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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Fragmentos de estudo de um caso: Claudia e o bom de bola

 

Fragments of a case study: Claudia and the "ace" with a ball

 

 

Maria Cecília Costa OliveiraI; Sávio Silveira QueirozII

IPsicanalista. Analista-membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. Diretora da Escola da Ilha-Florescer, em Vitória-ES. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Rua Constante Sodré, 961/702, Praia do Canto, Vitória-ES. CEP 29055 420. Tel: 27-32255261. cecilia@florescer-ilha.com.br
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço: Rua Arthur Czartoryski, 587/903, Jardim da Penha, Vitória-ES. CEP 29060 370.  Tel:27-81348960. savioqueiroz@terra.com.br

 

 


RESUMO

Apresentaremos um fragmento de um estudo de caso com objetivo exploratório que investigou as concepções do professor a respeito da transferência na relação professor-aluno e como tais concepções são por eles construídas.

Foi possível reconhecer como algumas identificações imaginárias dos professores podem vigorar como entraves, seja na aprendizagem seja nas relações com seus alunos, e que saber lidar com crianças especiais, como relatado por Cláudia, requer necessariamente que se tenha um bom saber a respeito de aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno.

Palavras-chave: Psicanálise. Educação. Transferência.


ABSTRACT

We present a fragment of an exploratory objective case study that investigated the teacher conceptions regarding transfer in a teacher-student relationship and how such concepts are constructed by them.

It  was  possible  to  recognize   how  some  teacher's  imaginary identifications may apply as bindings, whether in learning, or in relations with their students; also, that knowing how to work/deal with children who require special attention, as reported by Claudia, necessarily requires one should have good knowledge about subjective aspects present in a teacher-student relationship.

Keywords: Psychoanalysis. Education. Transfer.


 

 

A transmissão de conhecimentos, própria do campo educacional escolar, passa por uma dinâmica que está para além do "eu ensino e você aprende". Há, necessariamente, uma relação que se estabelece entre professor e aluno que poderá viabilizar a aprendizagem, contribuir ou prejudicá-la.

Na atualidade, acompanhamos diversos conflitos no espaço escolar, muitos deles, acreditamos, poderiam ser evitados ou minimizados se os educadores pudessem considerar a hipótese do inconsciente e a existência da transferência, especialmente na relação entre professor e aluno.

A transferência é conceituada por Freud como a repetição de estereótipos elaborados a partir das experiências infantis mais remotas e da disposição inata. Constitui o modo específico de cada sujeito relacionar-se com os outros ou de conduzir-se na vida erótica. Toda relação humana guarda a marca dessa singularidade, construída na infância a partir da relação com seus pais. Esses estereótipos são deslocados inconscientemente para a figura de outras pessoas e são vividos como eventos atuais.

Não é novo anunciar a presença da transferência no universo escolar, pois Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, já apresentava a ideia com bastante clareza em alguns de seus textos, como em "Algumas reflexões sobre a psicologia escolar" (Freud, 1980c). Neste, afirma que os professores se tornam nossos pais substitutos, pois transferimos para eles nossos anseios, respeito e expectativas que estavam dirigidos ao pai onisciente de nossa primeira infância. Dessa forma, fica explícito que, no processo educativo, estão presentes fenômenos inconscientes que ultrapassam o controle do professor e do aluno.

A transferência é um fenômeno subjetivo, próprio do inconsciente, que acompanha a transmissão de conhecimentos. Ao pretender transmitir conteúdos, o professor transmite muito mais, sem saber. Nessa transmissão, há sempre algo de não saber, pois nunca se sabe ao certo o que se transmite.

O que poderia ser pensado como mera relação de transmissão de conhecimentos é, na verdade, um complexo acontecimento, campo em que se atualizam diversas subjetividades, disso resultando uma grande distância entre o que se ensina e o que se aprende.

Na instituição escolar, os professores são personagens substitutivos da relação familiar, em quem serão depositados os resíduos inconscientes vividos no contexto familiar. Por essa razão, os fenômenos psíquicos se atualizam na figura do professor.

Conforme exposto, a relação entre o professor e seu aluno é marcada por aspectos subjetivos, inserindo o mestre numa posição bastante especial para cada um de seus alunos. Ele participará da vida subjetiva de seu aluno para além de uma mera relação instrucional, mesmo que não queira ou nada saiba sobre isso.

Pretendemos apresentar um fragmento de estudo de caso, com objetivo exploratório, que teve como intenção investigar as concepções do professor a respeito da transferência na relação professor-aluno, como tais concepções são por ele construídas, assim como algumas possíveis contribuições da psicanálise para a educação.

 

Aspectos metodológicos

Este estudo de caso foi realizado com três professores de escolas regulares de ensino fundamental, públicas e privadas, com o mínimo de cinco anos de atividade docente e com faixa etária entre 25 e 45 anos.

Elaborou-se um roteiro para uma entrevista aberta e semiestruturada (Flick, 2004) provocando o professor a falar de sua experiência profissional, com foco nos aspectos subjetivos que comparecem na relação com seus alunos.

Foram realizadas três entrevistas em profundidade com cada uma das três professoras, convidando-as a falar livremente sobre suas práticas. Foram abordados diversos temas, entre eles, escolha da profissão, recortes de suas experiências como alunas e como professoras, lembranças infantis, professores que marcaram suas histórias. Para analisar os dados coletados nas entrevistas, procedemos uma análise da enunciação, por considerar estes dados como um campo de conhecimento que inclui a hipótese do inconsciente.

 

Resultados e Discussão

Os relatos das participantes são permeados por diversos aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno, muitos dos quais são identificados pelas professoras. Frequentemente elas reconhecem aspectos referidos a uma transferência quando falam a partir da posição de alunas, mas têm dificuldades de identificar esses aspectos quando fazem algum relato a partir da posição de professora. Percebe-se que alguns elementos são claramente desconhecidos pelo sujeito, tratando-se, assim, em alguns casos, de aspectos inconscientes tanto dos alunos quanto dos professores.

Compreendeu-se que uma transferência que leva o aluno ao trabalho, aquela que libera o sujeito para uma elaboração de saber, pode depender de certo manejo do professor, no sentido de provocar cada um de seus alunos em busca por saber. Colocando-se numa posição de mestre não todo (Kupfer,1999), ou seja, fazendo semblante de mestre, mas sabendo-se não todo, o professor abre espaço para que o aluno possa se inserir efetivamente em sua aprendizagem.

Ao considerar quais aspectos poderiam contribuir para uma construção de saber a respeito dos elementos subjetivos presentes na relação professor-aluno, a experiência de uma participante junto a alunos com necessidades especiais parece significativa. Percebe-se que a vivência com esse trabalho muito instrui o professor, tanto a respeito de quão diversos podem ser os processos de aprendizagem (como se processa a construção de conhecimento) quanto em relação ao lugar do professor diante do aluno, viabilizando ou dificultando a construção de saber.

Apresentaremos a seguir alguns relatos dessa professora.

Cláudia (nome fictício) declara que pretendia ser professora de educação especial. Havia convivido em sua infância com várias crianças portadoras de necessidades educativas especiais que não tinham qualquer assistência em escolas. Percebia-se, em sua vida escolar, como péssima aluna: "fui péssima, uma péssimaaluna, era desinteressada, não participativa, entrava, sentava, fazia o dever, sentava e ficava, entendeu? [...] não tinha relações com o professor".

Relata seu trabalho com um aluno especial que, no início do ano, contava com uma estagiária que tentava contê-lo. Relata o seguinte diálogo: "„mas ele é, é violento‟,eu falei, „não, ele é uma criança, é uma criança, ele tem oito anos de idade, o máximo que ele pode fazer é me dar um chute na canela, não vou morrer por causa de chute‟". Solicitou a saída da estagiária e assumiu o trabalhando com o aluno. Afirma que ninguém olhava de verdade para ele: "ninguém olhava para o menino, não olhava, nãocuidava, não queria saber o que ele tinha para dar, entendeu? Então achavam que ele era um pobre coitado, que tinha que ter um estagiário para segurar, né? [...] Aliás, para mim, ele tem umas deficiências sim, mas ele tem uma inteligência como qualquer criança".

E relata os progressos: "o R. está lendo e escrevendo. Não lê o material todo[...] mas [...] não se rabisca, não se mutila, não mais faz xixi na calça, não mais faz cocô na calça". Com ele, aprendeu a jogar bolinha de gude e o inseriu na turma. Ele é muito bom no jogo, dessa forma conseguiu um lugar no grupo.

Seu envolvimento na relação com os alunos é evidente: declara que sonha com eles: "de noite, eu sonho fazendo uma coisa com o menino, sabe, aí eu acordo, falo:„meu Deus do céu, sou neurótica mesmo‟ [...] dando aula, ensinando... ontem o menino não conseguiu aprender a conta de vezes de jeito nenhum, aí eu sonhei de noite que eu estava ensinando, ele tinha aprendido a fazer conta".

O sonho, tal como descrito por Freud (1980a), é uma manifestação do inconsciente, explicitando elementos significantes do falante que produz o sonho. Cláudia relata, em uma entrevista, a sua dificuldade na infância com a matemática, o que nos incita a levantar a hipótese de que, por meio de uma identificação com esse aluno, traz à cena sua criança esquecida. Interessante notar seu relato de que o menino no sonho tinha aprendido a fazer conta. Cláudia, que na infância era a aluna que tinha problemas na escola, recentemente resolve fazer novo vestibular, junto com a irmã, que era boa aluna. Cláudia é aprovada em décimo oitavo lugar.

A mãe de Cláudia ficou grávida sete vezes, mas apenas os três primeiros sobreviveram. O mais velho era, segundo a professora, "brilhante, uma inteligência fora dos padrões", porém, com dezoito anos, faleceu num acidente de carro. Cláudia é a "filha do meio" e a terceira é uma irmã que, segundo Cláudia, sempre foi "muito artista", muito caprichosa, diferente de Cláudia, que se diz "artista da vida", uma artista diferente – e afirma que isso é um "trauma". Relata ter sido uma criança muito doente até os quatorze anos, quando operou as amígdalas. Pensa que, por essa razão, foi uma adolescente que aprontou muito. Em sua infância, ficava frequentemente em casa lendo, daí decorre, possivelmente, seu grande interesse pelas histórias. Precisou tomar muito antibiótico e, por isso, acredita que ficou baixinha, enquanto os irmãos ficaram altos. Pensa que sua facilidade com alunos especiais justifica-se, pois: "creio que essafacilidade seja por eu estar aberta com eles, então eu não tenho dificuldades, e, com isso, eu consigo ensinar a eles. Antigamente poderia se dizer que isso era um dom, né? Hoje em dia eu acredito que seja, como faz parte da minha vida, eu já consegui adquirir algumas, não sei qual seria a palavra, algumas formas de estar lidando com eles. Agora, uma das coisas que eu acho que mais favorece essa relação é o fato de eu olhar para eles como pessoas normais, sem olhar com peninha, „coitadinho, é retardado‟, entendeu?"

Cláudia relata grande afinidade pelo trabalho com alunos com necessidades especiais. Cita exemplos de conduta que explicitam seu modo muito particular de perceber cada um em sua subjetividade. Parece que essa facilidade na relação com tais alunos está determinada por aspectos inconscientes. Ao procurar explicar sua facilidade com esses alunos, declara: "faz parte da minha vida".

Talvez se possa dizer que se trata de alguma identificação inconsciente com esses alunos, da qual Cláudia pode fazer um bom uso. Como vimos, relata que foi uma criança muito doente, precisou ficar muito em casa, percebe-se como uma "artista da vida, uma artista diferente" e declara que isso "é um trauma". Em sua infância, seu desinteresse pelos estudos parece repetir sua posição de "uma artista diferente", a atuação de um lado de sua história (afirma que "tem duas histórias") no qual manifesta a criança doente, diferente.

Possivelmente, graças a essa identificação, pode perceber seus alunos especiais, os "diferentes", como "pessoas normais", sem ficar com "peninha". Verifica-se, com suas declarações, que "ela aposta em seus alunos como sujeitos desejantes e não como objetos de uma dada deficiência, o que viabiliza grandes progressos dos alunos em suas aprendizagens" (Oliveira, 2010, p.116), como foi relatado.

Em seu manejo com os alunos e com as famílias deles, a participante Cláudia contribui dando lugar à criança. Confirma-se isso quando narra uma reunião com a mãe de um aluno que estava sempre copiando o colega. A mãe conta que a gravidez e o parto foram muito difíceis, que teve descolamento de placenta, e o médico chegou a acreditar que a criança estaria morta. Então Cláudia relata o que diz à mãe: "ele já nasceu, ele jánasceu, ele está vivo, falta ele viver, entendeu? Porque viver à sombra dos outros... mãe, acorda, sabe, sai com seu filho, leva para o cinema, faz ele ler com você, ele é menino inteligente."

Cláudia explicita assim um reconhecimento da singularidade de seus alunos, o que a auxilia em sua atividade profissional. Percebe a presença de aspectos inconscientes na ação dos alunos, assim como na relação pais-filhos. Seu trabalho com esses alunos contribui para uma explicitação de alguns aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno, pois, "ao considerar cada aluno em sua singularidade, Cláudia consegue identificar uma diversidade de processos de aprendizagem, assim como algumas questões subjetivas presentes na relação do aluno com o saber, com os colegas, com a professora e com seus pais" (Oliveira, 2010, p.119).

Sua vivência na infância com crianças ditas especiais, os traços de sua história e sua experiência profissional com esses alunos contribuem para a construção de saber sobre aspectos subjetivos presentes nessa relação. Saber lidar com crianças especiais, como relatado por Cláudia, requer, necessariamente, um bom saber a respeito de aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno.

Moura (2005) ressalta a importância dos aspectos subjetivos veiculados pela relação transferencial e afirma que, no contexto educacional contemporâneo, não se percebe uma vontade de resgatar a singularidade intrínseca a cada um. O relato de Cláudia indica um caminho no sentido do resgate dessa singularidade, ao considerar cada aluno em sua diversidade, dando atenção individualizada e posicionando-se como referência para seus alunos.

Trata-se de um saber que pode ser transmitido?

Percebe-se que uma visada a respeito dos conceitos psicanalíticos de inconsciente, de sujeito e de desejo pode contribuir para retirar o indivíduo da posição de objeto de treinamentos, conferindo-lhe um lugar de sujeito. Como indica Bernardino (2007), os progressos em neurociências, especialmente a descoberta da plasticidade cerebral, trazem novo embasamento para a importância dos conceitos de sujeito e de desejo, ao entender que intervenções terapêuticas significativas que dão lugar ao desejo da criança podem ser eficazes até mesmo redefinindo estruturas cerebrais nobres antes lesionadas. O que dizer, então, de estruturas cerebrais não lesionadas!

Percebe-se, assim, o alcance das intervenções com os alunos, considerando suas singularidades, em contextos significativos.

Considerar a hipótese do inconsciente demanda uma subversão no conceito dominante sobre sujeito/indivíduo. Toda prática tem como pressuposto, explícito ou não, um conceito sobre o sujeito. No caso das escolas, o que se coloca como questão é uma pergunta sobre quem é o aluno e como concebemos esse sujeito em seu processo de aprendizagem. Colocar essa pergunta como ponto de partida implica, já, uma posição frente à questão ensino-aprendizagem. Consideramos que, quando priorizamos no campo educacional uma pergunta sobre métodos ou conteúdos, estamos implicitamente concebendo o homem de forma objetificada. Reconhecer um sujeito tal como proposto pela psicanálise implica perceber que as aprendizagens estão referidas a um modo próprio de cada um, um estilo próprio de aprender.

Então, o primeiro passo a dar, na insistência de uma transmissão da psicanálise no campo da educação, "diz respeito a priorizar um questionamento sobre como se concebe o sujeito no campo das aprendizagens e nas relações humanas" (Oliveira, 2010, p.145). Esse nos parece ser um ponto de partida.

Ao tratar da noção de sujeito a partir do campo da psicanálise, a pergunta necessariamente estende-se também ao professor-educador – quem é o sujeito professor, com sua singularidade, seus sintomas e seu estilo na transmissão. O campo da transferência se coloca assim de forma evidente.

 

Referências Bibliográficas

1.Bernardino, L. M. F. (2007). A contribuição da psicanálise para a atuação no campo da educação especial. Estilos da clínica, 12(22), 48-67.

2.Freud, S. (1980a). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4, pp 543-660). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).

3.Freud, S. (1980c). Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. In S. Freud, Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 13, pp 281-288). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).

4.Kupfer, M. C. M. (1999). Por uma vara de vidoeiro simbólica. In J. G. Aquino (org.), Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 85-100). São Paulo: Summus.

5.Moura, F. (2005). Um olhar clínico na sala de aula: uma nova metodologia pedagógica? Estilos da Clínica, 10(18), 36-53.

6.Oliveira, M. C. C. (2010). Concepções de professores de ensino fundamental sobrea transferência na relação com seus alunos. Dissertação de mestrado não publicada,Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo.