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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Uma aproximação entre  Hannah Arendt e  psicanálise via noção de autoridade

 

 

Marcia Regina Fogaça

Psicanalista, Mestre em Educação, Doutoranda FEUSP, membro do LEPSI/IP-FE, Professora na FIT

 

 


RESUMO

Hannah Arendt afirma no Epílogo de seu livro A promessa da política (2009) que "O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode ser também descrito como a expansão do deserto". Sendo o mundo o artifício humano que "separa a existência humana de todo ambiente meramente animal" (p. 268) e "cuja potencial imortalidade está sempre sujeita à mortalidade daqueles que o constroem e à natalidade daqueles que vêm viver nele" (p.269), a ausência-de-mundo  é a  ausência do que há/havia/houve/deveria haver entre os seres humanos – que caracteriza o deserto. Em outro texto, A crise na Educação (Arendt, 1972), a autora  afirma que o contemporâneo estado de coisas na educação em crise nada tem a ver, estritamente, com a educação, mas  sim com as concepções de vida privada e mundo público que passaram a existir a partir da sociedade moderna – que se  conduziram em direção à indiferenciação entre ambas – e que foram tomadas pelos educadores, numa modernização tardia, sem crítica e sem reflexão sobre  as consequências que daí poderiam advir para a vida das crianças.Este breve trabalho pretende discutir tais afirmações arendtianas –  tendo como eixo a noção de autoridade – a partir de  conceitos psicanalíticos, por ver uma estreita relação entre estas e o que a psicanálise aponta como o mal-estar do sujeito moderno de não poder corresponder às exigências dos ideais simbólicos de sua época e de sua contemporânea fuga para o bem-estar  associado a todo tipo de consumo tamponador da falta. Em termos arendtianos,  tal fuga corresponderia à "derrota do Homo Faber" que consiste na redução dos objetos criados pelo homem para seu uso (contando com a durabilidade do objeto, sua permanência no mundo para além da vida biológica do artífice, a relação entre meios e fins, etc.) à categoria de objetos de consumo que remete à natureza cíclica e, portanto, repetitiva das necessidades vitais do Animal Laborans. Poderíamos dizer, freudianamente, que se trata de uma vitória da pulsão de morte, no que  está vinculada à repetição, e   de uma vitória do gozo, lacanianamente falando.

Palavras-chave: política, educação, psicanálise.


 

 

De início, cabe introduzir alguns elementos das idéias arendtianas acerca da "condição humana" (Arendt, 2007) que tem por postulado geral que os homens são seres condicionados por tudo aquilo com o que entram em contato, inclusive e, talvez fundamentalmente, por tudo aquilo que criam. Dentre as condições, há aquelas que são   "condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra"1 que dizem respeito à vita  activa em oposição à vida contemplativa, aspiração dos filósofos.

A primeira  dessas condições básicas é a vidaà qual correspondem as atividades destinadas à estrita sobrevivência sob a designação de  labor que se destina a suprir as necessidades vitais que determinam um tipo de relação com os objetos que é da ordem do consumo, da consumação de um ciclo vital, contínuo, universal e necessário. A segunda condição é a mundanidade que diz respeito às atividades humanas destinadas ao cuidado com o mundo – o trabalho de fabricação criativa da permanência no mundo que transcende a vida biológica e individual – que marcam um tipo de relação com os objetos que considera seu valor de uso (relação de meios e fins)  e de obra (autoria/arte).  Para além da vida e da mundanidade há  a pluralidade, condição humana por excelência na medida em que é condição da atividade como ação/discurso que é "a única atividade humana que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria"2. De onde decorre que, o que media a relação entre os homens é a própria ação/discurso que se caracteriza por sua imprevisibilidade e irreversibilidade.

A pluralidade é considerada a condição humana por excelência também por seu caráter paradoxal, qual seja, se trata da pluralidade de seres singulares. Singularidade, para Arendt, diz respeito à capacidade exclusivamente humana de, em sendo os homens todos iguais e diferentes ao mesmo tempo, exprimir/agir/discursar a diferença em relação ao outro. Portanto, singularidade seria a expressão da pluralidade humana em seu duplo e paradoxal aspecto de igualdade e diferença.3 Nesse sentido, podemos dizer que a pluralidade –  o fato de os seres humanos serem iguais e diferentes ao mesmo tempo –   é tanto condição da ação/discurso,como o coloca Arendt, quanto convoca a ação/discurso e se manifesta como ação/discurso.

Sendo a pluralidade condição humana por excelência, a ação/discurso é a mais humana das atividades por ser a única que, deixando de existir, faz com que o mundo humano também deixe de existir uma vez que este se constitui por meio dos significados atribuídos às atividades do labor e do trabalho, assim como a seus resultados –  manutenção/consumo/gozo da vida  e a criação/fabricação de objetos para terem alguma permanência no mundo. Em ultima instância, o que faz o mundo humano, o que faz laço, é o que existe entre os homens: ação/discurso.

Além das "condições básicas" segundo as quais a vida foi dada ao homem, Arendt coloca  dois pares de "condições mais gerais"  de sua existência –  o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade – com as quais as atividades e sua condições mantêm estreita relação.

A equação entre ação e discurso, através da idéia de natalidade que comporta  a possibilidade de ação inerente a todo começo e que se apresenta a cada nascimento: "o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado tem a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir"4 e discursar. Nesse sentido, temos aqui que o agir/discursar   é criar algo novo e, podemos acrescentar, a capacidade de criar algo novo é inerente a todo começo  nesse lugar/não lugar do discurso/ação –  de um ato de encontrar palavras que não guardam relação necessária com um significado  e que configuram um campo de imprevisibilidade e de irreversibilidade.

Outro aspecto do pensamento de Arendt relevante para a presente discussão é a diferença marcada entre imortalidade e eternidade que está associada à diferença entre os princípios ou preocupações humanas que correspondem, por um lado  "ao engajamento ativo nas coisas deste mundo e, de outro, o pensamento puro que culmina na contemplação"5 , ou seja, entre a política e a filosofia, entre os homens de ação e os de pensamento. A mortalidade, o "mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico" 6, marca a emblemática diferença do homem grego em relação à natureza – cíclica, imortal –   e aos deuses imortais. A forma de encontrar um lugar próprio nesse cosmos imortal e, dessa forma, se tornar imortal é fazer juz à  potencialidade de produzir "obras e feitos e palavras"7. É  através de suas obras, feitos e palavras que o homem sobrevive à sua vida individual e biológica, atingindo uma espécie de imortalidade relacionada ao  modo de vida do cidadão – o  bios politikos – que  é visto por Platão como contraditório com a vida do filósofo e sua preocupação com o eterno. Este, por outro lado, se trata de uma experiência indizível (Platão) e sem palavras (Aristóteles) que, portanto, só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos, fora da ação, fora do discurso, fora da política estritu sensu.

No entanto, em sua busca de uma legitimidade para o governo da pólis pelo filósofo, Platão recorre justamente à idéia do eterno num contexto no qual não havia, segundo Arendt,  uma palavra e tampouco a noção de autoridade tal como os romanos a inventaram posteriormente – noção  essa herdada por nós embora não estejamos, ainda segundo Arendt, em condições de dizer, hoje , o que autoridade é. Porém,  dentre o que se pode afirmar hoje sobre autoridade é que se trata, ou deveria tratar-se de algo que se encontra  "tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos."8.

É na busca desse "nem coerção, nem convencimento" que Platão descobre a força da coerção – maior que a força da persuasão e do diálogo – exercida pela auto-evidência/razão de  idéias que, nesse sentido, são consideradas como verdades eternas. Descobre também que o povo, o organismo político em sua maioria, não se submete à auto-evidência das idéias fazendo com que seja necessário buscar uma outra via, que tampouco  se caracterize como violência ou como persuasão, ou seja, um princípio que legitime/autorize a coerção. "Aquilo que buscava era uma relação em que o elemento coercivo repousasse na relação mesma e fosse anterior à efetiva emissão de ordens" 9 o que colocaria o filósofo numa posição confortável para ser o governante da cidade, uma vez que é o único capaz de perceber as idéias auto-evidentes/verdade através da contemplação. Porém,  constata  que somente nos casos em que há uma flagrante  desigualdade entre as partes é que se pode garantir o governo de um sobre o outro sem o uso da violência – em consequência do que recorria a metáforas retiradas da esfera privada da vida para ilustrar tal relação: senhor/ escravo, pastor/rebanho, médico/paciente, timoneiro/passageiros. Metáforas que têm em comum a desigualdade de saber que garante a autoridade antecipada de um sobre o outro, ou seja, uma autoridade baseada na coerção intrínseca à relação desigual. Por outro lado,  se depara também com o perigo que representa o ter acesso à verdade, através da contemplação  das idéias, sem poder transmiti-la de tal forma que a mesma se torne verdade com poder de coerção para aqueles que não passaram pela mesma experiência. A saída para tal impasse, Platão a encontra na transformação das idéias em normas e padrões que, dessa forma, se tornam acessíveis  ao "vulgo"  sem que este tenha que passar pela experiência indizível da contemplação para render-se à auto-evidência/verdade das mesmas. Nesse sentido, as normas e padrões são uma  alternativa  para a coerção exercida pela auto-evidência/verdade das idéias –  viabilizada através da analogia com a vida prática.

Para a transformação das idéias em normas, Platão vale-se de uma analogia  com a vida prática, onde todas as artes e ofícios parecem ser também guiados por ‘idéias',  isto é, pelas  ‘formas' de objetos, visualizados pelo olho interior do artífice, que as reproduz então na realidade através da imitação. Essa analogia capacita-o para entender o caráter transcendente das idéias da mesma maneira como a existência transcendente do modelo, que jaz além do processo de fabricação que dirige e pode, portanto se tornar, por fim, o padrão para seu sucesso ou fracasso. As idéias tornam-se os padrões constantes e ‘absolutos' para o comportamento e o juízo moral e político, no mesmo sentido em que a ‘idéia' de uma cama em geral é o padrão para fabricar qualquer cama particular e ajuizar sua qualidade. Pois não há grande diferença entre utilizar as idéias como modelos e utilizá-las, de uma maneira um tanto mais grosseira, como verdadeiros ‘metros' de comportamento, e já Aristóteles, em seu primeiro diálogo, escrito sob a influência direta de Platão, compara ‘a lei mais perfeita', isto é, a lei que é a aproximação mais intima possível à idéia, com o ‘prumo, a régua e o compasso...[os quais] são notáveis entre todos os instrumentos' (Arendt,1979, p. 150).10

Tal movimento de Platão – de  transformar as idéias resultantes da busca da verdade do ser em padrões aplicáveis ao comportamento e, portanto, em formas de controle/governo – tomado como a origem da transformação da ação/práxis em trabalho/poiesis ou téchne, de uma perspectiva psicanalítica pode ser considerado como uma defesa contra o sentimento de desamparo diante da morte, da imprevisibilidade e da irreversibilidade inerentes à natalidade. Sua busca, assim como a de Aristóteles, de algo que Arendt entende como sendo aquilo que os romanos chamariam de autoridade, também pode ser pensada dessa forma. Nesse sentido, esse mesmo movimento entranha a noção de autoridade romana, e portanto ocidental,  na medida em que "as filosofias políticas de Platão e de Aristóteles dominaram todo pensamento político subseqüente  [e] decisivamente influenciam [...] sua formação."11 Sendo assim, pode-se dizer que a fonte da autoridade só pode se localizar fora da esfera dos assuntos humanos ao mesmo tempo em que sua forma só pode ser apreendida através da aplicabilidade das idéias. Por outro lado, tal aplicabilidade só foi possível porque Platão,  diferentemente de "quase todos os filósofos que lhe sucederam levar ainda os assuntos humanos a sério a ponto de alterar o próprio centro de seu pensamento para fazê-lo aplicável à política."12 Segundo Arendt, essa alteração  teria sido a passagem da idéia do belo, como idéia suprema, para a idéia de bem que é introduzida no sexto livro da República num contexto estritamente político. Platão passa de – em O Banquete – considerar  a beleza como o degrau mais alto da escada que leva à verdade para – no  sexto livro da República – colocar o bem como idéia máxima. Uma vez que para os gregos "bem" significava adequado ou bom para, as idéias passam a ser "aplicáveis por definição".  A consequencia tirada  por Aristóteles da proposição platônica é de que o bem é a medida de todas as coisas e a ética daí derivada é essencialmente vinculada à esfera privada da vida.

Segundo Arendt, tanto Platão quanto Aristóteles13 não conseguiram encontrar aquilo que buscavam – algo que legitimasse o governo sem recorrer à violência/coerção próprias do governo da/na  esfera privada e tampouco à persuasão –  uma vez que a proposta de Platão é de que tal legitimidade se viabilize através da coerção das idéias, ou seja, da violência simbólica.  Aqui podemos ver que, tal como aponta a psicanálise, para se estabelecer e manter-se no âmbito da civilidade, o homem tem que se submeter  à violência simbólica, assujeitar-se à linguagem.  Resultado a que chegou Platão quando, justamente, tentava escapar dos perigos encontrados na ação/discurso próprios dos negócios humanos, ou seja, da vida pública.  Como os gregos, obviamente, já estavam submetidos à linguagem14, o movimento platônico pode ser entendido como um deslocamento discursivo que promove uma re-fundação do simbólico: o fechamento do voto de uma discursividade  normatizada  e sem a subjetividade presente na atividade pública15. Como consequência, a longuíssimo prazo, desse movimento, podemos ver o esvaziamento do espaço público enquanto lugar de exercício de uma certa subjetividade e o concomitante vir a público da esfera privada da vida, ou  seja, o que Arendt chamou de a promoção do social ou a substituição da ação pelo comportamento que teve lugar na época moderna.16

Arendt afirma que o que problematiza a educação contemporânea, a ponto de se falar em crise nesse campo, é justamente a indiferenciação entre o mundo  público e vida privada ou, mais precisamente, as concepções de público e privado que se precipitaram na modernidade, relativas à "promoção do social", ou seja, " A passagem –  a ascensão da administração caseira, de suas atividades, seus problemas e recursos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública."17. Tal idéia  remete a outra indiferenciação, entre social e político,  surgida da tradução do zoon politikon de Aristóteles por animal socialis18 que aponta para o social – decorrência da necessidade de os homens se juntarem para a sobrevivência individual e da espécie –    como condição humana fundamental.

Uma das diferenças apontadas por Arendt entre o público e o social é em relação à questão da igualdade. O espaço público dos gregos devia sua existência à igualdade entre pares e fazia parte dessa idéia de igualdade que todos que participavam da vida na polis agiam no sentido de se distinguir dos demais, " demonstrar através de feitos ou realizações singulares, que era o melhor de todos (aien ariteuein). Em outras palavras, a esfera pública era reservada à individualidade; era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram."19 O preço pago por essa possibilidade era o compartilhamento dos negócios públicos.  Por outro lado, a igualdade  no social diz respeito a um conformismo na medida em que

a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um de seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras  e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar' os seus membros, a fazê-los ‘comportarem-se', a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada. [...] a sociedade equaliza em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença reduziram-se a questões privadas do indivíduo.20

Portanto, pensando o sujeito moderno e, portanto, o sujeito da psicanálise como constituídos num contexto da instituição da supremacia do simbólico sobre o real, podemos afirmar que sua constituição se dá às custas do sacrifício de parte de seu ser, uma vez que, para representar-se, tem que deixar de ser.21 A parte de ser à qual o sujeito tem que renunciar para constituir-se enquanto tal diz respeito à experiência de ser – em  referência a um real, ainda que imaginariamente – objeto do gozo absoluto do Outro.  Em outras palavras, é sobre o recalque do real – do impossível do sujeito simplesmente ser quando é convocado a representar-se, ou seja, ser na linguagem, ser de linguagem – que o sujeito moderno se constitui. É nesse contexto que o desejo pode ser definido como falta do/no sujeito, ou seja, como constituinte do sujeito.

 A modernidade  amplia as possibilidades  das identificações que nas sociedades tradicionais eram facilitadas pela estabilidade representada pelas  estruturas de parentesco "que conferiam às pessoas um lugar, um nome, um destino, referendados pela comunidade e dificilmente modificados ao longo da vida. Era mais possível a alguém representar-se como idêntico a seu nome, isto é, idêntico ao nome herdado de seu pai."22 Portanto, o indivíduo moderno, mais precisamente, a invenção moderna do indivíduo livre e autônomo  é a realização, tanto do desaparecimento da política – através do apagamento da diferença que só encontra expressão na ação/discurso do embate público –  quanto da ruptura da  própria tradição,  na medida em que "torna problemática a idéia de valores éticos universais".23 Indo além, pode-se dizer que tal individuo invibializa a condição essencial da educação, tal como concebida por Arendt,   uma vez que desresponsabiliza cada um quanto ao mundo e, radicalizando, invibializa a própria idéia de mundo enquanto resultado do que se passa entre os homens,  ou seja, ação/discurso.

Ainda no sentido do que a idéia de indivíduo, em relação às sociedades modernas,  problematiza, duas questões se impõem. A primeira ainda no âmbito das idéias arendtianas acerca da educação que diz respeito à afirmação de que "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo." 24. A segunda questão se localiza no interior da teoria psicanalítica e diz respeito à critica empreendida por esta em relação à idéia de indivíduo na acepção adjetiva enquanto aquele que não se divide.

A afirmação arendtiana de que a essência da educação é a natalidade, pode ser interpretada como: só faz sentido falar em educação quando existe um mundo para receber aqueles que nascem e se a estes lhes é suposta a potencialidade da ação e do discurso. Considerando que mundo é, fundamentalmente,  o laço forjado entre os homens  através da ação/discurso, a educação  só é possível se existe um  campo da ação/discurso, ou seja, um campo  público que a precede,  na medida em que, sendo a educação uma atividade pré-política, depende da anterioridade lógica da política para existir. A idéia da anterioridade lógica do público/ político em relação ao privado/pré político/social  vem de  Aristóteles que afirma que, embora do ponto de vista dos fatos empíricos a relação seja inversa, a associação de pessoas em famílias ou organizações econômicas (Oikós) governadas por um senhor/despotês  é logicamente posterior à organização da polis uma vez que a cidade é um todo e,  em sendo um todo, é anterior a suas partes. Nesse sentido, podemos afirmar que, para que os que nascem não permaneçam como mais-um/indivíduo da espécie, se faz necessário que lhe  seja suposta a potencialidade da diferença à qual a psicanálise acrescenta a necessidade de que lhe seja dirigida uma demanda para que se diferencie.

É no sentido da demanda da diferenciação que a psicanálise critica a idéia moderna de indivíduo autônomo uma vez que, essa diferenciação só é possível através da constituição do sujeito que, por princípio, é dividido. Também Lacan utiliza a idéia de anterioridade lógica quando teoriza a constituição do sujeito através das operações de alienação e separação: embora exista um "ajuntamento psíquico" anterior, é somente quando um corte ato/significante que separa o indivíduo de seu objeto de necessidade é que, no só depois da significação, se constitui o sujeito como dividido entre alienação à uma imagem/eu e desejo inconsciente, que vem a ser o que a psicanálise denomina sujeito do inconsciente/desejo. Sendo assim, a psicanálise pode ser considerada como uma denúncia da operação de recalcamento da tendência inerente à ação (dos gregos) de superar todos os limites – que resultou na indiferenciação e inversão das idéias de público e privado –   uma vez que o sujeito moderno é resultado  desse recalcamento: seu "lado" público é a imagem/eu/consciência/racionalidade  e seu "lado" privado/recalcado é feito de restos da tendência a superar todos os limites, ou seja, do desejo incestuoso.

Portanto, para a psicanálise a educação só é possível se existe a suposição de sujeito, ou seja, de que o outro é produto da operação de recalcamento de parte essencial de seu ser que, no entanto,   emerge – no retorno do recalcado – em atos de linguagem. Nesse sentido,  podemos dizer que a emergência do sujeito/inconsciente/desejo  é a emergência de fragmentos de um  passado no qual a ação incestuosa era considerada enquanto potência, ou seja, enquanto desejo e, paradoxalmente, impossível enquanto ato.

Para concluir esta  aproximação entre Arendt e a psicanálise retomo  a afirmação arendtiana de que em educação, a autoridade é a forma assumida pela responsabilidade em relação  mundo.  Para a psicanálise poderíamos propor que a autoridade é uma forma que o desejo assume, na medida em que, desejo pressupõe a impossibilidade do ato, ou seja, a impossibilidade de transpor todos os limites. Porém, tanto autoridade quanto responsabilidade quanto ao mundo são "jóias raras"  em nossos dias, uma vez que, os rumos tomados – o aparentemente crescente afastamento/recalcamento do real impossível realizado pelo ocidente – nos  levaram ao atual estado de coisas  no qual,    uma inversão,  coloca o gozo  como possível  através da pura fruição dos objetos fabricados para produzir tal ilusão de volta ao real do ser sem mediações. Triunfo da pulsão de morte, vitória do animal laborans, da repetição cíclica, do modo de mega produção de bens para o consumo, das teorias que tomam o mundo como natural, passados séculos de civilização. Mais uma pá de cal sobre o recalque do impossível que a morte convoca e que, paradoxalmente, é evocada a cada negação do desejo – leia-se castração – , filho desse mesmo impossível. Por outro lado, se há necessidade de tanta parafernália para se colocar essa pá de cal, pode-se concluir  que,  abaixo da linha do recalque, o desejo/inconsciente continua firme e forte exercendo sua pressão. Fica a questão:  que alcance a psicanálise e a educação, entendida como Freud a coloca em alguns momentos – como educação para a realidade (leia-se o real da castração) –,  podem chagar a ter em tal estado de coisas no sentido de promover rupturas com/no mesmo.

 

Referências Bibliográficas

Arendt, H. (1992). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva.

________  (2007). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

________ (2009). A promessa da política  (Pedro Jorgensen Jr., trad.) Rio de Janeiro: Difel.

Chaui, M. S. (1992). Público, privado, despotismo. In Novais, A.(Org.). Ética . São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura.

Kehl, M. R. , (2005). Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras.

Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social, Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

 

 

1 Ibid., p. 15.
2 Ibid., p. 15.
3 Para a psicanálise, a singularidade do sujeito se manifesta em estilo, um traço significante que marca  o encontro entre o máximo de universalidade com o máximo de particularidade. Cf. Pommier, 1996.
4 Op. cit., p. 17.
5 Arendt.,  2007, p.26.
6 Op.cit., p. 27.
7 Heráclito, 1922, apud Arendt, 2007, p. 28.
8 Ibid. p.129.
9 Arendt, 1979, p. 148.
10 Arendt, 1979, p. 150. 
11 Op. cit.,  p. 145.
12 Ibid., p. 152.
13 Embora Aristóteles não considerasse a razão como coerciva ( ditatorial ou tirânica) e sim a existência de uma superioridade  dos que  governam em relação aos que são governados: " superioridade do perito sobre o leigo"  – que  o leva a buscar exemplos na esfera da fabricação –  e  a superioridade ‘natural' entre os mais velhos e os mais jovens. (Arendt, 1979, p.157)
14 Embora, como já vimos, muito mais próximos do real  como por exemplo na concepção de ação –  como coeva e coetânea, da  mesma categoria e da mesma espécie do discurso – e na divisão entre o agente da ação e o narrador   que se localizava no outro real, como exemplificado com Aquiles. 
15 Como Lebrun propõe como o primeiro nascimento da ciência (Lebrun, 2004).
16 Talvez resida aqui uma das fontes do mal-estar na civilização freudiano: a sociedade moderna exige e se mantém graças a um conformismo que exclui a ação, ou seja, a tendência a transpor os limites.
17 Arendt, 2007, p. 47. 
18 Segundo Arendt tal tradução já se encontra em Sêneca, ou seja, no início da era cristã.
19 Op. cit., p. 51.
20 Ibid. pp.50-51.
21 Lacan apresenta  detalhadamente essa questão na tese da constituição do sujeito através das operações de alienação e separação em seu Seminário: Livro 11 (Lacan, 1985) que retomo  em minha dissertação de mestrado (Fogaça, 2005).
22 Kehl, 2005, p. 40.
23 Chaui, 1992, p. 351.
24 Arendt, 1972, p. 223.