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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Quando o declínio do saber é necessário

 

 

Odana Palhares

Dra em Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação – Membro do LEPSI/USP (odana@uol.com.br)

 

 


RESUMO

Diante de uma criança com problemas de aprendizagem os adultos, em geral, acreditam ter saberes que podem explicar e resolver o problema. Existe toda uma nosografia médica e psicológica à disposição dos profissionais que se propõem a trabalhar nessa área. A psicanálise não ignora a pertinência desses estudos, mas faz uma crítica contundente a utilização dessa nosografia, muitas vezes aplicada sem o devido critério. Tornada lugar comum, encontramos professores referindo-se às crianças com problemas de aprendizagem, dizendo que essa ou aquela criança é disléxica ou hiperativa. Há saberes que apaziguam a posição do adulto diante da criança que sofre as vicissitudes no aprender. No entanto, buscamos aqui o saber inconveniente, ou seja, aqueles que atrapalham porque, segundo Voltolini (2007) "... desorganizam um sistema que só se organiza a custa de seu recalcamento". O recalcamento não indica ignorância de um saber, "apenas" a sua inconveniência, no sentido de que este saber implicaria num alto custo psíquico. Em verdade, a condição humana implica sempre num alto custo psíquico, pois se há recalque o custo é a neurose, se não o há, o custo é, por exemplo, a psicose.


 

 

Introdução

O declínio do saber é um conceito que utilizamos para falarmos da posição do profissional que atende a criança com problemas de aprendizagem. Nesse trabalho atravessado pela psicanálise, chamado de Clínica do Aprender, alguns conceitos, na perspectiva psicanalítica, são fundamentais: a noção de sujeito, sintoma, e estilo, sempre considerando a noção de inconsciente e a relação transferencial. Além disso, esse trabalho sustenta-se numa escuta psicanalítica e a direção da cura é a mesma de um trabalho psicanalítico, em que o desejo pode ser re-subjetivado.

Para tanto, o especialista que sustenta esse lugar transferencial precisa colocar-se no avesso do lugar classicamente ocupado pelo psicopedagogo. Utilizamos a noção de avesso do especialista, embasada no conceito de mestre não-todo, para falarmos da postura do profissional que se propõe a trabalhar nessa perspectiva. Articulamos a ideia do avesso do especialista com a proposta de uma psicopedagogia do terceiro tempo1, fazendo da psicopedagogia um fato conveniente quando esta se coloca como o avesso do modelo preconizado para o que foi criada, reinventando-se, podendo-se haver com as novas formas de "doenças" que não são para serem tratadas.

Do tema desse colóquio, destacamos

A mudança da impossível proporção do sujeito com o objeto, escrita por Lacan no discurso do capitalista, permite pensar, dentre outras coisas, que saber e conhecimento mudam de posição na mesma proporção em que o objeto é coisificado, esvaziado de seu fundo de ausência. Assim, se o objeto perde a sua leveza de ausência, ele cessa de causar qualquer interrogação. Feito mercadoria só resta, então, tentar consumi-lo sob o império do valor de troca.

Se o objeto não se apresenta como o lugar da falta, o saber inconsciente não tem lugar. É preciso que o objeto ocupe o lugar de falta, de causa de desejo, a fim de que o sujeito possa se interrogar e, assim, se mobilizar na direção do seu desejo.

O outro tomado como objeto – objeto a – é a posição em que se encontra o aluno quando é "lido" a partir dos seus problemas de aprendizagem e rotulado com a nosografia à disposição dos especialistas. Nessa perspectiva, busca-se um saber no qual os problemas possam ser incluídos num conhecimento sistematizado, racional e "dessubjetivado". Conhecimento sistematizado a partir do saber do profissional universitário, ou seja, de um Outro que não leva em conta os saberes daquele sujeito que sofre e é reduzido, aqui, a puro objeto "a", um dejeto. Dessa forma, os problemas de aprendizagem recebem um tratamento burocrático, e o sujeito não é implicado no seu processo de "cura".

Para que o sujeito possa se haver com seu desejo, o declínio do saber daquele que o acolhe em suas vicissitudes na aprendizagem, é necessário.

O conceito de mestre não-todo supõe um giro na posição discursiva daquele que detém o saber sobre o sujeito para o lugar do não-saber. Dessa forma, levando em conta o sujeito do inconsciente, tempera seu gozo e pode operar uma transformação subjetiva naquele que padece as vicissitudes na aprendizagem.

Antelo (2000) lembra-nos que os diagnósticos dos fracassos escolares incluem a dimensão do negativo – desmotivados, desinteressados – e as propostas que tentam motivar o aluno (furor pedagógico) tratam de um saber técnico. A psicanálise toma o sujeito e sua relação com o saber do ponto de vista ético. Renuncia à posição de mestria para que o sujeito possa emergir.

O furor pedagógico ou psicopedagógico oculta a castração simbólica, e o aluno diante do mestre que espera que ele tudo aprenda, pode recusar-se a aprender. Essa recusa, apesar de saudável, instala um mal-entendido que acaba sendo tratado como sintoma. A questão que se coloca é que os profissionais que recebem a criança, muitas vezes, não questionam a escola e a família, e o problema fica centrado na criança.

 

O avesso do especialista na perspectiva dos quatro discursos

Na psicanálise, o significante avesso tem um sentido bastante singular e remete-nos ao Seminário XVII  de Lacan (1992), no qual ele expõe a sua teoria dos quatro discursos – o Discurso do Mestre, o Discurso da Histérica, o Discurso da Universidade e o Discurso do Analista. Posteriormente, Lacan escreve o Discurso Capitalista, para fazer face à pressão cientificista exercida pelos interesses capitalistas sobre a psicanálise, em que destaca as construções do mundo capitalista que buscam vender caminhos possíveis para tamponar a falta - objeto a -, que é estrutural ao ser humano. Num contraponto ao discurso capitalista, o discurso do analista busca destacar a falta e apostar que ela opere. Ou seja, que, diante da falta a ser, o sujeito seja capaz de fazer algo, seja capaz de construir um tecido em torno do nada...

Pensar algo pelo avesso na perspectiva analítica é dar-lhe seu estatuto discursivo, ou seja, pensar como este se constitui no laço social. Para Lacan, o termo discurso não implica o uso da fala. Para que o discurso se faça presente, ou se torne ato, este pode ser sem palavras, mas não sem linguagem. Dito de outra forma, para que se ocupe um determinado lugar discursivo, não há necessidade de palavras.

A estrutura dos discursos é representada da seguinte forma:

 

 

Bastos (2003) lembra-nos que Lacan classifica os discursos a partir do lugar do agente do discurso.

Temos, então, quatro diferentes lugares: o lugar do agente – de onde podemos falar ou interpelar o outro; a seguir devemos verificar em que lugar o outro fica posto a partir da fala do agente – o lugar do outro; essa palavra endereçada ao outro tem um efeito que Lacan nomeia como produto do discurso – o lugar da produção; e essa produção tem uma outra causa, mais verdadeira que o agente do discurso e que é a verdade, motor do discurso, em nome da qual fala o agente – o lugar da verdade. (Bastos, 2003, p. 71)

Coutinho Jorge (2002, p. 27), retomando Lacan, afirma que a referência ao Outro está implicada em todo e qualquer discurso. Além disso, sublinha que "cada discurso inclui nele mesmo um único sujeito", eliminando, assim, toda a intersubjetividade e colocando como primordial a referência ao Outro; e ressalta que todo discurso é uma tentativa de estabelecer uma ligação entre o campo do sujeito e o campo do Outro.  A estrutura fixa dos discursos é ocupada pelas letras S1, S2, $ e a que, ao fazerem o movimento de ¼ de giro, determinam a variação nas posições discursivas decorrentes dos lugares ocupados.

Lacan (1992) define S1 como o significante primeiro, que indica o caminho de gozo do sujeito; é o significante mestre que marca uma forma específica de gozo, que é o gozo do Um, específico daquele sujeito e que nunca será apagado. Tudo o que o sujeito faz, de forma sintomática, é uma forma de tentar reencontrar o gozo primeiro que está marcado no trilho do S1.

O S2 significa que o sujeito está na linguagem. Este se constitui no resumo da cadeia significante, indicando toda a cadeia, ou seja, S3, S4...Sn. É o lugar do Outro.

Quando entra na linguagem, surge o sujeito barrado - $ - e, para surgir o sujeito capaz de falar, algo se perde, perde-se a condição de ser só corpo gozante, pois o sujeito agora é linguagem e corpo.

Esse algo que se perde é o objeto "a" e é uma forma de escrever que caiu aquilo que era vivenciado como puro gozo de corpo. Como cada sujeito goza de uma maneira particular, o objeto "a" pode estar simbolizando as formas diretivas de gozo, numa relação com o S1. À medida que o sujeito entra na castração, ele perde o "a", perde algo do gozo específico dele. Esse objeto de gozo, embora o sujeito esteja na linguagem, ele continua buscando. Podemos pensar, por exemplo, no caso da oralidade, objeto "a" - oral, o sujeito obeso vive para satisfazer essa busca de um trilho de gozo para sempre insatisfeito, buscando sempre aquele gozo primeiro, a ponto de correr o risco de morte – no caso da obesidade mórbida. Este sintoma seria uma forma sofrida, de buscar um caminho para tamponar a marca da castração: tamponando a falta com um monte de comida.

Se pensarmos no exemplo acima e fizermos a correspondência para a relação com o saber, encontraremos o sujeito que consome saberes e "come" livros, podendo ou não "digeri-los".  Na clínica do aprender é justamente a partir da posição do especialista que não dá respostas prontas, que o sujeito terá que se haver com seu desejo.

As estruturas discursivas indicam formas de laço social para além da palavra. Segundo Petri (2003), o laço social é uma forma de aliança do sujeito com o universo simbólico que rege as relações humanas. Trata-se de uma realidade discursiva que precede o sujeito "a partir dos significantes do campo do Outro." (Coutinho Jorge, 2002, p. 25).

O lugar que ocupamos nessas formas de laço social foi chamado por Lacan de posição discursiva, as quais ele nomeou, como já vimos anteriormente: Discurso do Mestre, Discurso Universitário, Discurso da Histérica e Discurso do Analista, conforme os matemas abaixo:

 

 

Lacan apresenta a fórmula fundamental, do discurso do mestre. Esta se constitui no ponto de partida para as quatro estruturas daí decorrentes, que se modificam a partir da operação de ¼ de giro. Estas quatro estruturas são encontradas nas relações que se sustentam inscritas na realidade do discurso. A fórmula situa o momento da relação do sujeito com o Outro. O discurso do mestre pode ser definido como aquele que tem o saber no lugar do agente (S1), buscando promover uma cadeia de saberes (S2) marcada por uma produção em que a verdade do sujeito está excluída (a). O $ não comanda seu destino, não está no lugar de agente do traçado de sua vida, e sim está colocado sob a barra.

O discurso universitário, a partir de ¼ de giro no sentido anti-horário, coloca o S2 no lugar do agente, ou seja, a cadeia de significantes do Outro. O outro é tomado como objeto. Segundo Souza (2008, p. 143), "no discurso universitário, o Saber [S2] é recolhido sob a forma de um conhecimento organizado e cumulativo, capaz de converter-se até mesmo numa burocracia." Nesse discurso, o outro é tomado como objeto, e seu valor está diretamente ligado aos valores burocráticos, como a titulação.

Para uma clínica do aprender, o outro tomado como objeto - objeto a - é a posição em que se encontra o aluno quando é "lido" a partir dos seus problemas de aprendizagem. Nessa perspectiva, busca-se um saber no qual os problemas possam ser incluídos num conhecimento sistematizado, racional e "dessubjetivado". Conhecimento sistematizado a partir do saber do profissional  universitário, ou seja, de um Outro que não leva em conta os saberes daquele sujeito que sofre e é reduzido, aqui, a puro objeto "a", um dejeto... Dessa forma, os problemas de aprendizagem recebem um tratamento burocrático, e o sujeito não é implicado no seu processo de "cura".

No discurso da histérica, o outro é tomado como S1, ou seja, como mestre, ao qual ela se dirige para que produza um saber sobre o seu sintoma. Nesse discurso, quem ocupa o lugar de agente é o sujeito cindido $ que, ao mesmo tempo que pede a decifração do gozo do seu sintoma, ignora "o real (a) que causa seu sofrimento" (Souza, 2008, p. 132). Paradoxalmente, o saber que é demandado é também ignorado. Isso porque "o que o mestre produz como Saber está localizado nesse ‘outro lugar', que Lacan também nomeia de gozo".

Para fazer face à demanda instituída pela histérica, Freud elaborou uma outra posição discursiva, ou seja, percebendo que em seu discurso havia um saber outro sobre o seu sofrimento, deu voz a suas pacientes. Dando voz a elas, fundou a psicanálise. "A prática analítica seria então a transformação do Discurso do Mestre no Discurso da Histérica, via Discurso do Analista." (Leite, 1993, p. 10).

O discurso do analista é o discurso que se contrapõe ao discurso do mestre. Para Lacan (1992b, p. 44) a posição do analista é  substancialmente a do objeto a. Nesta, o analista, no lugar do agente, é aquele que se coloca no lugar de objeto causa do desejo e faz falar o sujeito, exatamente por reconhecê-lo como sujeito de seu destino. Este último, na condição de analisante, inventa um saber inconsciente, "que é cada vez diferente e que vai determinar as errâncias de sua hystoria" (Souza, ibid., p. 149 ) O analista, no lugar de "a",  não tem a direção, a não ser a de provocar o sujeito sempre dividido por seu desejo, um sujeito responsável por sustentar eticamente sua verdade.  . Por estar no lugar de "a", convoca o sujeito a produzir.

Leite (1993, p. 10) afirma que o analista se institui como tal pelo Discurso do Analista "fazendo-se causa do desejo do analisante"; ou seja, o lugar do analista é o lugar do objeto a. Como isso acontece? Continuamos com esse autor, que nos mostra que, por meio da relação transferencial, o analista diz para o analisante que este pode dizer qualquer coisa e supõe neste um saber. Esclarece-nos sobre a mudança de posição operada por Lacan que "passa do sujeito suposto saber para o sujeito suposto ao saber."

Interessa-nos destacar essa mudança de posição, pois, se o analista não está mais na posição do sujeito suposto saber, que é a posição de A, está agora na posição de objeto a, objeto causa de desejo. É o que afirma Lacan (1992b, p. 44): "A posição do psicanalista, eu a articulo da seguinte forma – digo que ela é feita substancialmente do objeto a".

Como nos lembra Bastos (2003, p. 81):

A teoria dos quatro discursos pode ser considerada decorrência do postulado primordial do ensino de Lacan de que o inconsciente é estruturado como linguagem e está submetido a lógica do significante. Como vimos não há como abordar o sujeito fora do laço social, pois ele é efeito da fala, da produção discursiva.

 

A posição do especialista na clínica do aprender

Nas especialidades que atendem crianças com problemas de aprendizagem, há um predomínio do discurso do mestre. Compreendemos que em muitas situações esse discurso faz-se necessário; no entanto, propomos que uma clínica do aprender se caracteriza por levar em conta o sujeito da psicanálise, convocando o especialista e o sujeito a ocuparem uma outra posição, distinta da posição ocupada nas outras vertentes teóricas que orientam os trabalhos psicopedagógicos.

A pergunta que nos colocamos quando iniciamos o nosso trabalho psicopedagógico atravessado pela psicanálise era: qual a diferença entre ser analista e fazer uma clínica psicopedagógica na qual tínhamos como eixo a escuta do sujeito?

Nossos estudos e supervisões clínicas com a psicanalista Lina Galletti Martins de Oliveira indicavam-nos que era possível fazer essa escuta, e nosso trabalho foi se constituindo no que passamos a chamar de uma clínica do aprender. No entanto, para respondermos à interrogação acima, precisávamos pensar a mudança de posição que se operava em nossa prática. Uma certeza colocava-se: abandonávamos a posição de mestria e nos colocávamos na posição de mestre não todo. Tendo em vista que o discurso do mestre se opõe ao discurso do analista, procuramos responder à pergunta: No que consiste essa oposição? A grosso modo podemos dizer que o discurso do mestre comanda o saber e "objetaliza" o sujeito, enquanto o discurso do analista subverte a relação com o saber e o supõe no sujeito, singularizando-o.

A clínica do aprender, situada nas questões relativas à educação e à "cura", sofre a mesma impossibilidade colocada por Freud para as profissões impossíveis – educar, governar e psicanalisar –, assim consideradas por terem como instrumento a linguagem, fruto de mal-entendidos e, por sua vez, atravessada pelo inconsciente.  A impossibilidade diz respeito à distância entre o objetivo e o resultado alcançado. Educação e psicanálise, devido ao seu parentesco reconhecido por Freud, no aforisma que afirma os três ofícios impossíveis, são nomeadas por Voltolini (2007, p. 197) como práticas parentes.

A impossibilidade na clínica do aprender consiste em que há um real que escapa a todas as tentativas de abordar os problemas de aprendizagem. No entanto, não se trata aqui de discurtimos esse "resto" do registro simbólico e pertencente ao real, o objeto a – "sobra dos discursos que regulam as formas de vínculo social" (Cohen, 1987, p. 20); trata-se de pensar a posição singular do especialista na clínica do aprender. Trata-se de suportamos a castração como um impossível de saber dizer, um puro nada. Mas um "nada" capaz de fazer girar as letras, as cores, os acordes musicais... lugar para que o novo possa ser forjado a ferro e fogo!

As modalidades do discurso permitem-nos pensar a posição do especialista em relação ao saber. Na clínica do aprender, faz-se necessário que o especialista abandone a posição de mestria e se coloque na posição de mestre não-todo, fazendo semblante desta última. Sustentar o lugar do suposto saber não é colocar-se no lugar do Saber. Se, para Lacan (apud Coutinho Jorge, 2002, p. 25), o discurso é definido como "o que funda e define cada realidade", a posição do especialista definirá a direção do tratamento.

Acreditamos que só através do especialista que, num giro, pode deslocar-se da posição daquele que tem o saber para a posição de "a" – objeto causa do desejo - somente assim, algo pode acontecer em relação ao sujeito que será convocado a produzir. Sustentar o lugar do suposto saber é fazer semblante de mestria e supor no sujeito o saber, invertendo, conforme Lacan, o saber suposto, como nos lembra Leite (1993).

Com a incidência da psicanálise sobre o seu trabalho, a postura do especialista será a de promover a condição para o sujeito fabricar novos significantes-mestres na sua relação com o saber. Isso se faz dando a palavra ao sujeito que sofre. Além disso, essa posição convoca o sujeito, implicando-o no tratamento.

Se a existência do analista se faz onde algo pode ser transformado em enigma, por outro lado sabemos que instituir uma demanda é possível. Portanto, quando o especialista não se coloca como dono do saber e não coloca saberes à disposição daquele que padece com problemas de aprendizagem, esse profissional escutará o discurso do outro e, a partir da ausência de respostas e/ou do silêncio, ofertará um espaço para que o sujeito se manifeste em sua singularidade. O saber do sujeito do inconsciente importa e tem lugar na clínica do aprender. Acreditamos que os saberes instituídos não provocam associações e congelam o sujeito, assujeitando-o àquele diagnóstico.

Coutinho Jorge (2002, p. 29) lembra a observação de Wajcman de que, no discurso do mestre, as letras têm o mesmo valor dos lugares que ocupam e afirma

O discurso do mestre é o discurso no qual se evidencia precisamente o funcionamento da sugestão – S1 à S2 – por meio da qual opera a hipnose, abandonada por Freud ao criar a psicanálise. É nesse sentido que o discurso do mestre é o avesso da psicanálise, que opera pela transferência – cujo pivô é o sujeito suposto saber -, e se opõe à sugestão, que opera por meio do saber e oblitera a transferência. Pois se o inconsciente é um saber e a transferência, a atualização da realidade do inconsciente, a transferência é, essencialmente, transferência do saber inconsciente. Operando pelo saber, a sugestão impede a transferência do saber inconsciente.

Gutierra (2003, p. 91), em sua pesquisa sobre o mestre "possível" de adolescentes, relaciona o mestre, do Discurso do Mestre, ao professor autoritário. Isso acontece por não poder demonstrar fraqueza e por ocultar a sua castração simbólica. Sendo assim, acaba apresentando-se como o "mestre-todo". O produto da alienação produzida nos alunos são o gozo e o preço, como afirma a autora; no cotidiano pedagógico, é a indisciplina.

Diante do quadro atual de indisciplina, desvalorização do professor, dificuldades na relação professor-aluno, a autora coloca a questão "como alguns educadores sustentam essa posição de transmissão, conseguindo ensinar grande parte de seus alunos, enquanto outros educadores fracassam nessa empreitada?" (ibid. 96).

Analisando a posição desses mestres, chega à conclusão de que estes se apresentam como mestres castrados, desejantes de saber, "mas não como a encarnação do saber." (ibid., p.111). São mestres capazes de promover a circulação discursiva, o que implica apresentarem-se como mestres não todos, "matizados pelo Discurso Analítico no sentido de sustentar certa castração simbólica e colocar-se de tal forma a permitir que o aluno entre como sujeito desejante de saber." (ibid., p. 134).

Um saber está para ser descoberto [...] Esta posição mantém uma falta de saber. É esta falta que permite a cada criança evoluir, descobrir seus significantes, inventar-se como singular. 

Suportar o lugar do não saber pode operar uma transformação no sujeito, operação que, num só depois, poderá receber o estatuto de ato analítico: algo novo, inaugural, que institui marcas duradouras no sujeito.

 

Considerações

Discutimos a posição do profissional, articulando-a como posição discursiva e propusemos um giro nessa posição, como aposta no sujeito. A noção de discurso, no interior deste trabalho, marca não somente uma outra leitura dos problemas de aprendizagem; marca também a posição do especialista que tem a sua clínica atravessada pela psicanálise.

É de uma questão ética que estamos falando. A ética da psicanálise é o reconhecimento do sujeito e seu desejo. Uma clínica atravessada pela psicanálise rompe com o ideal de aluno, encaminhado com problemas de aprendizagem, e, embora leia o discurso do mestre, presente na instituição, faz um giro nesse discurso, promovendo a posição de mestre não todo. O especialista que pode, subjetivamente, operar essa mudança discursiva, também opera uma mudança na posição do sujeito, a partir de suas intervenções.

Vimos isso em nossa experiência clínica. Os casos clínicos exemplificam a outra leitura possível dos problemas de aprendizagem. Pode-se perguntar: que diferença faz o sujeito visto em outros referenciais teóricos e o sujeito da psicanálise? Ao que se pode responder: a diferença é que, ao considerar-se o sujeito do desejo (inconsciente), o trabalho visa a dar voz a esse sujeito. E nosso interlocutor imaginário pode dizer: e dar voz ao sujeito serve para quê?

Mais uma vez, respondemos que isso opera uma mudança na posição subjetiva e na abordagem que esse sujeito faz do seu próprio aprender, mudando assim a qualidade do aprender.  Esse aprender tem consistência, tem permanência, tem criação, porque ele é levado pelo seu próprio desejo. Então, interrompe a imitação, a repetição, permite a inovação, permite a criação. A relação com o saber pode ser ressignificada e o sujeito implicar-se no processo de aprendizagem: esta é uma aposta que demanda um mestre capaz de suportar ser não todo... não todo mestre!

 

Referências Bibliográficas

Antelo, E. (2000) Dos Impasses às Vicissitudes educativas. In: KUPFER, Maria Cristina Machado; LAJONQUIÈRE, Leandro de. A Psicanálise, a Educação e os Impasses da Subjetivação no Mundo Moderno. São Paulo: Lugar de Vida / Lepsi/USP, 31-35.

Bastos, M. B. (2003) Inclusão escolar:um trabalho com professores a partir de operadores da psicanálise. Dissertação de mestrado. Instituto de Psicologia da USP, São Paulo,.

Cohen, R. H. P. (1987) A criança objeto "a" nos quatro discursos de Lacan. In: Fraternidade, Laço de Sangue. Pulsional: revista de psicanálise, v.1, n.1, pp. 15-25. São Paulo: Escuta.

Coutinho Jorge, M. A. (2002) Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, Doris; COUTINHO JORGE, Marco Antonio (org.). Saber, verdade e gozo:leituras de O Seminário, livro 17, de LACAN, Jacques (pp 17-32). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.

Gutierra, B. C. C. (2003) Adolescência, psicanálise e educação: O mestre "possível" de adolescentes. São Paulo: Avercamp.

Kupfer, M. C. M. (1999)  Problemas de aprendizagem ou estilos cognitivos? Um ponto de vista da psicanálise. In: RUBINSTEIN, Edith (org.) Psicopedagogia:uma prática, diferentes estilos (pp.65-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Lacan, J. (1992) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise,1969-1970. Versão brasileira Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,.

Leite, M. P. S. (1993) O mestre e a histérica. Saber: meio de gozo e os discursos. Ensino continuado, o avesso da psicanálise. Disponível em: http://www.marciopeter.com.br/links/ensino/avesso/01_o_mestre_e_a_histerica.

Palhares, O. (2010) No avesso do problema de aprendizagem:por uma clínica do aprender. Tese de doutorado. Campinas, SP: UNICAMP.

Petri, R. (2003) Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: Annablume.

Souza, A. (2008) Os discursos na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Voltolini, R. (2007) A educação como "fato inconveniente" para a psicanálise. In: An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP. Disponívelo em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032007000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

 

 

1 Kupfer (1999) "Problemas de aprendizagem ou estilos cognitivos" - psicopedagogia do primeiro, segundo e terceiro tempos, sendo, respectivamente, a primeira aquela que enxerga a dificuldade de aprendizagem devido à afetividade ou cognição; a segunda supera esse pensamento e busca o sujeito da aprendizagem; e a psicopedagogia do terceiro tempo é capaz de entender que o problema de aprendizagem advirá sempre que houver um "curto-circuito" entre o que se veicula na escola e o estilo de aprendizagem do aluno em questão.