8O excesso como lugar de interditoA conversação e a intervenção sobre o mal-estar docente e o abuso sexual infantil author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

As conversações e a psicanálise aplicada à educação: um estudo do mal-estar do professor e o aluno considerado problema1

 

 

Margarete Parreira MirandaI; Ana Lydia SantiagoII

IAutora da tese de doutorado: "O mal-estar do professor em face da criança considerada problema: umestudo de psicanálise aplicada à educação". FAE/UFMG, 2010
IIProfessora da Pós-graduação da FAE/UFMG, orientadora da referida tese da qual se originou o presenteartigo

 

 

Isoladamente, os dois núcleos que compõem o objeto investigativo dessa pesquisa – o mal-estar do professor e a criança considerada problema – não são argumentos estranhos aos educadores. Os problemas inerentes à relação professor-aluno - aprendizagem e a questão do fracasso escolar tencionam o campo educativo, impulsionando trabalhos, tais como os desenvolvidos por: Patto (1993), Gomes (2000), Proença (2004) e Cohen (2006). Nosso objetivo, entretanto, será vincular os vértices da transmissão, tomando como hipótese a orientação de que a criança é considerada problema quando o professor não consegue ensinar a alguns alunos, sendo assolado pelo mal-estar. Os sujeitos da investigação de campo serão professores de crianças de sete a onze anos, de três escolas públicas, da cidade de Belo Horizonte.

Propondo um estudo de psicanálise aplicada à educação, os princípios teórico-metodológicos desta conexão irão balizar o trabalho de campo e as análises dos resultados. Nesse encalço, a psicanálise aplicada poderá também recolher os efeitos dessa construção, dentre eles o mais caro: conferir legitimidade aos seus preceitos, reconhecendo o desejo de seu fundador de estender a psicanálise ao mundo em que vivemos. Freud (1932-1933) defendia a aplicação da psicanálise a outras áreas do conhecimento, colocando em relevo o tema da educação. Foi enfático em seus dizeres: "Devo mencioná-lo porque é da maior importância, é tão pleno de esperanças para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da psicanálise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração" (p. 179).

A psicanálise se insere nos problemas educacionais da atualidade não pela ideia de uma "profilaxia das neuroses", mas pelo entendimento de que o caráter revolucionário das pulsões sexuais, que não se submetem por completo aos processos educativos, traz perturbações à transmissão.

Participar do movimento da contemporaneidade possibilita, portanto, aos psicanalistas atualizar suas ferramentas metodológicas e conceituais. O sujeito do inconsciente se constitui a partir do Outro da linguagem e faz laço social. Para Lacan (1964), "o entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações de grupo, entre cada um e todos os outros" (p. 195). O Outro referido ao simbólico não consegue, porém, dar conta de tudo pela palavra e nos remete ao impossível de se dizer. Esse impossível a descoberto gera mal-estar, mobilizando o sujeito em busca de maneiras diferenciadas para suportá-lo. A resposta de cada um ao que não vai bem, demonstra o modo particular do funcionamento psíquico e, inclusive, produz sintomas. Na educação, os sintomas escolares ganham nomes diferenciados, dentre eles "aluno-problema" e "professor desanimado". Para a psicanálise, os sintomas das instituições somente podem ser analisados na condição em que o sujeito se expresse sobre eles, no caso da educação, os alunos e os educadores. Esse é o caminho metodológico tomado em nossa pesquisa de campo: dar voz aos educadores, sujeitos de nossas investigações, nas Conversações, apostando que a palavra opera transformações.

 

As Conversações como dispositivo de pesquisa-intervenção nos problemas escolares

A Conversação é um dispositivo da psicanálise clínica criado por Miller (2003), e tem se estendido como psicanálise aplicada a outros espaços, inclusive à educação2. Trata-se de um procedimento grupal em que os professores debatem sobre um tema por eles proposto, podendo expressar as dificuldades em seu ofício. Dentre as diretrizes de uma Conversação está a de lidar com uma aposta no que virá, tendo como objetivo a produção do inédito. Da "associação livre coletivizada", em que o que um diz evoca no outro o seu dizer, considera-se que os efeitos da Conversação serão recolhidos por cada um. Pontos que se sobressaem no discurso dos professores serão isolados para análise. Em sua feição intervencionista, as Conversações propiciam a experiência com a palavra, em cujo domínio o desejo de ensinar, mote orientador do ato educativo, poderá destacar-se, onde antes imperava a impotência, o rótulo e o fracasso na educação.

 

A palavra como instrumento das Conversações

"O homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez homem", nos adverte Lacan (1953, p. 278). Nosso objeto de estudo faz parte de um contexto discursivo do mundo contemporâneo, em que a absorção de paradigmas generalizadores rompe com as peculiaridades subjetivas que o simbólico privilegia. É freqüente, na educação, se enquadrar um aluno como "problema" ou considerar um professor "incapacitado" dentro de um sistema educativo questionável em si. Para a psicanálise, porém, o rótulo congela as representações em exigência própria à sua formatação. Os lugares conferidos ao aluno e ao educador como "problema" embalsamam o sujeito e o petrificam. Nessa direção, os professores se vêem prisioneiros da linguagem, quando atormentados se inquietam diante do "ineducável" das "crianças impossíveis". Por estarmos lidando com a teia discursiva da palavra, que também engenha sintomas, será este o instrumento privilegiado para desembaraçar essa trama.

É importante lembrar os dizeres de Laurent (2004) referindo-se ao alcance da palavra que a Conversação introduz. Alerta-nos para a relação ética com a transferência: não se trata de concordar com o gozo do "blá-blá-blá", mas de se estar atento ao momento de abrir as comportas da fala e também de fechá-las. No detalhe da Conversação, o sujeito do inconsciente daria sua entrada, podendo emergir na poética dos caminhos e descaminhos da fala: os equívocos, os lapsos, os erros, os tropeços, as contradições e mesmo os silêncios. O mal-estar expresso pelos professores em forma de queixa é acolhido, para que possa se abrigar e ser tratado pela palavra.

Preciosas construções de Lacan (1953) esclarecem acerca da função e do campo da linguagem, pois, "quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não se justifica que se o negligencie", adverte (p. 248). Destaca ainda que há um apelo do sujeito para além do vazio do seu dito: já que não há fala sem resposta, toda fala pede uma resposta. A arte do analista, segundo o texto de Lacan (1953), e aqui estendemos suas premissas ao trabalho das Conversações com professores, deve-se constituir em suspender as certezas do sujeito para que, na escansão, possa ele mesmo buscar a solução e outros destinos para o que os faz sofrer no exercício da função de educar.

Merecem também destaque, a nosso ver, as formulações lacanianas ao referir-se à função simbolizadora da fala, na estrutura da comunicação pela linguagem. A comunicação, para Lacan (1953), tem uma função transformadora, já que estabelece ligação entre quem emite e a quem se dirige o emissor. A "linguagem-signo" mostra, entretanto, sua insuficiência por querermos dizer sempre mais, ou menos, do que a palavra alcança. Entre os animais, nos lembra ele, há "uma correlação fixa entre os signos e a realidade que eles expressam" (p. 298). Na linguagem dos humanos, os signos adquirem valor por sua relação uns com os outros. É na intersubjetividade que ela encontra o seu lugar, onde a indubitável flexibilidade dos signos da enunciação humana se aloja. Ao contrastá-la à fixidez da comunicação entre os animais, Lacan nos adverte que a redundância é diferente da ressonância. E diz: "Pois, nesta, a função da linguagem não é informar, mas evocar" (LACAN, 1953, p. 301). No dispositivo das Conversações com professores, o que um diz pode ressoar no outro participante, evocando o seu ser e convocando sua subjetividade. Nos interstícios, o sujeito poderá fazer sua enunciação, e surgir o novo imantado pelo desejo.

 

O tempo e o movimento das Conversações3

Qual o tempo das Conversações? Estaria ele ligado a uma lógica diante do Outro, no manejo da transferência, que conduziria seu movimento, tal como Lacan (1945) introduziu? Recorremos ao texto de Lacan (1945) para fazer a leitura do tempo e do movimento das Conversações. O tempo lacaniano se modula em um movimento lógico diante de um problema a ser resolvido: o instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir. No instante de olhar para o problema uma subjetivação se modula: o sujeito impessoal recíproco. No tempo para compreender, o sujeito objetiva em uma ocasião para meditação e reflexão: sujeito indefinido recíproco. No momento deconcluir há uma asserção do sujeito sobre si: asserção subjetiva. Para Lacan (1945), é naurgência do tempo lógico que o sujeito precipita sua conclusão.

Segundo Lacan (1945), expor uma sucessão cronológica do tempo seria manter um formalismo e reduzir o discurso a um alinhamento de sinais. Por outro lado "mostrar que a instância do tempo se apresenta de um modo diferente em cada um desses momentos é preservar-lhes a hierarquia, revelando neles uma descontinuidade tonal, essencial para o seu valor" (p. 204).

No desenrolar das Conversações podemos identificar três momentos que sobressaem, nem sempre em uma ordem sequencial ou em um tempo cronologicamente regulado, mas prevalecendo as ondulações dadas às singularidades.

1º) A denegação: o professor desvia para fora do espaço escolar os problemas da relação ensino-aprendizagem. Não se implica na problemática, uma vez que envolver-se seria dar-se conta da posição que ele ocupa frente à criança. Podemos entender que o "não querer olhar" ou "ver não podendo ver" o problema coloca o professor fora da lógica de reciprocidade coletiva. No entanto, esse seria o instante de olhar, adotado em sua "impessoalidade", nas Conversações.
2º) A subjetivação: envolvido no problema, o professor instala-se no vértice da impotência. Às vezes se interroga. Esse seria o tempo de compreender e elaborar sobre as situações complexas que paralisam. A reflexão sobre suas dificuldades com o manejo da criança considerada problema poderá promover um giro em suas representações.
3º) A reconciliação com algo dele mesmo, sobressaindo o desejo de ensinar. Esse momento é tomado como tempo de concluir, ainda que em uma conclusão provisória do exercício entre os dizeres. O professor engata-se novamente no agir que propicia a transmissão, disposto a buscar saídas que vivifiquem sua prática.

 

A Conversação com professores e o "destravar as identificações"

Outro aspecto que colocaremos em destaque, nas Conversações, é decorrente dos anteriores e diz respeito a sua configuração como espaço relevante para "destravar as identificações", de acordo com os ensinamentos de Laurent (2004). Existe uma norma identificatória4 que vem do Outro – os pais, professores, autoridades da saúde e da educação – que aliena o sujeito a um ideal coletivo e aparta a singularidade que diz do funcionamento próprio de cada um. Se, contudo, o sujeito se aliena ao Outro de forma massiva passa a responder de acordo que a demanda que daí advém, sem nenhuma brecha que oxigene essa relação. Nessas circunstâncias, inibições em relação ao saber, comportamentos "indisciplinados" ou outros atos podem aparecer como sintomas escolares.

Fazer a "oferta da palavra" seria "intervir com o ato analítico para além de favorecer as desidentificações", nos avisa Laurent (2007). A presença dos psicanalistas nos espaços institucionais servirá de mediação para que o sujeito, ao se perceber identificado ou produzindo sintomas, possa dar um passo a mais e se interrogar sobre o que fazer com eles. Argumenta ainda o autor, que podemos reconhecer um "bom uso do sintoma" quando, em vez de aglutinar discursos e ações, o sujeito busca, na novidade, energia viva para alimentar as relações. Nesses casos, dizemos que houve circulação de significantes como resposta para o insuportável que o real produz. Fora do enquadre convencional, o ato psicanalítico vem, muitas vezes, em forma de pergunta e tem efeito de poda no imaginário que gera desperdício e gozo excessivo.

Fixados ao que não vai bem no espaço escolar, muitas vezes os educadores fixam a criança e o adolescente considerados problema às características a eles atribuídas. É comum, no transcorrer das Conversações, entretanto, a promoção de um deslocamento nas representações e a recolocação dos professores de que os alunos considerados problema "não são tantos assim", e a porcentagem que "não atinge 10%" atesta que o número de crianças consideradas problema diminuiu.

Santiago (2008) vem nos lembrar que a educação de crianças nas escolas passa pela palavra do professor. Para a autora, o impossível da transmissão "abrange todos os fenômenos que geram mal-estar, por se apresentarem como uma resistência à ordem simbólica [...] (no caso do professor) o impossível da transmissão se manifesta pela perda de desejo" (p. 115). Da impotência para o desejo de ensinar, o item que se segue permite uma análise da posição dos professores no trabalho com a criança considerada problema, a partir do que expressam nas Conversações.

 

Da impotência para desejo de ensinar às crianças consideradas problema

O quadro abaixo, mostra pontos que sobressaíram das Conversações com os professores da pesquisa, sendo possível recolher o movimento que o dispositivo introduz.

 

 

Ao expressarem o mal-estar, os professores de nossa pesquisa deixam escapar uma sequência de enunciados que trazem um sujeito aniquilado, esvaecido, destituído do brilho que poderia agalmatizá-lo na relação professor-aluno-saber. Se o desejo ilumina o sujeito dando-lhe fulgor e vivacidade próprios, nos momentos em que o mal-estar impera o sujeito está apagado. A supressão do desejo de ensinar obscurece a presença de sua função no ato educativo e obnubila o seu ser. O agalma, aquele objeto brilhante que causa e sustenta a transferência, ou seja, o vínculo educativo na relação do professor com o aluno em direção ao saber, obscureceu-se no dizer dos professores, naquele momento. Em sua disposição parcial, e jamais totalizadora, é bom esclarecer, o agalma para Lacan (1960-1961), indica "que o importante é o sentido brilhante, osentido galante, pois este termo vem de gal, brilho no francês antigo" (p.146).

Nessas situações, em que as respostas dos professores são frutos do mal-estar, é comum se colocarem na posição discursiva que segrega o desejo. Perturbados no "que fazer", a impotência e a paralisação sobrelevam: "parece que nada está surtindo efeito;sentimento de angústia de que não se está atingindo nada; sensação de que não se chega a lugar nenhum; está pesado" . Outra professora disse: "A gente tem uma meta pra cumprir e a gente não consegue; nossa! Estou fazendo tudo errado!". Ou ainda: "O professor perdeu a autoridade na escola; só os alunos têm vez; os professores estão massacrados, estão reféns dos alunos, da comunidade, do "Alô Educação"; não tem suporte". Como consequência de tudo isso expressam sensações contraditórias. Sentem-se "desistentes" e "lutando contra a correnteza". Consistente, contudo, é a afirmação do seu mal-estar: "saio daqui todos os dias como se estivesse amassada, como se tivesselevado uma surra". Do que estaria apanhando aquela professora?, podemos interrogar.Justificam os motivos que os deixam amarrotados e com a sensação de terem sido vencidos: "Não estamos conseguindo dar aulas". Colocam-se na posição de objeto, que, no lugar de produto na cadeia discursiva, resta como desejo submetido pelo Outro do discurso capitalista, que já não se interessa por quem não produz, de acordo com os parâmetros determinados. Difícil supor saber a alguém tão destituído de sua função. Mesmo interrogando sua prática, o que transparece é a inoperância do fazer: "Como daraula naquela confusão de um fala, o outro fala, o outro fala?" "Como mudar essa realidade em quatro horas e meia?".

Oscilam. Seguindo a linha da impotência encontramos, do outro lado, o desregramento das ações que irrompem capengas do envoltório simbólico, e os professores simplesmente reagem às dificuldades com os alunos: "Alguns conseguem tirar a gente do sério; cortei um doze olhando o recreio hoje". Uma professora seexpressa: "Chego a ficar rouca: eu berro, eu só falto subir em cima da mesa. Tenhoque ameaçar". Ou ainda: "Se você não se assentar vou te dar um pescoção que você vai ficar três dias sem saber o que veio fazer na escola".

Podemos estabelecer uma sequência a partir das respostas dos professores, que têm na impotência a sua base:

1º) O aluno é problema – porque "faz parte de uma clientela difícil, de umarealidade social diferente".
2º) Esse modo de entender a situação desinstala o professor de seu saber, e, consequentemente, fica mais difícil ensinar – "Parece que nada está surtindo efeito;sensação de estar fazendo tudo errado e por isso não aprendem".
3º) A partir daí, o professor não supõe a essas crianças capacidade de aprender e inovar – "como mudar essa realidade em quatro horas e meia?; tem que lidar commuitos imprevistos; tem que trabalhar socialização".
4º) A consequência é o fracasso na transmissão: "sensação de que não se chega alugar algum, "somos desistentes".
5º) E aí o mal-estar – "angústia de não estar atingindo nada".

O mal-estar paralisa o professor, e a cadeia se repete, fechada nos pressupostos de professores impotentes que não sabem ensinar a alunos problema que não aprendem..

É surpreendente, contudo, podermos constatar nas Conversações, como alguns professores têm desalojado a apatia e a inoperância do seu fazer. Ressaltam ser possível furar o cerco e deixar fluir as invenções criativas que sustentam uma prática educativa inovadora e responsável. Causado, o professor posiciona-se como autoridade frente ao saber, colocando em movimento o desejo de aprender a ensinar. Para além da função de repassar conhecimentos, nessa condição, o professor abre espaço para que algo do que deseja ensinar possa agir sobre os alunos. Suporta, a seu modo, os vazios e intervalos na circunstância de ensino-aprendizagem, por cujas brechas as particularidades da relação do aluno com o saber podem ingressar.

Atentos ao aspecto não linear e contraditório do que a malha discursiva constrói, recolhemos do movimento das Conversações, produções inéditas em que o desejo de ensinar sustenta uma prática que "tira a criança do lugar", como disse uma professora. Retirada do lugar de problema, a criança pode encontrar na escola um lugar que lhes desperte o "desejo de viver", como nos lembra Freud (1910), oportunizando ao professor, reconciliar-se com a vivacidade da transmissão.

Dessas ocasiões, sobressaíram as falas: "Eu acredito numa educação que tira omenino do lugar dele [...] trabalho com envolvimento, insisto, pego firme, trabalho com jogos, sou carinhosa quando tem que ser [...] oriento no caso de droga, abuso, violência: – Sai de perto! [...] trabalho, esquematizo". Os educadores que assim seposicionam dizem que as crianças sabem o que vai ser feito e o que os professores querem. Afirmam também que cobram, exigem e não permitem que as crianças corram na sala de aula. Dizem: "É preciso ter uma mesma linha de trabalho na escola [...]dentro da sala eu sou a autoridade! [...] É importante escutar o aluno e o aluno escutar o educador [...] O aluno não tem direito de desrespeitar o professor e vice-versa [...] Não bato de frente, mas coloco o menino pra sentar na frente [...] lembro os combinados, falo de novo; explico que aquilo não deve acontecer dentro e fora da escola". Nessa direção, o professor é resistente na defesa de seu desejo de ensinar e delenão desiste. Vale lembrar que, antes de desistir do aluno o professor desiste do próprio desejo de busca e inovação. Ao resistir, recolhe os efeitos de seus investimentos: "Asala está assim, uma surpresa grande para mim!".

Pudemos localizar respostas dos professores diante das situações difíceis e trazemos alguns pontos que se destacam quando o professor sustenta esse desejo:

1º-O  desejo  de  ensinar  orienta  a  concepção  do  professor  do  que  seja  educação:

"Eu acredito numa educação que tira o menino do lugar".

2º-Sua concepção é acompanhada de uma decisão de ensinar que coloca em movimento o desejo de saber do aluno: "Trabalho, esquematizo. Os alunos sabem o quevai ser feito, o que eu quero, o que eu cobro, o que eu exijo [...]". Ou: "Tento valorizar ao máximo as crianças; é importante escutar o aluno, e o aluno escutar o professor; trabalho com envolvimento, insisto, pego firme; trabalho com jogos; sou carinhosa quando tem que ser".

3º-Os efeitos desse ato: a aprendizagem dos alunos e a capacidade de ensinar do professor. "Tenho vários alunos que me surpreenderam!"

O circuito do desejo movimenta o ato da transmissão, descola as prévias suposições, abre passagem para o novo e o singular que protestam a segregação do sujeito pelo rótulo e generalizações.

 

Conclusão e considerações finais

Concluímos esse artigo destacando que o núcleo do mal-estar do professor frente ao aluno considerado problema, ponto de onde emergem suas queixas e sintomas, é a convicção de ser desviado de sua função de ensinar, em vários momentos. Quando isso acontece, ele se desconecta de seu desejo e delega os destinos da transmissão ao Outro: ao aluno considerado problema, às famílias, às autoridades do ensino.

A operacionalidade das Conversações, como metodologia de pesquisa-intervenção e instrumento de coleta de dados para análise, dá mostras de um deslocamento no dizer dos professores. Da opacidade na transmissão para o brilho que o desejo de ensinar introduz, uma nova leitura se torna possível. Pudemos ver que o circuito do fracasso escolar se desencadeia a partir do momento em que os professores, destituídos por eles mesmos da capacidade de ensinar às crianças, a elas não supõem um saber, e ambos sucumbem. Nessas circunstâncias, o aluno é considerado problema e o professor incapaz de ensinar.

Para além das identificações, entretanto, o sujeito tem a chance de se perceber identificado ou produzindo sintomas, nas Conversações, podendo dar um passo a mais e se interrogar sobre o que fazer com eles. Uma outra posição se evidencia quando os educadores se responsabilizam pelo próprio desejo, abrindo janelas para a busca e a novidade que vivifica a transmissão. E, aí, as surpresas arejam o espaço escolar, dando lugar ao que anteriormente enrijecido, fazia jus à segregação.

 

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund (1910). Breves Escritos. Contribuições para uma Discussão acerca do Suicídio. In: ESBOPC. Rio de Janeiro: Imago, 1970. p.217- 218.

FREUD, Sigmund (1932-1933). Conferência XXXIV, Explicações, Aplicações e Orientações. In: ESBOPC. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.167- 191.

LACAN, Jacques (1964). O campo do Outro e o retorno sobre a transferência. O sujeito e o Outro (I): a alienação. In: O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p.193-204

LACAN, Jacques. A função criativa da palavra (1953-1954). In: O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. 269-279.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção antecipada (1945). In: Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. 197- 213.

LAURENT, Eric. CIEN, Instituto del campo freudiano. In: Cuaderno 5. Buenos Aires: CIEN ; Instituo del campo freudiano; Centro de investigaciones del ICBA, nov. 2004.

LAURENT, Éric. O analista cidadão. In: A Sociedade do Sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007. p 141-150.

MILLER, Jacques-Alain. Problemas de pareja: cinco modelos. In: ______. La pareja e el amor. Buenos Aires: Editora, 2003a. (Conversación Clínica con Jacques-Alain Miller em Barcelona).

MIRANDA, Margarete Parreira. O mal-estar do professor em face da criança considerada problema: um estudo de psicanálise aplicada à educação. Belo Horizonte, Programa de Pós-graduação em Educação, linha Psicologia, Psicanálise e Educação da FAE/UFMG, 2010. (Tese de Doutorado).

SANTIAGO, Ana Lydia . A inibição intelectual na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 229p.

 

 

1 Este artigo será trabalhado a partir da pesquisa de doutorado defendida pela autora sobre o tema, naFAE/UFMG, em 2010.
2O NIPSE (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação), da FAE/UFMG, temutilizado esse instrumento de pesquisa-intervenção desde 2005.
3A elaboração dos tempos das Conversações se deu a partir da intervenção em uma escola, em parceriacom a psicanalista e pesquisadora Maria Rachel Botrel, no ano de 2009.
4 O conceito de identificação é central nos estudos da psicanálise, tanto em Freud como em Lacan.Aparece em Freud desde o princípio de suas teorizações, o capítulo VII de seu texto "A psicologia das massas e análise do Eu" (1921). Nesse artigo, analisa as identificações como processo por meio do qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando de traços dos seres humanos que o cercam, em momentos - chave de sua estruturação psíquica. Em 1925 Freud determina a saída do complexo de Édipo para a menina e o menino como duas maneiras distintas de identificação. Em 1933, diz estar na base das identificações o supereu como herança da autoridade dos pais.