso e existem stricto sensu somente quatro discursos. Sempre que o termo for usado em sentido lato deverá ser reconduzido a um desses quatro. Como Lacan se deu ao trabalho de definir os mencionados quatro valendo-se de uma estrutura algébrica denominada ‘semigrupo de Klein', com rígidas leis de composição, o fato de ele definir durante uma conferência em Milão, no ano de 72, um quinto discurso, foi recebido pelos seus discípulos com um misto de espanto e apreensão, que só fez crescer quando o alcance subversivo deste gesto sobre o sistema foi percebido [...]. (p. 15)

Jorge (2002) esclarece que "os discursos introduzidos por Lacan correspondem às estruturas mínimas de todo e qualquer liame social, sempre concebido como fundado exclusivamente na linguagem" (p. 19). Seriam quatro as formas possíveis de vínculo social entre os sujeitos: o discurso do mestre, universitário, do analista e da histérica.

É bom recordar que o próprio Lacan chama atenção para o fato de que seus quatro discursos recobrem as (três) atividades mencionadas por Freud como sendo, na verdade, profissões impossíveis5, ou seja, lembra que esses discursos se referem fundamentalmente a impossibilidades. (JORGE, op. cit., p. 17)

Aos três modos de relacionamento apontados por Freud como fontes de sofrimento do ser humano – governar, educar e analisar –, Lacan acrescenta um quarto: fazer desejar. Sobre eles Quinet (2006) considera:

Governar corresponde ao discurso do mestre/senhor, em que o poder domina; educar constitui o discurso universitário6, dominado pelo saber; analisar corresponde ao laço social inventado no início do século XX por Freud, em que o analista se apaga como sujeito por ser apenas causa libidinal do processo analítico, e fazer desejar é o discurso da histérica dominado pelo sujeito da interrogação [...], que faz o mestre não só querer saber mas produzir um saber. (p. 17, grifos do autor)

O quinto discurso – o do capitalista – é apresentado por Lacan na "Conferência de Milão", realizada em 12 de maio de 1972. "Trata-se de um discurso que, ao contrário dos outros quatro, não faz liame social" (JORGE, 2002, p. 32). Nesse discurso somos convidados a nos relacionar com objetos-mercadoria, balizados pelo dinheiro, e assim ficamos reduzidos ao papel de consumidores. Consumidor de objetos – rápidos e descartáveis – produzidos pela ciência e tecnologia. As relações sociais não estariam centradas nos laços com outros sujeitos, mas com objetos. Nossa sociedade está marcada por esse discurso, principalmente quando notamos que a demanda de consumo torna-se cada vez mais premente.

Os imperativos do consumo, da moda, do utilitarismo e do capital não deixam espaço para a falta e o desejo, o que contradiz o conceito freudiano de que somos seres castrados, estruturalmente incompletos. Ao negar a castração, o discurso do capitalista fortalece a ilusão de que o objeto nos completaria.

No discurso do capitalista o desejo é rebaixado à categoria da necessidade fazendo-nos crer que, como se trata de necessidade, há sempre um objeto que lhe corresponde. Diante disso, o saber se reduziria a um valor de mercado – mercadoria – e a produção constante e frenética de "objetos" passaria a ser almejada por todos. Como bem nos aponta Souza (2003), somos convocados a saber o tempo todo:

Fica proibido não saber! E a engrenagem do saber/mercadoria alimenta as relações na família e alhures: como criar meninos, como criar meninas, como convencer pessoas, como enlouquecer um homem/uma mulher na cama. O que vem em seguida é que o descompasso estrutural entre a criança e o adulto toma um gosto amargo experimentado pelos pais, professores, tios, avós. A promessa de que há um saber que pode ser totalmente absorvido não deixa ilesos nem as crianças nem os adultos. (p. 141)

É interessante articular a produção incessante de novos termos que definem os incluídos – deficientes, portadores de deficiência, pessoas com deficiência – ao discurso do capitalista, já que "concernente à produção constante de objetos, marca a proliferação em escala industrial e a renovada promessa de que o produto mais recente é melhor que o anterior. Sendo assim, esse produto está mais apto para satisfazer nossos anseios" (LEITE, 2004). Ou como salienta Voltolini (2007a):

Dito de outro modo, o capitalista "cria a necessidade" para a qual o objeto produzido aparece "sob-medida". É o que demonstra sem equívocos o famoso slogan que não exageraríamos em tomá-lo como a tradução mais exata da visada capitalista: o "Não deixar a desejar". É isto, numa frase o que opera o Discurso do Capitalista, a tentativa da eliminação do desejo.

Pautado no contemporâneo discurso tecnocientífico – que privilegia a dimensão técnica à dimensão investigativa – a Ciência parece enlaçar-se ao Capitalismo, incentivando "a produção maciça de objetos no mundo, os gadjets, aqueles objetos de brilho efêmero que servem apenas para manter um clima de constante demanda, motor do capitalismo, de apelo incessante para um cada vez mais, mais, mais..." (VOLTOLINI, 2007b, p. 200). Uma produção incessante de objetos "não mais regrados pelo fato de que algo falta, mas pela promessa de que nada precisará faltar, porque haverá sempre aqueles, desde que pagos, que estarão pensando no que falta para você!" (VOLTOLINI, op. cit., p. 200).

 

O avesso: um saber não todo, menos compreensível

Lacan (1969-1970/1992), no seminário 17, O avesso da Psicanálise, analisa o discurso do mestre como fruto do recalque dos processos oníricos, inconscientes. No discurso do mestre há a busca pela univocidade e pela dicotomia (‘ou isto ou aquilo'). A radicalidade da descoberta da psicanálise – o inconsciente – a coloca, segundo Lacan, como o avesso do discurso do mestre. É tarefa da psicanálise apontar o discurso do mestre, rompendo com as dicotomias e tornando o debate mais complexo. Segundo Serge André (1998), a psicanálise propõe uma relação diferente com o saber. Normalmente pensado como algo exato, unívoco e tangível, o saber – na atualidade – se acumula, está disponível, transbordante e acessível a todos e, paradoxalmente, parece não ter mais efeito algum sobre ninguém. A psicanálise, na contramão, expõe um saber que nos implica.

Freud, ao estudar os atos falhos, já nos apontava que é no lapso, no erro que melhor confessamos o verdadeiro. E com Lacan aprendemos que a verdade tem estrutura de ficção. Voltolini (2004) ressalta o caráter atópico da psicanálise, em oposição às utopias que desfilam na pedagogia:

Talvez se possa esperar que a partir justamente de sua atopia a psicanálise possa entrar aí, não para debater, o que só repetiria o jogo da polarização, mas para confrontar com esse real, o que sempre lhe é mais característico. Se assim for ela pode funcionar como esse terceiro que entra para esvaziar o campo das certezas (opiniões), das garantias para instalar o campo das interrogações da causação do desejo de saber.

Uma das reclamações frequentes dos professores, em relação à inclusão, é justamente a falta de conhecimento específico. Em outras palavras, eles não compreendem os incluídos.Ora, se os próprios documentos oficiais ressaltam a relevância da identificação das necessidades especiais, determinadas antecipadamente, e não a posteriori, privilegiando o acesso – e excesso – às informações especializadas, justifica-se a queixa. Se os professores compreendessem seus alunos, isso necessariamente facilitaria o processo "ensino-aprendizagem", já que se saberia previamente o que e como fazer. O planejamento e a metodologia, baseados nesses parâmetros, são norteadores seguros que objetivam o desenvolvimento das potencialidades dos alunos, como preconiza a nova LDB (1996). A educação para todos, transforma-se – paradoxalmente – em educação sob medida para cada um.

O professor, diante da profusão de informações, vê-se incapacitado (daí a proliferação de cursos de capacitação) e desatualizado (por isso a frenética busca por cursos de atualização). O que se pretende interrogar aqui é a voracidade que está em jogo. Não basta saber algo, temos que saber tudo. Nesse movimento o conhecimento é permanentemente renovável, substituído, descartável – como o lixo (para isso há os cursos de reciclagem). Os professores, diante da impossibilidade estrutural de apre(e)nder tudo, tornam-se eternos alunos (daí a importância da  formação continuada).

Lebrun (2004) discute o discurso tecnocientífico presente na atualidade, ressaltando a supervalorização da eficácia e o primado da técnica em relação à teoria. "Só resta aprender a ‘gerir' da melhor forma sua eficácia, a valorizar sua gestão. Permite poupar-se da criação e da invenção" (p. 102). O autor coloca alguns efeitos desse discurso, como sua pretensão universalizante, a autoridade dos enunciados e consequente exclusão do enunciador e o apagamento do conflito. "Passar do regime dos pais para os expertos implica uma nova versão do sonho de servidão voluntária" (p. 128).

Lasch (1991) denomina "proletarização da paternidade" esse processo de anomia e esvaziamento da família burguesa original – que anula a competência parental no cuidado dos filhos e a consequente apropriação técnica e controle externo por profissionais especializados da saúde e bem-estar. O autor considera que os pais passaram a sentir-se incapazes de cumprir seus papeis domésticos sem recorrer à supervisão técnica dos especialistas. Apesar do autor não tratar especificamente do papel do professor, é possível pensarmos nas repercussões dessa "necessidade de supervisão" nos meios escolares.

Lima (2005), ao tomar como objeto de investigação o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, o TDA/H, propõe uma interessante articulação entre o enorme prestígio desse diagnóstico nos meios médicos e leigos e a "construção de bioidentidades", ou seja, a busca contemporânea por uma nova refiliação na comunidade do corpo e da saúde. O autor salienta:

Num mundo inconstante, marcado pelo esvaziamento das instituições de referência e pertencimento, a concretude do corpo próprio e os parâmetros da biologia tornam-se umas das poucas fontes de certeza, segurança e estabilidade a qual recorrer. A ciência se propõe a curar a carência de sentido do sujeito contemporâneo prescrevendo uma constante atenção ao corpo, este no papel de sujeito e objeto, sempre disponível a ser vasculhado por tecnologias visuais, corrigido cirurgicamente ou quimicamente, substituído por próteses, na promessa de um ideal de saúde e longevidade. (p. 43-44)

Bauman (1999), analisando a "privatização da ambivalência", enfatiza que o mundo não pode mais ser sustentado sem a assistência dos especialistas ou de seus produtos. "O aconselhamento especializado e os objetos projetados por especialistas que permitem a seus possuidores agir de uma forma autorizada pelo conhecimento especializado atendem também outra necessidade crucial do indivíduo: a da racionalidade" (p. 235, grifo do autor). O autor explicita um interessante emblema da "racionalidade triunfante" (p. 237) da vida contemporânea: o shopping.

No shopping, o ambiente é cuidadosamente controlado (literal e metaforicamente), claramente dividido em seções temáticas, cada uma reduzida a símbolos nítidos, estereotipados e fáceis de identificar, com a remoção de praticamente todo perigo de interpretação ambígua. [...] Os especialistas criaram esse mundo e o criaram de acordo com seu projeto inteiramente racionalizado, o qual, por ser racionalmente planejado, não contém mistérios ou armadilhas e assim se proclama melhor – mais simples, seguro e transparente [...] (p. 238, grifos do autor)

O shopping – como paradigma da nossa época – vende um estilo de vida em que tudo já foi antecipado pelos especialistas. Do estacionamento – passando pelas compras e alimentação – à diversão, tudo é cuidadosamente planejado para que nada falte.

Mesmo as surpresas são cuidadosamente programadas. A divertida experiência de cair na farra, de se deixar levar, de ser irracional pode ser desfrutada em segurança. Mesmo a catástrofe é um conceito num jogo engenhosamente projetado pelos especialistas e conduzido de acordo com regras que impedem que ele escape ao controle. (p. 238)

Acreditar que tudo está dado a priori, através dos subsídios de um saber tecnocientífico, dificulta (e por vezes impede) uma abertura possível para a interrogação e o inusitado. Se os atores da Educação – a família e a escola – não puderem suportar o não-saber, como poderão transmitir o desejo de saber?

Esse excesso de tecnicismo contemporâneo tem efetivado uma exacerbação da racionalidade instrumental, determinando um tempo que é marcado pelo efêmero, no qual a flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar essa velocidade. No lugar da unidade, a multiplicidade; no lugar da integração, a fragmentação; no lugar do a longo prazo, o aqui-e-agora. O individualismo, o consumismo e o hedonismo parecem ser, dessa forma, efeitos desse tecnicismo. 

A educação inclusiva não está imune a esses efeitos. A Declaração de Salamanca (1994), referendada pela Declaração dos Direitos Humanos (1948), marca um posicionamento crítico diante do sistema escolar excludente, porém – paradoxalmente – a inclusão tem exacerbado o poder do especialista e privilegiado a eficácia, a funcionalidade e o excesso (de informações, de técnicas e de saberes).

 

Referências bibliográficas

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1 Original em francês: "La compréhension est une sorte d'empathie, le sentiment de se rapprocher au point d'imaginer faire un, alors qu'on ne sait ni avec qui ni avec quoi. Lacan se livre à une sorte de psychologie du comprendre, tournant ainsi la compréhension contre elle-même".
2 Trata-se do Seminário 6, Le désir et son interprétation, aula do dia 21 de janeiro de 1959, ainda inédito no Brasil.
3 Original em francês: "À savoir que moins les affects sont motivés, plus – c'est une loi – ils apparaissent pour le sujet compréhensibles…"
4 Cf. Lacan (1969-1970/1992), Seminário 17 – O avesso da psicanálise.
5 Em relação a esse tema, Freud (1925/1980), em Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn, afirma: "Em um primeiro estádio, aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis – educar, curar e governar [...]" (p. 341). Em Análise terminável e interminável,Freud (1937/1980) retoma essa argumentação, sublinhando que em relação a essas três profissões (lembrando que nesse texto ele já não fala em curar, mas sim em psicanalisar) "de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios" (p. 282).
6 Lajonquière, em comunicação pessoal, esclarece que tem insistido na argumentação de que o discurso universitário é o da Pedagogia. Segundo ele, o governar e o educar estariam juntos.