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ISBN 978-85-60944-35-4 versão on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A sociedade da vergonha e a (des)construção da subjetividade docente

 

 

Bárbara Oliveira PaulinoI; Raquel Braga FrancoII; Marcelo Ricardo PereiraIII

IBolsista de pesquisa (FAPEMIG); baoliveira@gmail.com
IIBolsista de pesquisa (FAPEMIG); raquel.braga1922@gmail.com
IIIBolsista de pesquisa (FAPEMIG) e professor pesquisador da FaE/UFMG; mrp@fae.ufmg.br

 

 


RESUMO

Como os professores constroem suas subjetividades em um mundo que, sem culpa, desautoriza sua função? Vivemos mesmo um declínio de uma sociedade baseada na culpa em detrimento de uma baseada na vergonha? Para responder, partimos de pressupostos teóricos da Psicanálise, de Freud, da Psicossociologia, de Enriquez, e da Sociologia, de Sennett, que nos ajudam a pensar, entre outras coisas, a sociedade personalizada pelo domínio do mundo privado. Chama a atenção o fato de os alunos de hoje demandarem constantemente a necessidade de trazerem para a sala de aula suas questões pessoais, e de docentes fazerem uso de táticas muito peculiares de ensino, visando restituir a si algum modo de gozo de poder sobre seus alunos. Abordamos questões correlatas como a identificação de professores aos adolescentes e a problemática da maternagem e do feminino em relação à profissão, que igualmente dizem da subjetividade docente.

Palavras-chave: Psicanálise; declínio do homem público; título.


 

 

Quais são os efeitos do declínio dos valores do mundo público na modernidade e como a subjetividade do professor é construída nessa conjuntura? Para pensarmos essa construção da subjetividade docente vamos partir de alguns pressupostos psicanalíticos e também das idéias propostas por autores como Enriquez e Sennett de uma sociedade da vergonha ou personalizada pelo domínio do mundo privado.

A desautorização docente étema recorrente. Professores se vêem às voltas com o ostensivo desgaste de seu oficio, além de terem que lidar com o indisfarçável desinteresse pelos estudos por boa parte do alunado. Normalmente os estudantes são apontados como agentes de desautorização e desrespeito à figura do professor através do escárnio, da afronta ou da apatia discente. Os alunos parecem ainda demandar a constante necessidade de trazer para a sala de aula suas questões pessoais, que podemos denominar como virtudes da intimidade: os relacionamentos, a sexualidade, os conflitos familiares, agora constituem também a pauta do cotidiano escolar. Como se posiciona o professor e quais as estratégias utilizadas por ele diante desse novo contexto?

Para pensarmos a valorização dessas virtudes da intimidade é de grande utilidade as idéias que Sennett desenvolve na obra O declínio do homem público (1988). Ele parte da crença hoje predominante que a aproximação entre as pessoas é um bem moral, que o mito moderno reside em que os males da sociedade podem ser entendidos como males da impessoalidade, da alienação e da frieza; constituindo o que ele denomina como ideologia da intimidade, ou seja, os relacionamentos sociais são tidos como autênticos, quanto mais próximos estiverem das preocupações interiores ou psicológicas dos envolvidos.

Para tanto faz um apanhado histórico para entender como espaço público e espaço privado se constituiram, se equilibraram, e por fim se misturaram com o intuito de propor o que ele denomina o fim da cultura pública. Em suas palavras: "a história do surgimento e do declínio da cultura pública faz com que, no mínimo, esse espírito humanitário seja posto em questão" (1988, p. 317).

O autor defende que no século XVIII o público e o privado se equilibravam seguindo a dualidade hobbesiana da natureza versus cultura, na medida em que o significado de público passa a se relacionar ao mundo distante da família e dos amigos – o mundo privado por excelência. As exigências de civilidade eram encarnadas pelo comportamento público cosmopolita e confrontadas com as exigências da natureza, representadas pela família.

No século XIX, quando o capitalismo começa se relacionar mais diretamente à cultura, e a ordem econômica adquire cada vez mais espaço, tem-se o que Sennett nomea uma mistificação da vida material em público; inicia-se a associação dos bens materiais às características psicológicas. Juntamente ao capitalismo, é a secularização da sociedade a outra grande força que impele o homem a se fechar no domínio privado. A família começa a figurar então como um refúgio dessa vida pública: "na medida em que a família se tornou refúgio contra os terrores da sociedade, também se tornou gradativamente um parâmetro moral..." (idem, p.35).

O século XX assistiu a formação e a consolidação de um modelo de sociedade marcado pela imagem e seus excessos. Vivemos nossas relações através das imagens, predomina a afirmação da aparência, e o espetáculo é a principal produção da sociedade. Para Debord (1967, p. 13), "toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação". Consolida-se a soberania do privado: a intimidade e as relações pessoais passam ser os valores exaltados.

O espetáculo ultrapassa a valorização da imagem e se faz presente em quase todas as formas de representação da sociedade contemporânea. A vida pessoal e seus conflitos íntimos entram agora em cena. A individualização do homem, paradoxalmente, criou uma massa homogênea de consumo, na qual as pessoas se voltam para si mesmas. A sua origem é a perda da unidade do mundo, e a expansão do espetáculo moderno exprime a dimensão desta perda. Essa alienação produziu um homem que, quanto mais contempla, menos vive; quanto mais cria necessidades, mais distante encontra-se de seus desejos. Segundo Debord (1967), o espetáculo na sociedade corresponde a um fabrico concreto de alienação, ou nas palavras de Sennett (1988) somos artistas desprovidos de nossa arte.

 

Universo do erro

Poderíamos dizer talvez que essa sociedade fragmentada, narcísica ou espetacularizada seria a sociedade nomeada por Enriquez (2006) como a sociedade da vergonha. Mas ainda assim seria exagero dizer que nossa sociedade é guiada apenas pela vergonha e não mais pelo sentimento de culpa. Assistimos justamente a essa passagem.

Uma sociedade da culpa seria aquela relacionada diretamente à interioridade, uma vez que o sentimento de culpa supõe uma luta interna no sujeito, que está em guerra consigo mesmo, com suas ambivalências, suas contradições, seu querer e não poder; dilemas que perpassam a todo o momento a sua constituição subjetiva (privada) e a constituição do outro (pública) – esse que o lembra constantemente de sua falta, de sua incompletude. O reconhecimento de tal luta interior nos coloca diante do desejado e do proibido, e assim, erro e sentimento de culpa, que só são possíveis de se desenvolver no que o autor denomina um "universo do erro", articulam-se e nos remetem a todos os elos que estabelecemos no mundo.

A sociedade da vergonha, por sua vez, seria caracterizada não pela interioridade, mas, pela aparência. A culpa, não mais cultuada como antes, cederia espaço ao narcisismo. Os sujeitos ao não se sentirem tão culpados por seus atos, somente sentiriam vergonha caso fossem descobertos em seus delitos.

Como a psicanálise nos mostra, a inserção de uma criança na cultura se dá na medida em que esta é capaz de renunciar à onipotência do gozo materno e, com efeito, ao seu próprio narcisismo primário. Tal renúncia só é possível a partir da interdição da lei do Pai, ou seja, da sociedade, que irá ao mesmo tempo barrá-la e fornecer acesso a um ideal1, passível de ser introjetado. Esse complexo processo de socialização da criança – que é parcialmente finalizado com a passagem do Édipo – é ainda acompanhado do medo da perda do amor dos pais, sendo assim ela renunciará ao seu prazer imediato e absoluto através do recalque e do adiamento.

Aqui cabe um parêntesis para animar algo que desenvolveremos ao final: Faz-se necessário ressaltar que o Complexo de Édipo é vivido de forma diferente nos meninos e nas meninas. Freud, ao longo de sua produção teórica, teve relativa facilidade para discorrer sobre tal complexo nos meninos, já que inicialmente ele considerava que para meninos e meninas o processo era simétrico. Porém, nas meninas isto foi se constituindo como um impasse. Enquanto nos meninos, que têm na mãe seu primeiro objeto de amor, e ao se depararem com a ausência de um pênis na mulher, tendo medo de perder o que eles possuem, vêem-se então obrigados a renunciar ou adiar esse amor por medo da castração. É o medo de perder o pênis que o afasta da mãe e faz com que ele se identifique com seu pai. Desse modo, o menino é inserido na cultura. O medo da perda é tão grande que geralmente se forma um superego rígido que segundo Freud, caracteriza o especial modo de os homens estarem na cultura.

A menina, por sua vez, desde o inicio, já se percebe faltosa. A mãe, também seu primeiro objeto de amor, não possui tal órgão que parece dar ilusoriamente tanto poder a quem o possui. Freud neste ponto se embaraça nas explicações sobre o Édipo feminino, oferecendo três saídas ao impasse da castração: a inibição sexual, a masculinidade e a maternidade. Interessa-nos abordar esta terceira saída, que parece ser a que mais segue a norma para os olhos do autor, isto é, a que se dá pela via da equação simbólica: filho-falo. Ao ter um filho, a mulher finalmente, cessaria a inveja do pênis/falo e poderia seguir o curso supostamente normal de sua vida. A castração que colocaria termo no complexo edipiano masculino, não o faz no feminino, ao contrário, ela o inaugura. Dessa forma, o superego na menina não se formaria de maneira tão rígida, tão inexorável, já que ele se constitui muito mais pelo desejo de possuir o falo, do que pela ameaça de perdê-lo.

O falo enquanto objeto de desejo para as mulheres e homens, não se apresenta, no entanto, como realidade. Se os homens vivem na ilusão de possuí-lo e com medo de perdê-lo, as mulheres, já se sabendo castradas, talvez deslizassem mais facilmente sobre os modos de representá-lo. É importante destacar que esse modo particular de constituição superegóica em ambos os sexos dará origem a um ideal de eu, pelo qual cada um, de modo singular, se esforçará por alcançar.

No tocante a esse ideal buscado pela criança, ele poderá se constituir cada vez mais fragmentado se pensarmos em uma sociedade espetacular, na qual o recalque é ainda menos satisfatório. Uma cultura que não exige a renúncia completa aos prazeres imediatos, mas, ao contrário, nos dá a ilusão de que estes serão satisfeitos seja pela via do consumo, seja pelo culto ao corpo, acaba por focar a valorização narcísica.

Assim, estariamos todavia no que Enriquez denomina "civilização da vergonha", que seria marcada pelo ato e pela aparência, uma sociedade em que a experiência da culpa estaria menos acentuada e o superego, em alguns aspectos, aparentemente menos inexorável. Se a importância está no ato e em sua visibilidade, qualquer desses atos podem ser executados. Caso seja corajoso ou valorizado, deve ser exposto a todos, para que o indivíduo seja reconhecido por seu êxito, mas, caso seja repreensível, só não deve ser descoberto. Não há culpa por violar a moral, somente a vergonha se essa violação se torna pública, entretanto, "a vergonha não toca o indivíduo em sua intimidade, a toca em seu ser social, em sua aparência" (ENRIQUEZ, 2006, p.184).

Mas, como ressaltamos acima, acreditamos que, mesmo na passagem de uma sociedade a outra, a culpa não deixa de fazer parte da constituição do sujeito. O sentimento de vergonha vem aos poucos se tornando mais proeminente, superpondo, mas não excluíndo a culpa. Será que culpa e vergonha se imbricam? Será que a vergonha nos leva a reviver de novas formas o sentimento de culpa?

Freud, em seu texto Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916), aborda tal passagem ao ato como tendo a função de dar significado a um sentimento de culpa que precede ao ato. Desse modo, ela racionalizaria este sentimento dando a ele um objeto – como o crime o é para o criminoso. A tentativa de ligar a culpa a uma ação empreendida a posteriori obtém sucesso, mas o mesmo não podemos dizer em relação a punição. Os atos antes tidos como repreensíveis não mais correspondem a uma afronta moral. Dessa forma, a repetição do ato pode se dar a revelia, contanto que não seja descoberta, ou seja, que o sujeito não passe vergonha.

O tempo do ato e da aparência, a objetalização dos sujeitos diante da lógica de mercado, proporcionam-nos a visão de indivíduos que, encerrados em suas relações pessoais, paradoxalmente, conseguem evitar a si mesmos e aos outros sem se confrotarem com a alteridade. E diante desses valores narcísicos, que são em sua essência, insuficientes, os sujeitos em busca do culto de si absorvem-se em si mesmos e, frente à impossibilidade da realização do ideal passam a ser indivíduos cada vez mais depressivos, alienados, questionados em sua sexualidade, relacionamentos e conflitos sociais. É o espetáculo do narcisismo.

 

O professor adolescentizado

Em tal contexto, encontra-se o professor. No olho do furacão, ele recebe em sala de aula os narcísos das pequenas diferenças, que reivindicam tanto a exposição de si quanto serem motivados por um professor que necessita ocupar seu lugar por suas qualidades e características pessoais. Desse modo, resta a ele fascinar e/ou seduzir, único meio pelo qual pode obter alguma atenção do alunado ensimesmado e indiferente ao conteúdo ministrado. O docente se vê agora frente a um impasse: até onde dar aula, até onde falar de si?

É comum encontramos professores que dizem que a melhor turma, o melhor aluno são os que demonstram interesse, e não é difícil entendermos tal afirmativa, se pensarmos que o que queremos, afinal, é sermos desejados pelo desejo do outro, na condição de objeto. E uma vez no lugar de desejados, os professores se sentem como que conquistando seu público, apreendendo seu objeto. Mas cabe à questão do desejo sua própria dialética: se o professor é sujeito e faz de seus alunos objetos, no mesmo movimento ele também se faz de objeto visando sujeitar o aluno, daí o termo – sujeito. Ao se colocarem como objeto de desejo do aluno, sendo alvo de interesse, esses professores conseguem enlaçar o aluno sujeitando-os ao seu próprio desejo. O que pode parecer confuso se explica na medida em que o desejo será sempre em relação ao objeto. Sendo uma via de mão dupla o desejo é também desejado.

Ao falarmos desse lugar de desejo, de quanto o interesse do outro é desejado, podemos pensar na diferenciação que muitos dos docentes fazem em relação à faixa etária que elegem como preferencial para dar suas aulas2. Os adolescentes aparecem então como escolhidos por vários docentes devido ao que eles chamam de possibilidade de diálogo e questionamento. Se com o adolescente é possível estabelecer diálogo, mesmo que no confronto, os professores parecem ver aí uma brecha para despertar a atenção.

Mesmo vistos como desafiadores, os adolescentes se apresentam como lugar do interesse, são interessantes e interessados. Talvez o que dê a esses jovens tal status possa ser em parte compreendido pelo que Kehl (2002) chama de "teenagização" de nossa cultura. Segundo a autora o adolescente "ocupa hoje o lugar ideal para todas as gerações", todos querem sentir-se, vestir-se e agir como eles. Ouvimos falas que corroboram com tal visão também no universo da escola. Os professores se colocam na posição deles, com frases do tipo: "eu me vejo neles, lembro da infância", ou "sei, porque já fui aluno" ou ainda se comportam como eles: eu gosto, eu brinco, eu ponho apelido..."3.

A identificação ao adolescente nos remete mais uma vez à valorização narcísica que vemos ascender na sociedade atual. Freud (1914), ao tratar dos diferentes modos de escolha de objeto, nos diz da escolha objetal narcísica. Ela opera no sentido de fazer com que o sujeito eleja como objeto de amor aquele que se aproxima de diversas maneiras do seu ideal de eu: seja como ele gostaria de ser, seja como um objeto que se assemelhe a si próprio sujeito, seja ainda como um objeto que se aproxime do que ele foi um dia. O adolescente, ocupando essa posição ideal, coloca-se como objeto escolhido e reatualiza o narcisismo docente.

O que acontece, em conseqüência, é que se identificando aos jovens os adultos acabam por deixar a vaga de adulto desocupada. Porque se o adulto teen deixa o jovem tão livre como ele mesmo gostaria de ser, ele não o faz sem conseqüências:

(...) esta liberdade cobra seu preço em desamparo: os adolescentes parecem viver num mundo cujas as regras são feitas por eles e para eles, já que os próprios pais e educadores estão comprometidos com uma leveza e nonchalance jovem (KEHL, 2002)

Em outra parte (PEREIRA, 2009), afirmamos de forma semelhante que em um processo de adolescentização o adulto apaga radicalmente a diferença, não permitindo que o adolescente se veja mais como tal. Em alguma medida, percebemos professores que compactuam com esse modelo menos recalcado da sociedade contemporânea, muitas vezes, se nivelando aos próprios adolescentes e seus excessos. E, ao não se verem como adolescentes, esses jovens parecem tentar produzir cada vez mais formas subversivas na tentativa de se diferenciar, se aproximam cada vez mais do excesso e do gozo a qualquer custo. É a toxicomania, o tráfico, os transtornos alimentares, a delinqüência, a depressão, o excesso de tecnologia e erotização, que acenam para esses jovens, como forma de diferenciação.

Ao se colocarem como semelhantes, cúmplices, aliados, como aqueles que precisam atrair e conquistar o aluno, os professores parecem fazer um duplo movimento a ser investigado: se por um lado se posicionam como iguais, por outro garantem seu lugar na hierarquia educacional. Ao mesmo tempo em que se vêem cobrados a seduzir e despertar o interesse através da personalização das suas aulas, vemos também uma nostalgia. O docente parece idealizar um tempo no qual acreditava ocupar um lugar vazio por definição, no qual era respeitado enquanto autoridade e seu lugar de mestre estava assegurado.

Ao longo de todo século XX observamos uma série de mudanças que culminaram com o que Freud previa e vivenciava: o suposto declínio da sociedade patriarcal. Interpretada por Lacan (1957-58) como Nome-do-Pai, a metáfora paterna relacionada à interdição parece perder ainda mais força na contemporaneidade. É fato que a imagem do pai vem se tornando cada vez mais esgarçada, vaga, desnaturalizada e desacreditada. Quanto mais os denominados pelos historiadores de "pais sociais" forjam-se tirânicos, mais eles se vêem intimidados e desautorizados.

O professor é mais um desses pais sociais que como tal tinham a função eminentemente pública, que encontrava respaldo nos diversos setores da sociedade, principalmente na família. O público era associado aos valores da justiça, à busca da verdade, à honra, a valores morais considerados como superiores. Com a crise da sociedade patriarcal, o consequente questionamento desses valores e a invasão do privado, observamos as salas de aula refletindo essa conjuntura.

 

"Enderecem-se aos poetas"

Como se pode perceber, até o momento, tentamos demonstrar o quanto a subjetividade docente não deixa de ser construída por atravessamentos discursivos complexos. A subjetividade do professor é hoje ainda mais invadida pelas intimidades, próprias da valorização do mundo privado em suas formas de narcisismo e de espetáculo. Diante disso, muitos professores reagem de maneira nostálgica, reivindicando que se restabeleça uma ordem baseada em valores públicos, moralmente consagrados. No rastro de um suposto declínio de uma sociedade patriarcal, professores experimentam como "pais sociais" os reflexos de tal declínio. Em resposta, muitos se nivelam narcisicamente à condição daqueles que parecem protagonizar os tempos atuais, a saber, os adolescentes.

Entretanto, devemos ainda abordar um outro atravessamento discursivo, igualmente importante, e que é intrínseco à construção da subjetividade docente. Trata-se do discurso materno, da feminilidade e de suas implicações no que se referem a tal construção.

É de se observar que o discurso materno também se embaraça com o discurso profissional da pedagogia moderna, tornando o discernimento entre ambas um tanto obscuro. É difícil saber até que ponto isso serve como uma sombra ao impossível ato de educar ou se isso dificulta o desenvolvimento da pedagogia e o aperfeiçoamento da docência, mantendo-os fixados a uma domesticidade que impede a consolidação de um corpus epistemológico (PEREIRA, 2008).

Apesar da colagem comumente feita entre os lugares do materno e do feminino, eles não coincidem. O lugar materno, como nos assinala Freud, é um lugar fálico por excelência. Freud dizia que a única saída positiva para a mulher é ter um filho: tornar-se mulher sendo mãe. Lacan disse algo ressonante: a mulher só existe toda como mãe. O que contribuiu para que a identidade da mulher ficasse atrelada à função da maternidade é o fato dela não possuir um pênis-falo e equacioná-lo com o filho. Já discorremos sobre isso: de mulheres inferiorizadas, faltosas a mães fálicas. Os homens, em contrapartida, teriam medo de perdê-lo. Em síntese: na ordem colocada pelo poder fálico, o que aparece em comum é o horror de ambos os sexos à feminilidade.

Mas, convenhamos, a noção de maternagem parece não equacionar a questão da feminilidade, um impasse permanece. O texto freudiano, lembra Néri (2005), nos traz também a idéia da transformação da feminilidade em um conceito teórico, que recoloca a problemática da castração. Para elaborá-la, ambos os sexos teriam que se confrontar com a feminilidade, ambos teriam que lidar com essa problemática impossível. Freud deixa no ar uma provocação:

Se vocês quiserem saber mais sobe a feminilidade interroguem suas próprias experiências de vida, enderecem-se aos poetas, ou então esperem que a ciência possa vos dar informações mais aprofundadas e coerentes. (1933a, p.165)

A feminilidade enquanto enigma, como é abordada por Freud, parece ser um não-lugar da norma, que estaria no centro do erotismo do sujeito. Mas, a não inscrição da feminilidade na lógica fálica, além de causar horror, também fornece a esse conceito uma abertura maior ao novo. No lugar da falta, da poesia e da diferença, poderiam abrir-se caminhos à singularidade. Como coloca Birman (2000), na feminilidade os enunciados parciais e fragmentados se opõem à lógica universalista: "a finitude e a incerteza humanas tomam corpo, colocando o sujeito em aberto em face ao seu fazer, o que evidencia sua impossibilidade de encontrar enunciados totalizantes." (idem, p.94). Contudo, na medida em que o apelo ao fálico não é ultrapassado mantém-se as ilusões homogêneas e totalizantes, e o sujeito que hoje observamos, cada vez mais centrado em si, tem horror à diferença, que pode expor e denunciar sua fragilidade e finitude. Frente tal ameaça, resta esconder qualquer possível ato que denuncie fragilidade ou incerteza para que não se passe vergonha.

Arrisquemos duas especulações: 1) que esses valores representantes do espaço público estão associados eminentemente à figura do Pai; 2) que o professor, quando nostálgico da autoridade, reivindica uma posição que supostamente conjugaria ambas as idéias, de lugar paterno e de exercício da função pública.

A conformação dessa sociedade, balizada pelo público e pela lei paterna, nos parece ser a que Enriquez caracteriza como sendo a da culpa. Já a sociedade da vergonha que vemos ascender na contemporaneidade estaria ligada ao privado. Cabe então perguntar: estaria esse mundo privado relacionado a figura da Mãe, e portanto a valores íntimos, não racionais, de cuidado, docilização, aparência e preocupações particulares? Estariam ambos, tanto esse mundo público – ligado à figura do Pai – quanto o privado – ligado à figura da Mãe – reivindicando um mesmo lugar fálico, que se sustenta sob a forma de uma exaltação narcísica? A ordem fálica nos parece ser a dominante tanto nas representações do público como nas do privado, cada um a sua maneira. Se no público tais expressões seriam dadas simbolicamente pela cultura, no mundo privado elas seriam formas originárias de restituição imaginária do falo.

Vemos ganhar força os debates acerca dos relacionamentos, da sexualidade, dos conflitos familiares, observados não só nos corredores das universidades, das escolas, nas falas de colegas que enveredam pelo exercício docente, como também nas nossas análises das entrevistas de professores para a pesquisa em referência (cf. nota 3). As falas do professorado fazem eco a esse discurso.

Diante desses diversos atravessamentos discursivos que parecem permear o fazer docente, seja o da adolescentização, o da nostalgia do mestre ou o da maternagem, entres tantos outros, vemos que há uma multiplicidade de fatores que podem levar a diferentes percepções dos professores. Cada docente utilizará, à sua maneira, os recursos que possui, sejam eles estruturais ou subjetivos, para dar conta do ato educativo, e estarão assim operando, ora mais ora menos, de acordo com esses atravessamentos. Sabendo-se, como nos diz Freud (1925; 1937), do impossível da educação, é necessário admitir que haverá sempre descontinuidades e incongruências presentes, e talvez não seja mesmo preciso, nem possível, que se encontre uma direção única a ser seguida.

Independente dos atravessamentos que permeiam a prática docente há, no entanto, uma característica comum a tal prática: é através da palavra que se atua. Além de pressupor escolha e exigir articulação, podendo interditar o excesso de gozo, ela é o instrumento dos professores; não a palavra vazia de sentido, ou carregada de identificação com o mundo juvenil, mas aquela que "acolhe" de certa maneira as subversões e é capaz de produzir o novo a partir dela (PEREIRA, 2009). Essa parece ser uma das saídas que alguns docentes vêm encontrando ao criarem estratégias de conversa ou abertura para discussões incitadas pelos alunos. Mas não sejamos ingênuos, a abertura em suas aulas de certo espaço para a mediação simbólica não se resume a conversas que sanam ou dão por encerrados os conflitos dos múltiplos e singulares sujeitos que ali se apresentam. Pois, sabemos, assim como desliza o desejo, também o faz o sintoma.

 

Referências Bibliográficas

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ENRIQUEZ, E (2006). Interioridade e organizações. In: E. Davel e S. Vergara. (Org.) Gestão com pessoas e Subjetividade. 1ª edição, Atlas. São Paulo.

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FREUD, S. (1916). Algunstipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. Vol. XIV.

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FREUD, S. (1925). Prefácio à juventude desorientada, de Aichhorn. Vol. XIX.

FREUD, S. (1933). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise - Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica. Vol. XXII.

FREUD, S. (1933a). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise - Conferência XXXIII: Feminilidade. Vol. XXII.

FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. Vol. XXIII.

KEHL, M. R. (2002, 4 de novembro) Quem tem moral com os adolescentes? Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI. Colóquio do LEPSI IP/FE-USP. Recuperado em: 10 de outubro de 2009, de http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =MSC000000003200200 0400034&lng=pt&nrm=abn

LACAN, J (1999). O seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Jorge Zahar. Rio de Janeiro.

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PEREIRA, M. R. (2008). A impostura do mestre. Argvmentvm. Belo Horizonte.

PEREIRA, M. R. (2009). Mal-estar docente e modos atuais do sintoma. In: Souza, R; Camargo, A. (Orgs.). Que escola é essa?Anacronismos, resistências e subjetividades. Átomo-Alínea. Campinas.

PEREIRA, M. R. (2009a). A subjetividade docente produzida em tempos de declínio do discurso do mestre. Belo Horizonte: UFMG/FAPEMIG/CNPq. (relatório de pesquisa).

SENNETT, R (1988). O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. Companhia das Letras. São Paulo.

 

 


1Freud chamou de ideal do eu/ego, uma instância pela qual "o ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir" (1933). Esse ideal, que se apresenta em todos nós como o representante das censuras morais e da tentativa de alcançar aspectos mais elevado da vida do homem,  tem também seu valor social, constituindo o ideal comum de uma família, classe ou nação (FREUD, 1914)
2Tal idéia foi retirada de entrevistas de professores para a pesquisa "A subjetividade docente produzida em tempos de declínio do discurso do mestre", realizada pelos autores, e financiada parcialmente pela FAPEMIG, CNPq e PRPq/UFMG (Pereira, 2009a)
3 Falas extraídas da pesquisa em referência (cf. nota anterior)