8Uma aproximação entre Hannah Arendt e psicanálise via noção de autoridadeAs conversações e a psicanálise aplicada à educação: um estudo do mal-estar do professor e o aluno considerado problema índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  




ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O excesso como lugar de interdito

 

 

Marcio Boaventura

 

 

A Juventude

Todo ser humano se constitui fruto de uma combinação única de variados fatores. Todos eles revelam, de algum modo, as impressões do encontro com o outro. É nesse contato que os valores e princípios que norteam e inspiram a existência são construídos. Por intermédio dele também emergem desse oceano agitado os modos psicossociais do sintoma.

A juventude é um tempo de transição, coluios, idealismo e de estabelecer laços fora do circuito familiar quando esses pré-existem. Nesse período supomos existir uma radicalidade, uma visceralidade, no que podemos traduzir à maneira psicanalítica, no desejo de ser desejado pelo desejo do outro. Sujeitos deste tempo de transição, mais do que nunca, precisam se reconhecer no retorno do desejo do outro a quem se ligam. Mas parece que a modalidade dessa inscrição vem sendo realizada no excesso, numa procura contastante pelo mais-gozar. Onde as diferenças são cada vez menos toleradas e a homogenização dos grupos se dá de forma quase militar, instaurando assim uma pulsão de morte violenta que é direcionada quase sem mediação ao outro estrangeiro.

Na busca por sua autonomia, o jovem descobre que o outro é fundamental, que só se existe na relação com o outro, que o contato com o outro possibilita a busca de auto-organização e reconhecimento, ou seja, a estruturação do sujeito e o estabelecimento das redes sociais. Porém, quando se posiciona o outro nesse lugar de objeto de gozo, o laço produzido pelo encontro nasce maculado.

A cobrança de posturas sociais sobre a juventude pela ameaça autoritária provenientes dos "pais sociais", ou seja, daqueles que se travestem como  Nome-do-Pai1, impele-os a se posicionarem face ao mundo, a se questionarem sobre si próprios, o que é algo bastante difícil e doloroso de se fazer, especialmente para eles que vivem tantas transições. Segundo Pereira (2009):

(...) quando o sujeito adulto lhe diz ‘está na hora de você ser alguma coisa', (...) o que faz surgir é uma tensão muitas vezes insuportável para o adolescente. Talvez venha daí sua identificação com o diferente-dejeto. É fixado no lugar de dejeto que ele responde à inadequação que o grande lhe imputa.

Em geral, a visão dos adultos sobre os jovens é repleta de esteriótipos e preconceitos sobre sua incapacidade de autonomia, de produzir orientações a partir de si mesmo. A produção discursiva dos adolescentes é desvalorizada. Debartoli (2003) também afirma que muitas vezes essas caricaturas preconceituosas projetadas sobre os adolescentes são introjetadas por eles tornado-se suas insignias de tentativa de auto-reconhecimento. Essas insignias podem ser estigmas que, pouco a pouco, forma e deforma suas escolhas de representatividade.

Para Melman (1999), o jovem é aquele que, apesar de haver atingido uma maturidade sexual, não é reconhecido simbolicamente como tal. Há no social uma postura hegemônica de recusa frente à confirmação desta maturidade orgãnica real do jovem.

Essa postura frente aos jovens é recente em nossa cultura, significando que o jovem só será reconhecido como indivíduo ativo na sociedade quando tiver se tornado um agente econômico independente no mercado capitalista mundial. Só assim ele terá sua sexualidade reconhecida simbolicamente. Isso equivale a dizer que pregamos para nossos jovens que a necessidade econômica possui primazia sobre a ordem do desejo,

(...) que aquilo que ele enquanto criança esperava, isto é, a ascensão à virilidade ou à feminilidade, é substituído pelo acesso à independência econômica. Nós lhes pedimos então que recalque sua pulsão sexual; ele deve esperar ainda para ter o direito de fazer com que sua palavra seja ouvida e dar a ouvir seu desejo (MELMAN, 1999, p.22).

Para os jovens, a sexualidade é experimentada inicialmente como algo extremamente difícil de ser realizado pois ele não pode contar com o apoio familiar e social. Tal cenário complexo gera uma inquietação que impulsiona os adolescentes a iniciarem uma busca obstinada por novos pares para que juntos possam encontrar cumplicidade em sujeitos igualmente oprimidos. Nas relações com seus semelhantes talvez o reconhecimento desta sexualidade negada culturalmente possa ser encontrada, na tentativa de sustentar o seu eu.

Melman (1999, p.23)  salienta que o jovem esta fragilizado pois:

(...) perdeu esta pertinência fálica que o sustentava quando era criança (...) e ainda não encontrou um outro, pois que este outro estatuto lhe é recusado; (...) ele vive esse período de crise que conhecemos, com a irrupção das pulsões sexuais sem que ele tenha possibilidades de dialetizá-las, quer dizer, de falar sobre isso com seus próximos e, portanto, sem ter a possibilidade de se situar subjetivamenre com relação a elas.

Assim, o jovem se sente desinserido do mundo, sem direito de participar da realidade, nada mais lhe restando senão manter-se as margens da cultura, fazendo um esforço gigantesco para recalcar sua sexualidade. Talvez como sintoma de todo esse processo surja o excesso, essa tendência de comportamento que funciona como uma resposta à lei cruel que os anula. Que coloca como referêncial básico apenas aquilo que é bom para si.

Uma vez não reconhecidos pelo outro social, cabe ao jovem apenas sentar-se as margens da fonte e entreter-se com seu próprio reflexo, com tudo que lhe dá prazer, numa tentativa de desprezar as vozes que como eco insistem em cobrá-los aquilo que simbolicamente ainda não possuem: a chance de se inscreverem no mundo adulto.

 

No Grande Espelho do Cinema

O cinema possibilita-nos observar diversidades de comportamentos, tendências e padrões culturais, além de ser um dos instrumentos legitimados pela indústria cultural para a transmissão de suas insígnias. Ele é um espelho moderno exercendo um fascínio narcísico sobre o público, retratando e influenciando as relações humanas.

Tendo essa noção em mente, selecionei e assisti a diversos filmes que esboçam o quadro da sociedade ocidental contemporânea retratando situações de excesso vivenciadas por jovens. Durante minha pesquisa cinematográfica escolhi, para subsidiar este trabalho, os quatro filmes que passo a narrar sucintamente abaixo, por entender que são mais explícitos neles o argumento em que aposto: o excesso como lugar de interdito.

Cama de gato (2002)

O que levaria jovens educados, pertencentes a famílias com boas condições financeiras a agirem como estupradores e assassinos? É a partir do debate entorno desta pergunta que Alexandre Stocler nos conta em seu filme "Cama de Gato" (2002) a história de três jovens - Cristiano, Chico e Gabriel – que estupram uma amiga na casa de um deles. Após o estupro as dificuldades de resolução da situação criada conduz o enredo para uma violência cada vez menos física, ou seja, cada vez mais social. O filme torna-se uma jornada pelas complicações das relações humanas, num tom cercado de humor negro que se revela - para o nosso espanto – na facilidade de como esse horror pode ser incorporado como gozo dentro do universo destes jovens.

Paranoid Park (2007)

"Paranoid park" apresenta Alex, um jovem de 16 anos que vive uma vida sem grandes destaques. Acima de qualquer coisa Alex é skatista e a prática deste hobby é sua válvula de escape.

No subúrbio de Portland, um grupo de skatistas criou um paraíso do skate, o Paranoid Park. Este Parque Paranóico é, para Alex, então, um lugar de transgressão, onde os pares se reúnem para deslizar no vácuo.

Numa noite, ao saírem do parque, Alex decide acompanhar um amigo e pegar carona no trem em movimento como forma de variar as emoções. Nessa brincadeira de excessos, Alex empurra um segurança da rede ferroviária que tentava impedir que os jovens seguissem a viagem clandestina. O segurança cai sobre os trilhos e morre.

Diante do homicídio acidental, em choque, Alex segue seus dias desorientado. Um dia, numa conversa com uma amiga, ela sem saber lhe diz que se ele tem algo escondido que lhe diga, se não puder falar, que escreva. Isso seria uma forma de esquecer. Ele resolve seguir o conselho e passa a escrever em um diário o que se sucedeu.

Foi necessário a interdição de um excesso, a morte de um homem, para que Alex fosse motivado a exercitar seu discurso. Dessa forma, ao conseguir escrever em seu diário o drama ao qual estava submetido, Alex é capaz de marcar seu limite.

Alpha Dog (2006)

Em "Alpha Dog", de Nick Cassavetes, somos conduzidos pelo caso verídico do seqüestro de um garoto irmão de um jovem que devia dinheiro ao líder de uma gangue. O seqüestro foi realizado pela uma turma de amigos do líder de forma impulsiva, não premeditada, quase uma brincadeira. Eles tratam o refém como amigo, levando-o para conhecer garotas em festas, beber e fumar maconha. O jovem seqüestrado passa a adorar a situação e se torna um refém quase voluntário.

O problema é que seqüestro é crime para a lei. Após a constatação de todos que o assassinato do "refém-amigo" é inevitável para que a festa não acabe, o que se vê no rosto da turma é a personificação perfeita de garotos que se vêem arrastados pela situação sem ter tempo para media-la. Então, a execução do homicídio do refém é conduzida da mesma forma que o seqüestro, sem muito planejamento, sem a frieza dos profissionais do crime. É óbvio que, até mesmo pelas formas como tanto o seqüestro quanto o homicídio foram realizados, no final do filme todos os envolvidos são presos e a festa acaba.

Garotas sem rumo (2005)

Allison é uma bela adolescente pertencente à elite de Los Angeles. Sua melhor amiga é Emily e a ordem do dia é ser membro de uma gangue. Por isso, para se divertirem, as turmas diversas se encontram no estacionamento do parque de Santa Mônica para travarem lutas verbais e físicas. Quando a polícia chega, a festa migra para a casa de alguns deles. Ali, sem serem perturbados por ninguém, a esbórnia continua regada a muita bebida, drogas e sexo.

Apreciadores da cultura hip-hop dos latinos que moram na periferia da cidade, certa noite Allison, Emily e os respectivos namorados decidem ir até a Zona Leste da cidade, local perigoso para "branquelos" como eles. Porém entediados com as pseudo-brigas envolvendo as gangues de sua escola classe A, um tour pelo lado negro da cidade é o impulso a seguir.  Uma vez lá, Toby (macho alpha do grupo e namorado de Allison) acha que foi lesado pelo traficante Hector numa transação por drogas e resolve tomar satisfações como de costume. Porém ali a realidade é outra e ele é humilhado e quase morto pela gangue local. Allison assiste tudo aterrorizada e excitada.

A partir daquela noite Allison retornará diversas vezes naquela parte da cidade, procurando a adrenalina e o perigo que sentiu ao lado do algoz de seu namorado.

Numa determinada noite, ela e sua amiga resolvem aceitar o convite de Hector e vão a um motel onde a gangue se reúne para celebrações mais intensas. Tudo parece ser tão divertido. Compartilham com Hector da vontade de pertencerem a gangue da rua 16. Ele revela que o ritual de passagem para qualquer garota que deseja integrar a gangue é jogar a sorte com o dado, o número que sair será a quantidade de rapazes da turma com quem as moças terão que fazer sexo.

Sem limites elas aceitam as regras do jogo. Allison joga o dado e o número sorteado foi um, para seu alívio, pois não seria sacrifício dormir com Hector por quem tinha grande afeição. Emilly tenta a sorte e o número três surge.

No quarto a iniciação começa, mas ao se deitar com Hector a dura realidade do ato convoca Allison a voltar, ela foi longe demais. Ela pede para Hector parar e esse grita perguntando a ela o que ela queria. Emily, pelo contrario não se mostra nem um pouco constrangida e resolve seguir o jogo, contrariando os pedidos de Allison. Porém quando percebe que não era tão divertido fazer sexo com três homens ao mesmo tempo pede para parar. Os garotos da gangue contrariados interrompem o ato e expulsam as duas da festa.

No outro dia, na escola, Emily não compareceu e em seu lugar vários policiais apareceram querendo conversar com Allison. Emily prestou queixa alegando ter sido estuprada pelos jovens da gangue da rua 16. Allison não concorda, diz não saber de estupro algum, mas é incapaz de narrar a verdade dos fatos à polícia.

Allison volta para a sala de aula e, tocada pela moral do debate sobre a postura da sociedade capitalista americana que impulsiona as pessoas a não assumirem a responsabilidade pelos seus atos visando obter apenas lucro, resolve ir até a casa de Emily e confessar aos pais da garota o ocorrido. Que tudo era um jogo e que ninguém foi violentada.

 

O excesso como lugar de interdito

Nos filmes selecionados observa-se a repetição de comportamentos de excesso praticados pelos jovens indicando que eles estariam mais propensos à prática de atos extremos, muitas vezes ilícitos, que eles consideram como divertido e "normal". É como se a busca pelo excesso fosse um anseio que os uni. Talvez apenas o excesso esta sendo capaz de lhes conceder nos dias atuais algum modo de interdição.

Podemos suspeitar que o excesso está configurando-se como o último recurso encontrado pelos jovens para reivindicar alguma inscrição mínima na Cultura. A forma possível para dramatizar suas queixas, trazê-las à atenção social.

Antes de prosseguir a linha de raciocínio, façamos uma digressão necessária. O complexo de Édipo é uma teoria psicanalítica que trabalha, de forma complexa, a situação do filho no triângulo familiar, o que no final do processo possibilita a realização da humanidade no sujeito. Segundo Sodré (2003, p. 7), "a criança se depara com a interdição (uma força de heterogeneidade), que funda a ordem simbólica, representada pelo pai, e assim descola-se da relação dual (imaginária) com a mãe." Transcorrido o drama edipiano encontramos a castração simbólica, ou seja, o pai castra o filho enquanto falo (significante primordial da diferença, símbolo cultural de poder), separando-o da mãe.

Mas Sodré ressalta que esse complexo não se reduz a uma situação real, ou seja, à influência realmente exercida sobre o filho pelos pais. "O Édipo é fundamentalmente inconsciente, é um momento estrutural (são as estruturas culturais do grupo que o veiculam), irredutível a uma "experiência" vivida.

Alberti (2008), afirma que o real, o simbólico e o imaginário - três registros do funcionamento psíquico – são amarrados pelo sintoma, que se torna assim um parceiro para o sujeito. Numa criança estruturada conforme a neurose, às voltas com a função paterna, tal parceiro é o Édipo. Havendo vacilação desse parceiro - o que ocorre necessariamente na adolescência com o questionamento dos ideais parentais em que se acreditou até então - o sujejto se vê diante da possibilidade de uma desamarração dos três registros. Desta forma:

O sintoma definido como amarração dos três registros pela inscrição do Nome-do-Pai servira para sustentar o desejo nascido da impossibilidade, da tentativa perdida para sempre de fazer Um com a mãe; na adolescência, a solidez desse sustento é posta à prova porque vacila. Donde o pai simbólico deve ser retomado de alguma forma (ALBERTI, 2008, p. 45).

A primeira violência que sofremos é fundante, quando somos sujeitados psíquica e corporalmente a interpretação materna sobre as manifestações experimentadas pela criança. Porém, talvez por conta de uma figura paterna cada vez mais ausente ou demasiadamente esfumaçada para valer uma imposição, a figura materna pode instalar-se no excesso dessa interpretação.

Neste caso Édipo não se manifestaria como nosso parceiro nos sintomas da neurose. Esse excesso de domínio sobre o outro, de impedimento da palavra, tornar-se-iam "traços identificadores e onde o pensamento como marca de autonomia e da intimidade não pode se manifestar" (SOUZA, 2006, p. 40). O sujeito com amarras frouxas navega mundo a fora em excesso.

Em face do exposto, podemos vislumbrar nos jovens do filme uma atitude presa a algo dessa ordem. Sujeitados a essa possibilidade de desamarração psíquica e na tentativa desmedida de ser contida, interditada, buscam justamente no excesso a possibilidade de ver aliviada a pressão de "tudo poder" ao mesmo tempo em que não se é sequer reconhecido. Talvez a juventude esteja convocando da cultura algum dispositivo, uma forma de regulação, um modo de poderem fazer uso da linguagem.

Para Alberti (2008, p. 48-49) a adolescência é uma escolha do sujeito em assumir seu desligamento dos pais, "assumir que só é possível contar com o Outro em nível simbólico".

às vezes, não é preciso haver uma foraclusão (não interdição) da falta para o sujeito se experimentar sem recurso diante do outro. Em realidade toda experiência traumática implica o encontro angustiante com a ausência da lei do desejo no outro. Ali onde o gozo do outro não tem limite para um sujeito, ou ele começa a penetrá-lo (...) ou o sujeito necessite criar artifícios que sustentem a função paterna para barrá-la.

Se o jovem moderno percebe-se como este sujeito despido de recurso diante do outro, podemos supor então que sua sujeição ao excesso seja uma prerrogativa para que alguém intervenha, para que a função paterna se manifeste. Talvez ele busque em seu comportamento nada mais que a possibilidade de uma outra referência, concreta, real. Foi algo desta ordem que os diretores dos filmes pareciam querer retratar.

Melman (1999, p. 24-25) afirma que o adolescente esta tendente ao encontro com o perverso, pois este, além de se interessar pelo jovem, esta disposto a reconhecer sua identidade sexual.

(...) se o adolescente é possuído pela categoria do real, deste real do sexo, deste real do corpo, se o domínio do simbólico se verifica incapaz de responder a esta crise, nada mais lhe resta, é evidente, que a dimensão do imaginário, para tentar responder a esta situação difícil. É. sua posição marginal e esta prevalência do imaginário que vão lhe fazer valer, que vão afirmar para ele que poderia viver fora da castração, extracastração; sabemos que o adolescente vai sistematicamente fazer todos os desafios para pôr em causa todos os limites.

Se a ordem social simbólica mostra-se insuficiente, ou no mínimo raquítica, diante da juventude, podemos então pensar que o real que emerge em algumas situações de excesso (perversas, por constituição), possa estar servindo aos jovens como uma possível clínica de suplência que, distante da decifração do sintoma inconsciente, consegue produzir uma certa dissolução do mesmo, limitando um pouco a errância pelo laço ofertado, ou pelo seu deslumbre, na insurreição do real.

            Para Miller (2008, p. 4):

No fundamento da realidade social, há a linguagem. Entendamos por linguagem a estrutura que emerge da língua que se fala sob o efeito da rotina do laço social. É a rotina social que faz com que o significado possa preservar um sentido, o sentido que é dado pelo sentimento de cada um de fazer parte de seu mundo, ou seja, de sua pequena família e do que a rodeia.

Miller também acena que os efeitos psicanalíticos não resultam apenas do enquadre – entendido como a situação psicanalista/consultório/paciente, mas do discurso, quer dizer, da instalação de coordenadas simbólicas por alguém.

Talvez, então, o real que em toda a sua concretude se faz em ato, empurre o sujeito para o que chamou de Lugar Alfa.

Um Lugar Alfa não é um local de escuta. Chama-se lugar de escuta, hoje, o local onde o sujeito é convidado a falar o que quiser à vontade. Diz-se que o pôr em palavras alivia. Um Lugar Alfa é um lugar de respostas, um lugar em que falar à toa assume a forma da questão e a própria questão, a forma da resposta (MILLER, 2008, p.3).

Neste local, instaurado o laço pelo qual o sujeito recebe do ato sua própria mensagem numa forma invertida, encontrar-se ele, a partir daí, "conectado ao saber suposto, de que ele próprio ignorava ser a sede" (Miller, 2008, p.3).

Impulsionado a elaborar o ocorrido, possibilita-se ao sujeito a chance de ser revelado o tipo de gozo que o estava constrangendo, indicando uma possibilidade de vínculo. Uma operação que possibilita um giro capaz de instituir algo da ordem do inconsciente. Ou seja, o inconsciente começa a se instituir a partir da queda de um discurso.

Mas para isso é necessário que a manifestação do real se torne este lugar alfa e separe o sujeito de sua identificação, possibilitando que este associe seu mal-estar a um significante novo.

Isso além de tornar viável uma adaptação do sujeito a um ideal social - não aquele da norma do Outro, mas o da possibilidade do encontro com a norma do desejo – também possibilita um efeito de apaziguamento.

Mas Miller (2008, p.3) salienta que:

A emergência desse momento de saber (...) é uma faísca que pode incendiar toda a campina, quero dizer, atear, no sujeito, o incêndio de um delírio interpretativo generalizado. Impõe-se uma seleção drástica aos operadores no Lugar Alfa, a fim de se assegurar que são capazes de um controle ponderado dos efeitos psicanalíticos, dosados segundo a capacidade do sujeito de suportá-los. Assim mesmo, no Lugar Alfa, os operadores não podem deixar de praticar a arte do diagnóstico rápido.

Desta forma, quando o excesso se impõe como este lugar alfa é necessário que o sujeito encontre em alguém ou em alguma coisa um apoio que o possibilite elaborar seu saber.

Sem entrar especificamente na celeuma do pensamento de Miller acerca desses operadores, cabe aqui considerar que eles "atuam nos Lugares Alfa estão, seguramente, em conexão direta com o social, encarnam eles próprios o social e restabelecem o laço social dos sujeitos que acolhem (...) que, em contrapartida, não se encontram mais em conexão direta com o social, situando-se, sobretudo, em situação de desconexão" (idem, 2008, p.5).

E é isso que talvez diferencia o efeito do excesso nos personagens de Alex de "Paranoid Park" e Allisson de "Garotas sem rumo" dos protagonista de "Cama de gato' e "Alpha dog".

Alex, desorientado após o acidente, recebe de uma amiga de colégio a sugestão de escrever tudo o que esta acontecendo como forma de exorcizar aquilo que o atormenta.

Allisson, por sua vez, durante uma aula no dia seguinte a tumultuada tentativa de iniciação na guangue da rua 16, num debate, ao responder uma pergunta do professor, percebe que no sistema capitalista todos querem apenas lucrar, ninguém esta disposto a assumir responsabilidade por nada. Esse saber jogado sem maiores pretensões num debate escolar retorna a ela possibilitando assim assumir uma nova postura. No caso em questão, assumir a responsabilidade pelo ocorrido.

Já em "Cama de gato" e "Alpha dog" o desenrolar do excesso se configura completamente diferente. No primeiro filme, os personagens perdidos diante do estupro e do homicídio que cometeram entram em delírio. Passam a vivenciar situações absurdas e a ouvirem vozes imaginárias que os (des)orientam, conduzindo-os a uma sequência de atos cada vez mais drásticos. Tais atos podem ser considerados como se o próprio excesso se reeditasse na tentativa de fornecer a possibilidade de uma nova guinada, mas sem conseguir faz valer uma interdição.

Em "Alpha dog" todas as tentativas de questionar a gravidade do ato sequestro eram impossibilitadas ou pela ausência de uma contra parte que pudesse devolver aos jovens o saber inconsciente que os atormentava. Ou, também, pelos modos de conivência com as figuras competentes para.

Os filmes mostram, assim que, apesar do excesso buscado e vivenciado pelos jovens retratados conduzi-los a um local no qual lhes é possibilitado promover um giro discursivo e elaborar um saber capaz de ofertar novas possibilidades de laço, se faz não apenas necessária, mas praticamente essencial, a presença de operadores que facilite o processo junto a eles.

O excesso então é esse excedente que se situa entre forjar-se ora como lugar aberto a atuação de interdito, ora a evocar o ato a apresentar-se como suplência do nome-do-pai. Ato esse que, em todos os casos, enseja uma possibilidade de inscrição, ainda que insuficiente ou não desejada necessariamente pela ordem ou pelos ideais sociais.

 

Referência Bibliográfica

ALBERTI, S. O Adolescente e o outro. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CHEMAMA, R. (org.). Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Larousse, 1995.

DEBARTOLIi, J. A. Adolescência(s) e formação humana. In: CARVALHO, A., SALLES, F., & GUIMARÃES, M., Adolescência(pp. 31-47). Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MELMAN, C. O que é um adolescente? In: O Adolescente e a modernidade - Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Tomo II. Rio de Janeiro: Escola Lacaniana de psicanálise, 1999, pág. 21-36.

MILLER, J-A. Rumo ao PIPOL 4, mimeo

PEREIRA, M.R. A morte da infância. In: LEITE, M.C. Crianças invisíveis Campinas : Papirus, 2009.

SODRÉ, M. Televisão e psicanálise. São Paulo : ABDR, 2003.

SOUZA, M. L. R.. Violência. 2ª Edição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

Filmes:

ALPHA DOG. Direção: Nick Cassavetes, 2006.

CAMA DE GATO. Direção: Alexandre Stockler, 2002.

GAROTAS SEM RUMO. Direção: Barbara Kopple, 2005.

PARANOID PARK. Direção: Gus Van Sant, 2007.

 

 

1 Nome-do-pai: expressão de Lacan que recupera e atualiza a noção freudiana de Pai, considerando-o não como o patronímico ou o pai da realidade biológica, mas como o da representação ou, mais precisamente, como o que exerce a função de metáfora. Nesse sentido, ele rege a constituição subjetiva por possibilitar a inscrição do desejo ao exercer interdição. Tal expressão ganhou vários conceitos em Lacan, porém aqui basta que o tomemos como uma metáfora que é operada por todos que se ocupam da função paterna, a exemplo dos que os historiadores chamam de "pais sociais": pais, professores, chefes, líderes, reis, deuses, tiranos, etc. Sobre isso, cf. Chemama, 1995; Rodinesco & Plon, 1998.