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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A relação da criança com o saber: uma abordagem a partir da vigência das teorias sexuais infantis

 

 

Mariana Inés Garbarino

 

 

Introdução

A psicanálise tem demonstrado que o saber sobre o corpo sexuado e a origem resiste à simbolização por constituir uma narração impossível. A partir dessa afirmação, neste trabalho serão situadas algumas das questões que giram em torno da construção das teorias sexuais infantis como a relação da criança com o saber, as particularidades da produção mítica diante do enigma e a angústia por ele provocada. Se na perspectiva psicanalítica a sexualidade infantil está marcada pelo desejo do outro que encarna a linguagem e o social, como pensar o processo pelo qual a criança constrói suas teorias sexuais a partir da concepção de sujeito da psicanálise?

Conforme sugerido por Freud o sujeito não é uma tábula rasa na qual se imprimem as suas experiências, mas é a partir das suas potencialidades primeiras que o sujeito as organiza. O sujeito da psicanálise é constituído por pulsões que impelem ações e engendram fantasias e por um aparelho psíquico organizado em modos de funcionamento que diferem segundo o sistema no qual tem origem. Na obra de Freud a linguagem tem um papel privilegiado posto que o inconsciente é vislumbrado a partir das representações pré-conscientes de palavras. Da perspectiva lacaniana, na qual o papel da linguagem foi especialmente re-valorizado, serão destacadas as noções de semi-dizer e de mito.

 

A sexualidade e a relação da criança com o saber

No texto A organização genital infantil, Freud (1923/1996) explicita seu objetivo de reparar o descuido dos traços universais e constelações características no campo do desenvolvimento sexual infantil. Afirma que na fase fálica, o pênis, como parte do corpo excitável e sede de múltiplas sensações, promove o interesse da criança e a emergência de novas tarefas à sua pulsão de investigação. Em conseqüência, o esforço de investigação e a curiosidade sexual resultam da exteriorização da força pulsionante do pênis. A interrogação pela própria existência e o corpo sexuado que sobejasse na pergunta sobre a origem dos bebês é explicada por uma pulsão de saber que emerge pela necessidade de dar uma resposta a esse enigma. Freud (1908/1996) postula três teorias sexuais infantis típicas. A primeira é a teoria falocêntrica: homens, mulheres e outros seres vivos e não vivos tem pênis. A segunda é a teoria da cloaca, entendida como uma conseqüência da ignorância da vagina a partir da qual a criança infere que o bebê tem que sair pelo ânus, ou seja, sendo evacuado como um excremento. A terceira das teorias sexuais típicas apresentadas por Freud é a concepção sádica do coito, que pode ser produto da testemunha de uma relação sexual (barulho, posições, etc.).

Como entender essas teorias sexuais na atualidade, sendo que Freud lhes conferiu o caráter de "típicas"? Para abordar a questão é preciso reconhecer que, tal como sustentam Camargo e Ribeiro (1999), desde cedo as crianças percebem as diferenças entre os sexos, manifestam curiosidade sobre a reprodução e o nascimento, falam sobre namoro, participam de jogos sexuais e compartilham informações sobre sexo. Para as autoras, tudo isso se dá independentemente do adulto querer ou não porque o grupo de pares constitui uma fonte de informação e de resistência a sua censura. Na perspectiva da psicanálise, entende-se que essa curiosidade das crianças sobre a sexualidade não surge de maneira espontânea ou por necessidades inatas. Ela é provocada por um acontecimento de suma importância: o nascimento de um irmão, ou o temor de que isso aconteça. Segundo Freud (1910/1996), a chegada de um irmão é provocadora de teoria sexual infantil porque as pulsões egoístas dominam à criança quando suspeita a chegada de um novo bebê na sua família ou observa essa situação em outros lares. Dessa forma, as perguntas dos porquês, primeiras manifestações da pulsão de saber, emergem da ameaça de perder o lugar protagônico e central no amor dos pais e da necessidade de controle dessa situação angustiante. Nesse contexto a criança tem que afrontar a dificuldade de explicar o fenômeno da origem dos bebês e desse bebê em particular que o tirará de seu lugar de único objeto de amor parental.

A chegada potencial ou real de um irmão merece uma atenção especial segundo Freud. Em 1900, quando explica os sonhos típicos, dedica uma parte aos sonhos da morte das pessoas queridas (pais, irmãos, etc.). No que diz respeito à relação da criança com seus irmãos, rejeita a expectativa de que esse vínculo seja exclusivamente amoroso ou de amizade, e propõe que inclusive os adultos que sentem apego pelos irmãos sentiram por eles hostilidade durante a infância. Segundo Freud,

o filho mais novo maltrata o mais novo, fala mal dele e rouba-lhe seus brinquedos, ao passo que o mais novo se consome num ódio impotente contra o mais velho, a quem inveja e teme, ou enfrenta seu opressor com os primeiros sinais do amor à liberdade e com um senso de justiça (1900/1996, p. 277).

O trabalho de pensamento da criança acerca desse problema coexiste com a própria excitação orgânica até que a atividade de investigação finaliza por causa da suposição de que a mãe também tem pênis. Segundo Freud (1908/1996), nesse ponto do trabalho intelectual, a criança enfrenta o seu primeiro conflito psíquico. Algumas das suas concepções de preferência pulsional, são incorretas na perspectiva dos adultos ou de outros colegas mais velhos. As concepções avaliadas como "boas" (produtos da educação e resultantes da cessação da própria reflexão) se tornam dominantes e conscientes, enquanto que as outras se tornam reprimidas e inconscientes. Assim se forma o complexo nuclear das neuroses, o complexo de Édipo. Surge de um conflito entre as fantasias e certezas pulsionais da criança e as evidências e explicações do meio que as contradizem. Esses contínuos fracassos para solucionar o enigma levam a que a tarefa de pesquisa seja desestimada e esquecida. Freud observa que

essas hesitações e dúvidas tornam-se, entretanto, o protótipo de todo o seu trabalho intelectual posterior aplicado à solução de problema, tendo esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre todo o futuro da criança (ibid, p. 198).

Entretanto, vale aqui ressaltar que os obstáculos cognitivos para entender a fecundação são importantes. Um dado a levar em consideração é que esse complexo fenômeno teve uma descoberta relativamente recente. Jagstaidt (1987) comenta que até 1870 o mundo da ciência oscilou entre duas teorias pré-formistas. O ovismo, que sustentava a idéia de um humano miniaturizado existente em um ovo, e o animalculismo, cuja idéia central era a de um homenzinho agachado na cabeça do espermatozóide. Dessa forma, o desenvolvimento humano intra-uterino consistia somente no aumento de tamanho. Nessa linha, Freud (1905/1996) também assinala a impossibilidade da compreensão do ato sexual e do nascimento como uma conseqüência da organização sexual infantil ainda imatura para compreender o papel do sêmen e a existência da vagina. Diante do exposto, as teorias sexuais infantis são definidas como

o reflexo da própria constituição sexual da criança e, a pesar de seus grotescos erros, dão provas de uma grande compreensão sobre os processos sexuais, maior da que se suspeitaria" (...) os esforços do pequeno investigador resultam, no geral, infrutuosos e terminam numa renuncia que não rara vez deixa como seqüela uma deterioração permanente da pulsão de saber (ibid, p 185).

A negação da existência do espermatozóide e do óvulo é o que, para Voltolini (2009), universaliza essas teorias ainda que existam infinitas versões singulares. A origem da própria vida constitui um enigma eterno do ser humano porque nele se constata que a existência é produto do desejo de alguém e não da própria escolha. Por isso, para o autor, a construção das teorias sexuais infantis é uma questão de conveniência para a criança. Não somente como um produto do interesse "prático" de impedir o nascimento de um irmão, mas especialmente porque esse evento desagradável confirma que o mundo não é regulado por ela. A partir da concepção de "sujeito do inconsciente" da psicanálise surge a pergunta pelas possíveis singularidades da organização do aparelho psíquico das crianças. A respeito das crenças sobre a origem dos bebês, essa específica visão de sujeito justificaria a seguinte afirmação de Soler:

Com a evolução dos costumes, a televisão e a educação sexual, revela-se hoje às crianças o que eu chamaria de gestualidade do ato sexual. Há um século viam-se sujeitos que chegavam aos doze anos antes de saber esta gestualidade do ato sexual. Hoje, na escola maternal, todas as crianças a conhecem. Mas isto não muda nada (2002, p. 11).

A que se refere a autora com a postulação de que todas essas transformações histórico-culturais não mudam nada? A afirmação de Soler é provocadora, embora toque a essência do problema que abordamos neste trabalho. Haveria para a psicanálise um sujeito que suporta um traumatismo estrutural e universal (sexual), porém, a solução que se dá a este traumatismo seria singular para cada sujeito. Essa singularidade remete à concepção freudiana de sujeito já mencionada, diferente de uma tábula rasa porque não está univocamente determinado pelo discurso social que o circunscreve, ainda que o influencie. Exemplo disso são, segundo Soler (2002), as diferenças entre os sintomas das histéricas de Freud e os contemporâneos como os ataques de pânico. Estruturalmente a formação substitutiva é a mesma, entretanto a sua manifestação muda.

Qual seria a vigência dos postulados freudianos em relação à sexualidade na atualidade? Eles são comprovados pelo fato de que a percepção visual das diferenças sexuais, as informações da mídia e as explicações dos adultos não evitam que a criança construa suas teorias contra toda evidência cognitiva. Nessa linha, é importante esclarecer novamente que para a psicanálise o enigma da sexualidade, pelo seu estatuto estrutural, não será totalmente "resolvido" por chegar a uma suposta fase "adulta" ou genital. Por conseguinte, para seguir seu raciocínio, Soler (2002) alude à hipótese de Lacan de um ser falante exilado do gozo do casal sexual. Nesse ponto se localiza uma pergunta pelo saber sobre a sexualidade, pois segundo a autora, a hipótese lacaniana se desenvolve no nível do coletivo ao mesmo tempo em que tem conseqüências no nível do conhecimento.

A noção do exílio do gozo do casal sexual resulta um aporte fundamental para entender as teorias sexuais infantis. Como salienta Vanier (1996), é na falha do significante que tomará lugar a função fálica, porque o falo se define como o faltante no Outro, suportado no pênis como o que falta à mãe e que não existiria sem o simbólico. O Real no qual se orienta o ensino de Lacan interroga a sexualidade e a relação entre os sexos a partir do fantasma do sujeito, introduzido na questão da sexualidade a partir do casal parental no atravessamento do complexo de Édipo, que constitui a entrada na cultura da qual nenhuma criança se elide. A afirmação "não há relação sexual" constitui um efeito da linguagem, cuja origem remonta à indicação de Freud de que há uma só libido para os dois sexos embora exista uma inscrição da diferença dos sexos no inconsciente na oposição ativo-passivo. Dessa forma, analisando os aportes lacanianos, Vanier enfatiza que a particularidade da sexualidade nos humanos é tributária da linguagem enquanto que a aparente complementaridade anatômica dos sexos é só ilusória.

Em resumo, levando em consideração esses esclarecimentos sobre o sujeito-criança, vale refletir acerca dos dispositivos com os que ela conta para afrontar o insuportável da realidade efetiva. Godoy (2007) ressalta que a operação que faz realizar a sexualidade no plano simbólico é concebida por Lacan a partir do Complexo de Édipo funcionando como aparelho simbólico (mais adiante chamado de "metáfora paterna") e como significante que permite ao sujeito reconhecer-se em alguma posição sexuada (masculino-feminino). Porém, como já foi mencionado, para dar conta da diferença sexual há um único elemento simbólico inscrito no inconsciente: o Falo. Portanto, parafraseando Jacques-Alain Miller, o autor lembra o fato de que primeiro, a gente tem órgãos, e depois, trata-se de ver "para que servem". Esse processo se constrói aos poucos e dependerá de como se articule no simbólico e de como os discursos estabelecidos nos ajudem a "fazer com os órgãos", o que não é sem conseqüências. Com isso, Godoy localiza em um primeiro momento a incógnita e a perplexidade de não saber o que fazer com o órgão. Não é a função que faz ao órgão, sendo que antes está o órgão e depois a tarefa de achar-lhe uma função e um uso.

 

O semi-dizer do mito diante do enigma

A partir de Lacan, pode-se afirmar que saber e conhecimento são diferentes na perspectiva da psicanálise. No Seminário (1974) ele afirma que o inconsciente não é um conhecimento, mas um saber desarmônico e definido pela conexão de significantes. Esse saber inconsciente é elaborado na análise (cujo discurso também não é da ordem do conhecimento) porque constitui o nó do ser, ou seja, o dizer do sujeito entendido como um acontecimento com três caras: imaginável, simbólica e real. Porém, como Lacan define o conhecimento? Em Radiofonia e Televisão (1993) é definido como uma ilusão ou mito, diferente da noção de saber. Em reiteradas ocasiões, Lacan homologa o saber com o que está inscrito no coro cabeludo do escravo-mensageiro que leva uma condenação de morte da qual ele nada sabe. Diferentemente, o discurso do conhecimento se define como uma metáfora sexual.

Diante do exposto pode se afirmar que a partir dos aportes de Freud e posteriormente de Lacan, sabe-se por um lado, que falar da origem é sempre complexo e, por outro, que somente se atinge em um semi-dizer da ordem do mítico. O próprio Freud chegou a nomear sua tese do aparelho psíquico de ficção. De acordo com Porge (2009) a introdução da idéia lacaniana de que a verdade só pode ser enunciada como semi-dizer a referência ao real sexual em sua relação com a verdade torna-se mais explícita. Que lugar ocupa a psicanálise a respeito dessa dupla verdade-saber? Acerca disso, Colette Soler (2007) lembra a afirmação lacaniana de que na nebulosa de saberes do século a psicanálise e o psicanalista entram como sedução da verdade. Diante de todos os saberes atuais que se aprendem e deixam perplexo ao sujeito sobre o que ele é e pode fazer, a psicanálise faz refletir a cada sujeito sua verdade. Porém "a verdade não se diz toda e então o amor à verdade promete a viagem ao infinito" (ibid, p. 156).

A ordem do mítico é trabalhada especialmente no texto O mito individual do neurótico (1952/2008) quando Lacan afirma que "o mito é o que da uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição de verdade" (ibid, p.13). Dessa forma, a fala pode apenas exprimir a verdade objetiva de forma mítica e consequentemente, no seio da experiência analítica sempre existe algo que é um mito.

Por conseguinte, pode se falar de uma dimensão mítica nas teorias sexuais infantis? Segundo Leite (2007) o corpo impulsiona a criança a construir teorias sobre o enigma da sua origem como resposta para acalmar a angústia e constitui, assim, mitos organizadores da subjetividade. A psicanalista francesa Mijolla-Mellor (2002) propõe um trabalho em diálogo com uma perspectiva mitológica e antropológica, que não está fundamentada nos arquétipos de Jung, mas assinala alguns elementos compartilhados com a produção mítica. Seu objetivo é ampliar o conceito freudiano de teorias sexuais infantis e diferenciar seus estratos, para superar uma possível rigidez como teorias típicas. Propõe para isso a idéia de "mitos sexuais" das crianças definidos como intuições que tem valor de certeza. Não se manifestam à maneira hipotética dedutiva própria da teoria, mas de forma quase de oráculo, com palavras mágico-sexuais misteriosas. Para a autora os mitos, os contos e as teorias sexuais infantis compartilham não somente o enigma da origem, mas também revelam uma marcha de pensamento comum que se aproxima mais do mito e da magia que da teoria. A necessidade de palavras com eficácia mágica se evidencia de modo explícito e com especial intensidade nas crianças. As palavras mágicas estão mais próximas da sensação, são secretas e tem valor identificatório porque não são de uso comum, mas próprias da criança.

Para Mijolla-Mellor (2002), o problema da vinda ao mundo afeta o narcisismo da criança porque sua existência poderia remeter a um ato procriador resultado do acaso. Assim, a pergunta principal não seria como você me fez, mas você me desejou? Além disso, a questão sobre a origem conduz a uma relativização e reposicionamento da criança em um contexto temporal não infinito:

A representação de não ter existido sempre e de não estar seguro de existir para sempre, junto à descoberta da não evidencia do laço de amor, cria na criança um equivalente da castração no domínio da identidade. E aí que é preciso ver o ponto de partida da necessidade de causalidade para restabelecer o sentido que foi desmoronado (ibid. 62).

A preocupação por entender à criança sempre teve uma especial relevância na psicanálise e, portanto foi preciso estudar as suas peculiaridades em relação ao adulto (ainda que, como já fora mencionado, as fases não sejam superadas e o conceito de desenvolvimento seja diferente em relação ao da psicologia). Em Esboço da psicanálise Freud (1938/1974) postula que a origem das neuroses está na infância e mais precisamente no período até a idade de seis anos. Define as neuroses como distúrbios do Eu da criança que é débil, imaturo e incapaz de resistência para lidar com tarefas que posteriormente seria capaz de enfrentar. Assim, a criança tem que enfrentar, por um lado, as excitações pulsionais provenientes do interior, e por outro, as exigências do mundo externo. Para Freud, ambas operam como traumas porque no espaço de poucos anos e de forma abreviada a criança tem que atravessar um período imensamente longo de desenvolvimento cultural humano. Na perspectiva lacaniana, poderíamos afirmar que o "vírus da linguagem" nos infecta desde a gestação e não há como fugir disso.

Um assunto fundamental que também desperta o desejo de saber nas crianças são as diferenças sexuais. Nas palavras de Freud:

Se pudéssemos despojar-nos de nossa exigência corpórea e observar as coisas da terra com uma nova perspectiva, como seres puramente pensantes, de outro planeta, por exemplo, tal vez nada despertasse tanto a nossa atenção como o fato da existência de dois sexos entre os seres humanos (1908/1996, p. 193).

Freud define a dualidade dos sexos como um grande enigma que constitui "um fato supremo para o nosso conhecimento; ele desafia qualquer tentativa de fazê-lo remontar a algo mais" (1938/1974, p. 134). Essa tentativa de fazê-lo remontar a algo mais, pode ser entendida na ótica lacaniana como o que não cessa de não se inscrever, como o furo com o qual crianças, adolescentes e adultos terão que lidar como sujeitos do inconsciente. A partir do levantado até aqui se pode afirmar, junto com Zornig (2008) que a vigência da teoria freudiana em relação às teorias sexuais infantis está no caráter irredutível da sua construção, quando se comprova que a criança desafia a razão lógica ao construir sua própria verdade, em seu próprio tempo lógico, mesmo sendo bombardeada por um excesso de tecnologia e informação.

 

Possibilidades e limites da pretendida educação sexual

Diante do exposto, a abordagem da sexualidade a partir da hipótese de uma possível "educação sexual" merece algumas considerações. Como já foi assinalado, ao longo do seu ensino, Lacan assinala com firmeza as diferenças entre conhecimento e saber. A respeito disso, Soler (2007) lembra que o saber primordial da psicanálise é um saber do inconsciente, ou seja, um saber que não se aprende. Ele não é apropriável pelo sujeito, mas consiste em um saber que toma ao sujeito desde a origem, o determina e o faz atuar. Esse saber define sua verdade a cada um e nunca sai do registro da singularidade. Como já fora mencionado, as diferenças sexuais não cessam de não se escrever porque não estão inscritas no inconsciente e, ademais "não há relação sexual". Se as teorias sexuais infantis implicam a questão da origem, das diferenças sexuais, da atividade sexual dos pais e o processo de construção da própria identidade sexuada, poderiam então ser definidas como contínuas tentativas de inscrição do impossível?

Além dessas considerações, para pensar a possibilidade de abordar a sexualidade em um contexto escolar, por exemplo, é preciso lembrar que o tema "sexualidade" implica necessariamente a dupla relação vida-morte. Vida e a morte são partes do processo cíclico da natureza (sempre simbólica nos humanos), e representam duas caras de uma mesma moeda. Constituem os grandes enigmas e as perguntas que, como sugere Vanier (1996), o sujeito dirige ao Outro: o sexo, a morte, sua existência mesma. A morte e o nascimento são mencionados em dupla por Lacan (1955-56/2008) quando formula que nada explica no simbólico a criação, nem o fato de que seja necessário que uns seres morram para que outros nasçam.

Segundo Voltolini (2009) ainda que as crianças recebam esclarecimentos sobre a sexualidade, elas preferem ficar apegadas às suas próprias teorias, elaboradas a partir da sua observação, resistindo a o que logo após, serão forçadas a elaborar, embora nunca de maneira completa. Para o autor, a dúvida comporta uma angústia que se alivia provisoriamente com soluções que logo após portarão novos enigmas. É por isso que nunca se abandona à fase dos porquês.

O saber das teorias sexuais pode ser considerado como construção do sujeito dividido da psicanálise, divisão que segundo Lacan é reforçada pela separação entre a verdade e o saber. Segundo Porge (2009), a divisão do sujeito pelo cogito, torna-se uma divisão entre o saber e o retorno da verdade no sintoma. Essa divisão "não resulta do mero afrontamento com o saber, mas desse afrontamento ao qual se agrega o real do sexo" (ibid, p. 113) A respeito desse tema, o autor assinala um evento importante para pensar as teorias sexuais infantis: o fato de que os analisantes sempre giram em torno de saber sobre o desejo dos pais. Por um lado, o desejo de cada um em relação ao sujeito e por outro, o desejo de cada um pelo outro. Assim, lembra que a amarração sexualidade-saber é uma das grandes descobertas de Freud e a pulsão de saber captura à criança na questão-enigma da origem das crianças e da procriação. Essa pulsão sexual no organismo das crianças constitui a origem das teorias que as crianças constroem como soluções de pesquisa. Na sexualidade então, Porge centra o ponto de encontro da verdade e do saber e, portanto, há do que fazer nascer à angústia.

Para Soler (2007) as teorias sexuais infantis são produzidas em torno do ponto de forclusão do saber, porque não se sabe e não se pode saber. Assim, segundo a autora, a criança não quer saber dessa forclusão e a teoria sexual se constitui como uma tampa ao ponto de vazio da estrutura. Nessa linha, também para Voltolini (2009) a negação da percepção dos órgãos sexuais consiste em um modo de evitar a castração. Essa tentativa será o motor para teorizar e assim apagar as diferenças.

No registro da transmissão, poderíamos colocar ao professor da educação sexual, no lugar do que Lacan considera a metonímia da investigação. Uma metonímia que é recorrente do objeto inaccessível (o saber sobre a sexualidade). Mas, como dar conta do Real do sexo? Constituir-se-ia assim o desafio para o educador, de tentar renunciar a posição educativa do "uso do saber" sexual como um poder e refletir sobre o que fazer com esse poder do saber que lhe é outorgado no contexto escolar, especialmente na tentativa de "educar" sobre a sexualidade. Considera-se aqui a função do professor não como comunicador, pela impossibilidade estrutural de transmissão de saber, mas sim como transmissor de um estilo no seu discurso educativo.

O psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott (1982) propõe que as crianças não precisariam de lições sobre sexo ou uma "instrução sexual organizada" nas escolas. Segundo esse autor, as crianças têm, espontaneamente, interesse em aprender coisas sobre a natureza, sendo fundamental para isso a descoberta do próprio indivíduo posto que toda lição sobre sexo empobreçe a questão ao abordá-lo de fora para dentro, enquanto a experimentação própria tem um potencial de infinita riqueza. Assim, a proposta de uma educação sexual como "discurso da ciência" entraria em conflito com uma pretendida comunicação absoluta e eficaz com uma língua "na qual tudo se diria, de todos a todos, e sobre todas as coisas, em toda ocasião" negando que sempre há algo que não é dito (Milner, 1983/1999, p. 46).

Porém, isso não significa que os adultos não têm nada a fazer ou tem que abdicar de intervir ou responder às perguntas da criança acerca da sexualidade. O diálogo com adultos que propiciem espaços de escuta e de reflexão crítica diante das perguntas e dúvidas infantis é fundamental. Françoise Doltó (1989) desenvolve a idéia de uma educação sexual que não se baseia na forma e aparência dos órgãos sexuais, mas em uma educação da sensibilidade, abordando o corpo e os sentimentos de maneira conjunta. Com base na noção de imagem inconsciente do corpo, que se diferencia do que a cultura e a biologia entendem por esquema corporal, a autora defende o conceito de educação humanizante como ponto de partida para a análise de situações educativas (escolares e familiares). Para essa autora, a pré-escola constitui um âmbito propício para que as crianças formulem perguntas que ela denomina como "mudas", por exemplo, quando se mostram intrigados pelo sexo oposto e espiam nos banheiros. Para Doltó, quando os educadores abordam os questionamentos e os conflitos das crianças relacionados com a vida sexual, suas atitudes podem colaborar para evitar ou criar condições para futuras formações sintomáticas. Assim, a importância da época fálica na patogenia da neurose permite refletir acerca das proibições que os adultos impõem para a supressão total das satisfações hedônicas, como por exemplo, em relação à manipulação dos órgãos genitais, já que, quando não se justifica o porquê dessa proibição, se pode perturbar a confiança que a criança tem no adulto (ibidem, 1971).

Sabendo que a criança não esta sozinha com as suas pulsões, vale lembrar que a construção das perguntas e hipóteses sobre a origem é contextualizada em um processo de socialização de conhecimentos sobre a sexualidade. Segundo Schlemenson (2008), ao transmitir objetos psíquicos representacionais também se transmitem os processos de sua constituição, e os fantasmas que organizam, ligam e contextualizam esses objetos. Se a criança pergunta aos adultos acerca de algo que a inquieta e recebe como resposta uma evasão ou desqualificação (porque o conteúdo remite a um aspecto psiquicamente temido pelos adultos), o que se transmite é que perguntar certas coisas resulta perigoso e, portanto, a criança começa a se silenciar. Conforme já fora comentado, o sexo e a morte são considerados pela psicanálise como os temas mais difíceis de abordar, ou seja, os denominados enigmas universais.

 

Considerações finais

Um dos grandes aportes de Freud consistiu em apresentar uma dialética inerente à constituição psíquica do sujeito, em sua relação com a significação do mundo e de si mesmo. As teorias sexuais infantis são construídas no marco do processo pelo qual, tal como afirma Doltó (1989), progressivamente o desejo da criança tem que abdicar da satisfação por um circuito curto e direto para ingressar em um intercâmbio de linguagem. Em vez de satisfazer a pulsão diretamente e consigo mesmo, a linguagem lhe permitirá descobrir outros níveis de prazer.

Quando a criança se depara com o enigma da diferença dos sexos e atravessa o complexo de castração, que implica a angústia pela ameaça de perda da certeza do pênis, o real do sexo se constitui como um conflito. Porém, o presente trabalho pretendeu reafirmar a idéia de que a sexualidade como problema estrutural do ser humano, na perspectiva psicanalítica, não resulta exclusivo de crianças, adolescentes ou adultos. O sujeito da psicanálise é sempre um sujeito dividido entre o corpo e o simbólico, porque o corpo pulsional atravessado pela linguagem se constitui na incidência da linguagem no real do corpo. Em resumo, a partir do aqui exposto, pode-se afirmar que as concepções de sujeito e de sexualidade da psicanálise permitem entender o alcance da proposta freudiana de que as teorias sexuais infantis comportam sempre um fragmento de verdade.

 

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