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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Experiências com Acompanhamento Terapêutico em Maceió: reflexões a partir da política da Inclusão, do campo do saber e do campo do gozo

 

 

Rosanny Moura CavalcanteI; Charles Elias LangII

Irosanny.moura@gmail.com
IIcelang2006@gmail.com

 

 

Consideração prévia

Este trabalho pretende articular a experiência de Acompanhamento Terapêutico (doravante, AT) em uma Escola de Educação Infantil na Cidade de Maceió, Alagoas, e o modo como estamos teorizando o atendimento a crianças. Ou seja, o AT como uma modalidade de trabalho clínico para além dos limites estritos do consultório. Apresentamos um relato de experiência e reflexão a partir da política da inclusão, do campo de saber e do mercado do gozo. Para tanto, julgamos necessário principiarmos pelo resgate de alguns aspectos históricos que nos permitirá compreender como este campo se constituiu. Tal poderá contextualizar este espaço de diálogos e práticas, ao mesmo tempo em que situará a nossa perspectiva.

 

Referências de trabalho – O campo do Acompanhamento Terapêutico

Quando falamos em história do AT, estamos em acordo com o meio especializado que situa as suas origens nos anos 60 do século passado. Origens que estão entrelaçadas com os movimentos antimanicomial e antipsiquiátrico, em países como Itália, Estados Unidos, Argentina e Brasil. Buscava-se novas formas de cuidado para pacientes com comprometimento psíquico grave, ou ainda, um processo de desinstitucionalização da loucura.  

O que hoje chamamos de AT surgiu como um serviço substitutivo ao modelo hospitalocêntrico. Tratava-se de inverter a lógica da internação psiquiátrica levando em consideração as possíveis imersões no cotidiano desse sujeito e desse sujeito no cotidiano da cidade. Nesse contexto, o acompanhar era estar com o sujeito, "acompanhá-lo", fora do espaço físico do hospital e dos limites até então institucionalizados como espaços para a loucura.

No que concerne ao histórico dessa prática, seguimos Palombine (2007) quando ela afirma que o campo do AT tem seu percurso marcado por  nomeações distintas. Tais nomeações correspondem às denominações dadas às pessoas que tinham como função estar junto com esses pacientes em tarefas cotidianas, diferenciando-os de médicos, psicólogos ou enfermeiros. Na década de 60, na Clinica Pinel em Porto Alegre (RS), médicos e psicólogos utilizavam a expressão atendente psiquiátrico ou atendente grude. Tal era para designar o trabalho com alguns pacientes que demandavam acompanhamento de 24 horas. Em 1969, na Clinica Villa Pinheiros no Rio de Janeiro a denominação dada era de auxiliar psiquiátrico. Posteriormente,  em 1971 e no CETAMP, na Argentina, denominava-se essa prática de amigo qualificado. Entre 1968 a 1987 na Comunidade Enfance, em São Paulo, primeiro chamou-se assistente recreacionista, depois assistente psiquiátrico.

A lógica nascente era a de que para evitar a internação deveria entrar em cena a casa, a família, os "outros" que cercam o paciente, e enfim, o espaço público. A especificidade e a especialidade do AT se constituíram na sua relação com o espaço urbano. Esta relação com o espaço parece mais visível quando tomamos, por exemplo,  a Clinica Pinel, em Porto Alegre. Esta fica no Bairro Santana, próximo do Parque da Redenção, uma enorme área arborizada na região do Bonfim. Muito diferente do que acontecia com o Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado no Bairro Parthenon, ao lado do Manicômio Judiciário e em um bairro afastado do centro da cidade e  habitado por leprosários, quartéis do exército e hospital para tuberculosos.

Durante muito tempo, com o saber psiquiátrico vigente, o acompanhante era tido como aquele que sabe menos, como alguém que realizava um trabalho leigo e intuitivo.  De acordo com Palombine (2007) a denominação de acompanhamento  terapêutico surge em 1980 e a consolidação desse nome veio pelo movimento dos próprios acompanhantes.

Podemos pensar que diferentes nomeações significam diferentes práticas, e que cada nova nomeação é a tentativa de trazer e de instituir uma nova prática. No entanto, apesar das diferentes nomeações, o que permanece em comum é a  tentativa de estabelecer outras e novas relações com a loucura. Nesse sentido percebemos que a prática do AT tem sido elaborada e reelaborada, adquirindo  novos sentidos, ocupando lugares e funções novas. É nesse contexto que podemos pensar a ampliação da prática do AT para o contexto escolar.

Nas palavras  de Palombine (2005), o AT leva em consideração a circulação das pessoas pela cidade quando esta circulação, por alguma razão, foi comprometida e necessita ser trabalhada, na medida em que o ser humano é um ser político, ou seja, ele vive e transita na Polis. Berger (2002) nos aponta que o projeto do acompanhamento terapêutico diz respeito a restabelecer pontes com o mundo, que os vários tipos de loucuras têm a potência de destruir. Araújo (apud Palombine, 2007) nos aponta que "o Acompanhamento Terapêutico é uma forma de fazer clínica, assim como a forma que a clínica se faz". (p. 206)

Na clínica do AT privilegia-se o foco no fortalecimento dos laços sociais a partir do cotidiano dos pacientes. E quando pensamos no cotidiano de uma criança a Escola se faz presente. Como afirma Kupfer (2001) "a escola é uma instituição poderosa quando lhe pedem que assuma uma certidão de pertinência: quem está na escola pode receber o carimbo de ‘criança'" (p. 92).

Postas algumas de nossas referências, e cientes da relação histórica do AT com a psicose, é momento de passarmos a pensar a nossa experiência em específico. Tal se dá a partir de uma pergunta: o que nos propomos e o que se propõe com a prática do AT com crianças?

Numa perspectiva geral, propõe-se o acompanhamento de crianças com o que pode-se chamar de comprometimento psíquico grave ou dificuldades no laço social, sendo esses com algum comprometimento orgânico, como a Síndrome de Down, ou não.

Os subsídios teóricos que utilizamos para pensar crianças que nascem com síndromes foram encontrados, inicialmente, no horizonte da prática clínica e psicanalítica com crianças. Sucintamente, entendemos que as crianças são o resultado do encontro de duas historias, de suas famílias. O fato concreto do nascimento de uma criança presentifica e atualiza aquilo que foi sendo transmitido pelos ancestrais. Crianças com síndromes podem sofrer tanto do silenciamento simbólico subjetivo quanto de algo também silenciado nas histórias dos pais, na história de seus encontros e desencontros. Mesmo crianças sem nenhuma questão orgânica de desenvolvimento podem deixar de ser investidas pelos pais, ou ainda serem investidas por um olhar que, simultaneamente, constitui e transtorna o psiquismo.  O  que pensar, então, de casos em que as crianças vêm ao mundo marcadas por algo lido como um "defeito", uma "doença" ou um "problema irremediável", uma "culpa", enfim?

 

O caso - o percurso do AT de João no contexto escolar

O percurso do AT com João é marcado por dois momentos distintos. O primeiro diz respeito ao AT realizado em sua casa. Naquele momento, por encaminhamento de sua fonoaudióloga chamou-se a função de AT, pois ela identificava questões subjetivas centrais no tratamento da criança. Sua principal preocupação era com a linguagem, já que o menino tinha 4 anos e não falava. A fonoaudióloga pensou no AT como uma estratégia de trabalho do que concerne ao subjetivo da criança, já que o encaminhamento da mãe para um psicanalista não lhe parecia possível naquele momento.

João tinha 4 anos, e é irmão gêmeo de uma menina. Ele com a síndrome de Down e ela não. Algumas situações que chamaram a atenção no inicio do AT: o pedido da mãe para que não fosse dada atenção à irmã do menino, pois ela "certamente roubaria a cena", e o foco, segundo a mãe, deveria ser exclusivamente o menino. Outro ponto a chamar atenção: os vários "Nãos!" dados a João que podiam ser escutados pela AT – qualquer movimento seu era respondido com um alto e sonoro "Não!"; As várias portas fechadas em sua casa –  a porta do seu quarto, de seu guarda-roupa, de seu banheiro, as portas de acesso à cozinha eram trancadas para impedir seu acesso e a bagunça que ele faria; E ainda, até então,  nenhuma mínima suposição de sujeito pelos pais.

O AT em casa perdurou por seis meses. Até que a Escola demandou aos pais uma acompanhante para seu filho como condição de sua permanência na mesma Escola. Então os pais demandaram que o AT fosse feito também nesse local.  A idéia deles era que seu filho não precisasse fazer vinculo com mais uma pessoa já que ele tinha duas babas, uma AT, professor de natação, e os especialistas que o tratavam: a fonoaudióloga e uma terapeuta ocupacional.

Dessa forma o trabalho de AT se constituía em três dimensões: a do AT em sua casa, o AT na Escola e ainda, as reuniões periódicas com os pais. É a partir de um olhar sobre estes três momentos e das supervisões orientadas pela psicanálise que se formaram as leituras aqui desdobradas, sendo o AT no contexto escolar o foco do relato.

O AT  na Escola teve seu inicio marcado pela demanda dos pais que, por sua vez,  receberam tal demanda da escola. O trabalho pedido deveria ter como foco a construção de estratégias que potencializassem a aprendizagem da criança, bem como, estratégias que facilitassem seu convívio na escola, principalmente, em sala de aula com seus colegas. Ora, o mais comum na cidade de Maceió é o que se chama "reforço escolar", trabalho realizado por professores, na ativa ou aposentados, junto a crianças que precisam melhorar as suas notas em determinada disciplina.

O pedido da Escola aos pais pôde ser compreendido, a posteriori, por duas razões complementares: 1) uma lógica mercadológica: a proliferação de pessoas acompanhando crianças especiais em escolas da rede privada na cidade; 2) a não disponibilidade – anunciada pela Escola - de um funcionário de seu quadro, exclusivo para apenas uma criança. Ou seja, o AT aparece como uma terceirização de um serviço não oferecido pela escola.

Um primeiro ponto de tensão na inserção do AT nesse contexto foi exatamente um duplo vinculo de contrato de trabalho. Por um lado a contratação e o pagamento realizados e negociados com os pais da criança, e por outro, a inserção feita num território escolar com uma idéia cristalizada do que deveria ser o trabalho. O contrato inicial com a Escola objetivava um trabalho em conjunto que tivesse em vista trabalhar a circulação da criança pela escola e o assessoramento às questões pedagógicas definidas pela professora da sala.

Apesar desse contrato inicial, nas primeiras semanas de trabalho apareceram algumas surpresas: o lugar em que a criança estava situada no discurso escolar - as formas de nomear/significar seus movimentos, acrescido de um despreparo da professora em lidar com a criança dita especial já que esta escapava completamente do padrão estabelecido com seus outros alunos. E ainda, também por isso, o destoante contrato inicial com a escola e a realidade do trabalho no cotidiano.

As atividades com João deslocaram-se para o território escolar. Quase como que apresentando a AT para a escola, através de um tipo de "pega-pega" que se estendia por quase toda manhã, João corria como se esta fosse sua única forma de ser-aí. Ele era o acompanhado em sua corrida, quase sem ser alcançado, em seus lugares preferidos: as outras salas de aula, dos mais novos que ele, a sala de aula de música e a quadra de esportes. Nesses três locais ele chegava e parava, e qualquer aproximação provocava uma nova corrida. De um local, a outro e a outro.

Inicialmente entendeu-se todo esse movimento como uma tentativa dele de entender o que se fazia aí. E naquele momento, o que tinha se definido como trabalho do AT, no contrato inicial com a Escola, se perdera um pouco e não se entendia exatamente o que se estava fazendo, além de, acompanhá-lo naquela corrida diária.

Durante esses longos passeios pela escola,  deparava-se com o comentário unânime de todos os funcionários que eram encontrados pelo caminho: "Fugiu!" "Fugiu?" "Ta fugindo..." E essas expressões sugeriam: fugindo de quê? De quem?

E assim surgiu a questão acerca do lugar daquela criança no contexto escolar. Se, por um lado, era necessário acompanhá-lo no que ele apresentava, correndo, ou "invadindo" outras salas, por outro havia a cobrança da Escola em relação a mantê-lo dentro de sua sala de aula e fazer jus à inclusão prometida.

A primeira tarefa era a de mantê-lo em sala de aula. Mas para mantê-lo em sala era preciso que a porta fosse fechada e a isso João regia fazendo tudo aquilo que pudesse estranhar a professora e aos demais da sala. Até o ponto que sua professora pedia para a AT que ele fosse "passear um pouco, porque ele está estressado". Nessa dinâmica diária João aprendeu o que fazer para conseguir passagem para fora da sala, mas restava entender o porquê  dele insistir tanto em não estar ali?

Depois do significante "fugir",  observou-se um padrão na forma como se dirigiam ao menino: "Não! Não! Isso não pode! Isso não!". O que remete à experiência do AT em sua casa, em que os "nãos!" também eram altos e sonoros.

As outras crianças da sala também escutavam freqüentemente um "não", mas era por coisas que elas faziam  e que eram consideradas como "errado", ou seja, era uma forma de corrigir o feito.  No caso de João aquele "não" supunha antecipadamente a ação dele. Fazia-se a suposição de que ele queria bater, bagunçar, machucar, morder, antes mesmo de ele o fazer. E assim praticamente todos os movimentos lhe eram negados. Aqui, pois, encontramos o sujeito, o que era suposto de João.

Além do "fugir", e dos vários "não!" se destaca a sua relação com as outras crianças da sala. Quase todos os movimentos de João de se aproximar dessas crianças - tais como passar a mão nas costas, abraçar mais que o suposto necessário, levantar-se da roda para sentar ao lado de outro colega, não fazer a tarefinha igual aos demais, - eram sempre justificados pelas outras crianças pelo dito: "Ele é bebê tia.". Aquilo que poderia ser um "olha eu aqui", aqueles tapinhas de leve nas costas dos colegas, o abraço, era interpretado como agressão: "Tia, ele está me batendo!". E a tia/professora imediatamente: "Não João! Isso não pode!". O que ninguém sabia era que ele repetia com as crianças de sua sala a forma de brincar com sua irmã gêmea, uma forma que ela adorava e provocava.

A interpretação que davam ao João não vinha aleatoriamente de cada criança. As crianças repetiam o discurso da Escola em relação ao menino. O lugar da criança dita especial estava firmemente delineado na Escola como o de uma criança que ameaça a segurança de seus colegas.

Além de mantê-lo em sala de aula, à AT era designada a tarefa de conter, separá-lo da briga, impedir qualquer movimento brusco, antecipar tal movimento para impedi-lo, assim como, permanecer fora da sala quando este estivesse "estressado". O que se lia era: faça alguma coisa com isso que não sabemos lidar. O que sugere uma associação com toda aquela corrida nas primeiras semanas.

Se por um lado seus movimentos não eram aprovados em sala, por outro, estava-se ali para contê-lo nestes movimentos. Logo, ele corria, "fugia". Neste ponto, colocamos em relevo: qual o lugar do professor e da escola? Qual o lugar do AT?

Avancemos um pouco mais. Não está tanto a escola quanto a AT, a serviço de um gozo? Onde estão os pais, que à escola delegaram uma tarefa, e esta foi transferida ao AT?

Mas, qual é mesmo a tarefa? Ensinar? Conter? Dar aos pais um outro tempo e um outro espaço no qual eles possam não serem nem pais nem mães?

O AT não é um trabalho solitário. Neste sentido, começamos a compreender que uma primeira função foi a de trabalhar as formas de nomeação e de significação daquilo que pareciam ser os recursos possíveis para a comunicação da criança naquele contexto. Se cada criança desenvolve meios de chamar a atenção do outro, e de obter do outro algum reconhecimento, aquele parecia ser o meio legítimo com o qual João demandava ser reconhecido. Restavam outras formas...

O que era chamado de "bater" pôde ser significado de outras maneiras, por exemplo, "ele está falando com você". Se a criança para falar sobre João se dirigia a professora ou a AT na sala, intervinha-se no sentido de mudar o destinatário da fala:  "fala isso para ele", "pergunta a ele." Ao mesmo tempo em que se agia desta forma com João, falava-se para ele esperando por respostas dele.  Ou seja, criava-se um eixo e uma tensão em que fazia-se a suposição de que ele poderia e deveria responder.

No decorrer do ano letivo algumas crianças começaram a responder de outra forma, e ainda timidamente, foram aprendendo outras formas de se dirigir a João Entraram num novo jogo de significações, assim como a professora. Nesse contexto, João passou a permanecer mais tempo em sala de aula.

No lugar do "bebê" o menino era chamado de "chato" por muitos dos colegas, já que ele não obedecia como se esperava, já que ele brincava na hora em que não se deveria brincar. Mas este "chato" também conferia uma posição mais próxima a de sujeito do que a denominação anterior, desqualificada, quando era chamado de bebê, para ser ignorado ou desculpado. E "chato" também faz com que a agressividade implícita ao trato com a diferença passasse a ser elaborada no plano simbólico. Conseguimos pensar isto da seguinte maneira: a introdução do AT introduziu no campo do Outro uma nova forma discursiva para a circulação das mensagens.

As palavras passaram a circular ao redor de um outro ponto de estofo, de um outro significante que permitia que o bebê deficiente se tornasse alguém ativo, alguém que pode ser suporte para dar conta do amor/agressividade que o significante "chato"  comporta.

Nesse contexto o trabalho do AT se aproxima daquilo que se pode compreender como a tradução e reorganização de significações. Uma maneira de dar nova leitura a algumas situações. Uma forma de preservar a suposição de sujeito, um Outro que responde aos chamados da criança quando está parece querer e falar algo. E isto em um contexto em que o significante Acompanhamento Terapêutico ainda é pobre em significados.

Pudemos perceber que a AT servia como um espelho para equipe em sala de aula e na Escola, onde a professora, o apoio de sala e demais funcionários passaram a repetir palavras e posturas da AT. Ou seja, no decorrer do ano letivo pôde-se perceber a diferença na postura da professora em relação ao seu aluno. Se antes ela tinha uma recusa de olhar-ver a criança,  ela passou a olhá-lo e a escutá-lo de outra maneira. No entanto, persistiu o fato de que,  em momentos em que a AT deixava o menino um pouco mais a vontade,  a esta ser chamada a atenção e lhe pedirem para ficar  perto dele para ele não bater em nenhuma criança.

A forma como João era chamado no inicio do ano por seus colegas de sala, "bebê", desapareceu do contexto. Suas corridas, ou "fugas", continuaram, mas menos que antes. Das atividades que tentou-se fazer, ele elegeu duas como preferidas: o boliche e a pintura – não só no grande papel estendido, mas também  nas paredes, cadeiras, e tudo mais que não for "permitido".

Algumas outras questões: das palavrinhas que João já fala, as mais repetidas são "abe", "abre", "dá". Ora, uma serie de movimentos dessa criança parecem estar compostos numa cena coerente com seu ambiente. Os vários "Nãos!", as várias portas fechadas, a não suposição de sujeito pelos pais, o ser invisível aos olhos dos colegas de sala, parecem compor uma rede em que se sustentavam as primeiras palavrinhas "abe", "abre", "dá" e seus movimentos de correr.

 

Considerações sobre a lógica do mercado e o mercado do gozo

Voltemos ao início. O AT começou por uma demanda dos pais, que por sua vez receberam a demanda da escola. A inserção no contexto escolar permite ler como demanda a tarefa de dar conta daquilo que a escola não sabe como lidar. Então, como lidar com essa demanda? Qual a relação entre essa demanda e a política da inclusão? Como garantir uma posição de sujeito para a criança, em contraposição a de objeto?

A partir do AT pudemos pensar que não apenas a Escola, mas que também os próprios pais, não sabiam mais o que fazer ou como lidar com certas situações. Por um lado a Escola precisa, para existir e manter-se no Simbólico, cumprir uma legislação: incluir. De outro, ela tem que dar conta das demandas dos pais da criança e dos pais de outras crianças. Pais que, de acordo com a lógica do mercado, são consumidores. E existe um código de defesa do consumidor,  do consumidor que paga por um serviço. E a escola é entendida como um serviço a um consumidor. Ou seja, a escola tem que manter uma determinada imagem para o Outro social, ela é uma marca, uma griffe. E os pais, na qualidade de consumidores, podem exigir da escola a qualidade da imagem da mercadoria pela qual pagam.

Dentro da mesma lógica de mercado, o AT não deixa de ser a terceirização de um serviço. E de acordo com esta lógica, o cliente deve sempre estar satisfeito. Uma lógica estranha quando nos amparamos na Psicanálise. Se o que organiza as nossas vidas é a falta, e se o objeto da busca de nossos desejos é sempre um objeto faltante, a lógica do mercado faz-nos crer que a insatisfação do cliente deve-se mais à falta de qualidades do objeto do que à impossibilidade estrutural de encontro do objeto que obture à falta que organiza todo ser falante. Ou seja, aprendemos com a Psicanálise que uma criança começa a falar e, com isto é inserida na linguagem, justamente para dizer o que lhe falta. E é por nunca poder dar conta disto que falta que persiste falando e sendo um ser de fala.

No entanto, no AT nos defrontamos não com a ausência do objeto ou com o que os psicanalistas chamam de  objeto ‘a'. Defrontamo-nos com a lógica do mercado. Se Escola não tem uma mercadoria, então ela indica um serviço. Mas o que acontece quando a lógica do mercado atropela e se sobrepõe à lógica das gerações, quando ela sobrepõe isto que os pais poderiam transmitir para os seus próprios filhos?

Reformulemos a nossa questão, para avançarmos um pouco mais: a partir de que saber os pais criam os próprios filhos? A partir do modo como eles próprios foram criados, a partir do modo como seus próprios pais os anteciparam como pais, os supuseram como podendo ser pais, ou a partir da lógica instaurada pelo mercado e pela mercadoria?

Das lições de Freud aprendemos que pais educam filhos como foram educados, por um lado e, por outro, educam seus filhos contra a educação que receberam dos próprios pais. Ou seja, quando os pais educam seus filhos, o espírito e o espectro dos avós sempre está presente. A isto chamamos de lógica das gerações. Na educação que os pais dão para os filhos há um elemento crítico em relação à educação que eles receberam dos próprios pais. Na relação dos pais com os filhos há uma espécie de tribunal em que os avós são honrados, absolvidos ou condenado. Isso nos parece um ponto pacífico.

Por outro lado, a Psicanálise nos ensina que existem também os ideais e o ideal do eu. Ou seja, talvez os pais eduquem, criticamente, como foram educados, mas talvez eles eduquem mais do modo como imaginam que deveriam ter sido educados pelos próprios pais. Talvez seja por isto mesmo que os pais se sintam, muitas vezes, obrigados a darem para os filhos tudo aquilo que não receberam ou não tiveram na infância. E a esperança de serem melhores pais do que os pais que tiveram.

Há aí um saber repetir, repetir o modo como se foi educado, mas há também um saber crítico e esperançoso, o saber do ideal do eu. Mas como opera este saber quanto à criança "problema" ou dita "especial"? Como se inscreve esta diferença na repetição do saber ou na critica do saber? Os pais que têm que dar conta do filho diante de seus próprios pais (o outro ancestral); tem que dar conta do filho diante do outro escolar (a instituição escolar com notas e conteúdos, os colegas e as famílias dos colegas); e dar conta do filho diante do outro social (aqui entra a inclusão e a exclusão).

Ou seja, ao mesmo tempo em que os pais educam os filhos de forma ambivalente, a favor e contra a educação que receberam dos próprios pais, estes mesmos pais tem que dar conta tanto do ideal do eu - neste caso, a dívida que eles têm para com os próprios pais, quanto da  critica que eles têm dos próprios pais. Por outro lado, há também o discurso da ciência, o qual oferece uma infinidade de profissionais a serviço deste discurso. Tal permite a ilusão de que não há mais um saber transmitido de pai para filho e que dê conta da vida.

Há a continua necessidade de busca de um saber e de profissionais que assegurem, de alguma maneira, formas de inserção. Tanto a escola quanto as famílias sentem-se impotentes diante da demanda do Outro. O que a Escola, o Estado, o Mercado, a Religião, os Antepassados, o Futuro, enfim, o que o Outro quer que a gente faça? O que o Outro quer da gente?

Quando, por exemplo, perguntamos para uma adolescente, para que curso ele vai fazer o vestibular, e o adolescente responde que não sabe, temos esta estrutura. O Outro, encarnado na nossa pergunta, demanda uma resposta do adolescente. Ele diz que não sabe. Não porque ele não sabe o que quer, mas porque ele não sabe o que responder diante da demanda do Outro. A escola, por outro lado, também não sabe quais, exatamente, são as competências, as habilidades e os conteúdos que o Outro quer que ela ensine, qual o currículo que cale as demandas do Outro.

Assim encontramos uma situação em que educar parece ser menos preparar para a vida do que fazer gozar. Aprender tem que ser prazeroso, divertido. Já que não se sabe o que ensinar e como ensinar, o objetivo do ensinar passa a ser fazer gozar. A própria escola passa a ser um lugar que deve ser divertido. Pode não ensinar nada, mas, pelo menos, deve parecer um  lugar divertido, prazeroso. Como os jogos de vídeo game. Quando enjoa, a criança passa para outro. Assim a própria Educação tem que gerar novos "produtos educativos"de acordo com a lógica do gozo e do mercado. Tem que agradar, divertir, fazer sentir-se bem.

De certa forma, estas contradições estão presentes no trabalho de AT. Não se sabe muito bem o que se está fazendo ou o que se deve fazer. E isso parece ser o próprio eco do que acontece na família e na Escola. Se a Escola e a família não estão dando algo, a função como AT parece ser interpelada a ter que dar isto ou a dar conta disso. E é aí que aparece a sensação de não se saber exatamente o que fazer, pois o que está em jogo é a demanda dos pais e da Escola. É como se fôssemos interpelados em uma posição em que deveríamos obturar uma falta, como se neste mundo nada pudesse faltar.

Nesse sentido, não se pode perder de vista ou deixar de encarar a dimensão do gozo. Quando os pais se desincumbiram de algo e delegam este algo para a Escola, há aí um gozo. Quando a Escola declina de algo e delega isto para o AT, há também aí um gozo. Isto é o que vai compondo um mercado de gozos. Gozos que são agenciados pelos psicólogos, pelo reforço escolar, pela psicopedagogia clínica, pela escola de inglês, pela escolinha de futebol, pela escolinha de dança e etc. Não são mais raras as crianças com uma agenda lotadíssima. Elas passam o dia inteiro ocupadíssimas, se preparando para viver em um mundo em que nada mais pode faltar, em que elas terão de dar conta de tudo. E não tem tempo nem para serem crianças ou para brincar, pois elas estão tomadas por compromissos, pelo mercado do gozo.

 

Referências Bibliográficas

Berger, E. (2002) O acompanhar e o acompanhante terapêutico: formação. Recuperado em outubro, 2010, em: http://www.estadosgerais.org/encontro/o_acompanhar.shtml

Kupfer, M. C. M. (2001) Educação para o futuro. São Paulo: ed. Escuta.

Palombine, A. (2007) Vertigens de uma psicanálise a céu aberto – A cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica. Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Sereno, D. (2006) Acompanhamento terapêutico e educação inclusiva.  Revista Psychê Ano X  nº 18 p. 167-179, São Paulo.