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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

E quando a própria criança faz o pedido?

 

 

Sueli Pinto Minatti

 

 


RESUMO

Na história do manejo clínico, no tratamento psicanalítico com crianças, o atendimento em instituição que acolhe a criança e sua família para moradia, possibilitou estabelecer um marco no que diz respeito à consideração da criança, para além das figuras dos pais, pois permitiu desdobramentos para pensar e rever os aportes sobre a criança enquanto sujeito. Quando os pais comparecem, acompanhando-as nos atendimentos, o fato é considerado uma especificidade intrínseca ao tratamento com criança. Trataremos de um caso clínico, em atendimento em instituição que atende a família, muitas das vezes, por um período longo, no qual a criança pede atendimento e, ademais, traz a mãe. Por meio de um recorte desse caso clínico, pretendemos evidenciar formas de mobilidade dentro da estrutura familiar, diante de situações emergenciais, pelas respostas do sujeito e seus efeitos, dentre os lugares ocupados por cada um dos seus elementos.A análise do caso pela dialética teórico-clínica se junta à movimentação de pensamentos sobre a localização da criança como sujeito, acompanhado pelas formas de suas demandas, a função do desejo e a limitação do gozo. O resultado primeiro nesse caso foi a aproximação da mãe ao tratamento do filho e aos cuidados necessários a ambos diante da situação de terminalidade deste.

Palavras-chave: criança; sujeito; estrutura familiar; instituição.


 

 

Introdução

A criança chega ao psicanalista levada pelos pais. Essa fórmula tem sido utilizada nas discussões a respeito da psicanálise com crianças, considerando o lugar dado aos pais como cuidadores e protetores sociais e jurídicos. Podemos situar a inauguração para essa posição no atendimento de criança, o ano de 1909, época da publicação do texto Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, conhecido como "o caso do pequeno Hans". Já na primeira página do texto, Freud agradece a ajuda do pai:

"Ninguém mais poderia, em minha opinião, ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dele; o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de cinco anos era indispensável; sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis".

Nesse texto, Freud analisa Hans, não o pai; mas considera importante a participação deste. Destacamos uma apreensão possível a respeito dessa importância do pai de Hans, considerando sua função e sua ajuda para contornar as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise numa criança1. Aspectos dos quais podem ser definidos, por Freud, como dificuldades técnicas, continuaram a ser tema de discussão entre os analistas que atenderam ou atendem crianças, ainda hoje. Mesmo que esse tenha sido o único caso de criança analisado por Freud, em sua obra, além do sexual infantil que acompanha toda análise de adulto, há várias referências a dificuldades e formas de acesso ao infantil, importantes para a construção teórica, mas não relevantes para esta discussão.

Queremos, no entanto, sinalizar um caminho construído no que diz respeito ao pedido de atendimento dos pais, supostamente a favor de seus filhos.

Para a psicanálise depois de Freud, faremos este percurso considerando três grupos.

O primeiro grupo, contemporâneo a Freud, representado por Anna Freud. Ela considerava que as crianças não eram analisáveis como o seriam os adultos, e considerava a entrevista com os pais motivo de constrangimento ao analista. (1971). Seu trabalho com crianças aproximou-se mais ao da pedagogia. Entendemos, portanto, que o pedido – feito pelos pais por essa vertente – era convertido pela concepção pedagógica.

O que compõe o nosso segundo grupo, representado por Melanie Klein, surge principalmente a partir da década de 1930, quando analisa o menino Dick, que segundo ela "cresceu num ambiente paupérrimo de amor" (1970, p. 300). Essa autora trouxe grande contribuição à psicanálise com crianças, construindo possibilidades claras e profícuas de intervenção e apresentando novas possibilidades a casos que eram tidos anteriormente como fadados ao destino, com diagnósticos que os deixava num campo de retardo mental (Nasio, 2000).

No caso Dick ela recebeu o pedido dos pais para tratar de seu filho, eles foram interpretados como parte das questões trazidas pela criança, porém ela os manteve fora dos atendimentos. Então, se o trabalho de M. Klein e seus efeitos abriram campo para o trabalho com criança, a exclusão dos pais do tratamento também foi mostrando seus efeitos, como a interrupção ao tratamento da criança, feito pelos pais que ficavam de fora. O que abre o questionamento de que incluir ou excluir os pais no tratamento não é sem efeito (Faria, 2004).

No terceiro grupo, surgido a partir da década de 1950 estão Rosine e Robert Lefort, discípulos de Lacan, que analisam crianças em orfanatos, portanto, crianças sem seus pais. Trazem dessa experiência clínica, e com o conceito lacaniano de sujeito, a ideia da criança enquanto sujeito. Esse conceito, o de sujeito, surge da concepção sobre o inconsciente, com Freud, e que vai sendo desenvolvido na obra de Lacan pelas vias dos conceitos de desejo e gozo. Sobre Marisa, menina atendida por Rosine, esta diz: "Não há, (portanto) entre a analista e ela, interposição do dizer e da demanda dos pais, o que a analista deve primeiramente considerar para atingir o sujeito enquanto analisando de pleno direito2" (1997, p. 8).  Rosine estava na instituição e foi se aproximando de Marisa, o que possibilitou sua análise.

As análises de crianças, a partir dessa inserção, contam com novo questionamento do lugar a dar à criança e aos pais. Há um longo percurso sobre essa discussão, claramente articulada em Faria (1998), cujas considerações pretendemos utilizar para situar a psicanálise de crianças, desde então. Nelas, leva-se em conta o sujeito, e também o aspecto de dependência da criança aos seus pais, considerando o pedido de atendimento a ser feito, primeiramente pelos pais, e, posteriormente um possível pedido da criança. Ou seja, duas ou mais ordens de pedidos, uma vez que se trata de dois ou mais sujeitos implicados. Essa ordem dos pedidos pode ser considerada verdadeira, a princípio, em atendimento feito em consultório. No entanto, queremos voltar os olhos à instituição, trazendo uma instituição-moradia em São Paulo, capital, onde o analista vai até o lugar de convívio da criança e da família.

Nessa instituição-moradia a analista chegava oferecendo seus serviços (Minatti, 2005). Esse formato favoreceu a que a criança, brincando ou andando pela casa, pudesse encontrar a analista nos corredores, ou ir à sala de atendimento, quando esta existia, e pedir atendimento.  

Chamaremos Tales, o menino de seis anos, que tendo sido submetido à cirurgia recente no cérebro, e trazendo sequelas motoras e da fala, vai se apoiando nas paredes externas da casa para chegar à sala provisória de atendimento, uma biblioteca e brinquedoteca em outros momentos, e chutar a porta. Quando aberta, dirige-se à prateleira, apanha um livro e, acompanhado de alguns sons ininteligíveis, entrega-o à psicanalista, que se põe a lê-lo em voz alta. Momentos depois, a mãe, que o procura, o encontra e senta-se ao seu lado. A direção da leitura é então passada a ela. Em outros momentos, nas semanas seguintes; a mãe lê histórias a seu filho, ou acomoda-o em seu colo, enquanto fala à psicanalista.

Dias antes, a psicanalista havia visitado Tales, convalescente, no hospital. Leva-lhe um livro da sala de atendimento. Seu pai que o acompanhava, abre-o e lê. Eram os últimos dias do pai, em companhia do filho, antes de voltar para seu lugar de origem.

Os encontros anteriores tiveram início no dia em que Tales e seu pai chegaram à instituição, vindos de Rondônia, onde havia ficado a mãe e cinco irmãos, e estavam no pátio externo da instituição. Foi uma entrevista de cerca de duas horas, semelhante, em duração às demais, com o par pai/filho. Nesta, como nas seguintes, o pai tentava, de várias maneiras, acomodar o filho nos braços de forma a aliviar-lhe a dor dos tumores localizados em vários pontos do corpo. À medida que o filho se acalmava, o pai se sentava. A psicanalista, não sabendo se eles a queriam por perto, ia ficando, uma vez que o relato lhe era dirigido. Tales sempre dormia com a mão enfiada na camisa aberta do pai. As entrevistas passaram à sala de atendimento, onde os dois a procuravam assim que ela chegava à instituição, lugar onde, por vezes, o pai lia histórias ao filho. Já às vésperas da cirurgia de Tales, o pai anunciou sua volta a Rondônia, em nome da sobrevivência da família. Veio substituí-lo, a mãe, que se recusava a falar com a psicanalista justificando ter muitos afazeres. Tales começou, então, a frequentar as consultas sozinho. A mãe veio posteriormente.

Esse recorte nos mostra um menino com precárias condições de fala e de movimento, que faz grande esforço para colocar-se – e também para colocar a mãe, que não tinha impedimento aparente para se movimentar – em movimento, e para poder dizer que não tinha paciência com o filho. Se tentássemos colocar as palavras onde elas não estiveram, daríamos recobrimento com sentidos que não seriam seus. Porém, podemos, além de apostar na força do vínculo estabelecido com o pai, do qual em parte houve testemunho da analista, falar desse pedido de atendimento feito por Tales, que teve como efeito a aproximação e a tentativa de inclusão da mãe, numa história em que ela insistia em se ausentar.

Assim, nos perguntamos: foi o formato institucional que favoreceu esse pedido? Ou o caminho teórico e a concepção de sujeito fizeram ou fazem considerar a este ou a outros Tales, e aos seus pais, pelos seus pedidos, nas diversas e inusitadas formas em que eles aparecem?

Não podemos deixar de considerar, como dito anteriormente, que os trabalhos em instituição abriram caminhos para outras possibilidades do tratamento com a própria criança, para pontuar que os limites da instituição modificaram os moldes do pedido. Como se acompanha no trabalho na instituição pediátrica hospitalar, pedidos de ajuda da criança ao profissional de saúde. Alguns teriam ficado na obscuridade, não fosse a insistência da criança ou os ouvidos atentos dos adultos ao redor. Mas, esses casos serão tratados em outro momento.

Ainda que a criança conserve na perspectiva social sua dependência operacional, o sujeito – sujeito do inconsciente –, pelos diversos formatos que suas demandas podem tomar, coloca a surpresa como ingrediente importante na composição psicanalítica.

Não nos furtamos de considerar o conceito de criança como não universal nem do ponto de vista histórico, nem do ponto de vista cultural (Silva, 2006). Dada essa diversidade, testemunha-se nos cenários institucionais falas entre adultos – pais e/ou profissionais – de conteúdo sigiloso, ou arriscado, a respeito da criança, diante dela, abstraindo-a da situação. Ou, com apenas, quando ocorre, um tom de voz mais baixo, ou sinais que supostamente disfarçariam seu conteúdo, deixando, no entanto, a situação ainda mais evidente.

Quando esses adultos são questionados sobre esse posicionamento, costuma vir uma resposta em torno de: Ela não entende. Pode-se pensar como pouco provável que essa falta de entendimento seja da ordem do conhecimento; tem mais de um século que se disse e se veicula que as crianças não são inocentes (Freud 1905; 1907; 1908; 1909). Essa inocência, que naquele momento foi relacionada à criança, parece mais uma inocência do adulto, que Sauret denomina "inocente no que diz respeito ao gozo" (1998, p. 23).

Ademais, não haveria grande ambiguidade na suposição da criança enquanto ingênua validando sua exposição a violências, pornografias, signos maliciosos, apelos eróticos, agressividades e discussões, excluindo-a, no entanto, de situações em que é um dos personagens, senão a protagonista em questão?

Freud já se perguntava sobre esse suposto ocultamento (1907), questionando se o que é ocultado às crianças não lhes alcançará por outros meios.

Historicamente a psicanálise é pioneira e subversiva da ordem científica para esse recorrido. Freud vai além do conceito de criança para tratar do infantil; fala com o pai, mas trata Hans com perspectivas que não o difere de um adulto. Nesse mesmo artigo fala do infantil como impulsos e desejos sexuais propiciadores de elaboração e construção das diferenças essenciais às noções fundamentais que posicionam adultos e crianças na cultura, que ele chama "constituição humana" (1907, p. 16); ou na linguagem, na terminologia de Lacan.

Por Sauret, comentador de Lacan, "podemos chamar, com Freud, de ‘infantil' o que da criança não se desenvolve, e o que não se desenvolve tem a ver com o gozo (1998, p.27)". Portanto, sendo criança ou adulto, há sempre o infantil enquanto ficção, ou "como aquilo que não foi simbolizado" (Op.cit. p. 27), e que no caso de Tales foi incluído pelo seu pedido. Pode-se dizer, então, que o sujeito surge da demanda transformada em pedido, com autoria. Do dizer, pela demanda, faz aparecer o caminho do desejo, mobilizando aquilo que não se sabe, portanto que não se diz, mas que insiste: o gozo.

Essa subversão, ou essa forma própria de encaminhar os pedidos pode ser definida na teoria lacaniana como desejo. E, como desejo "é um desejo formulado, é um desejo articulado" (Lacan, 2002). Na criança, articulado pelo desejo dos pais(Lacan, 1995).

 

Conclusão

Tales aparece como um exemplo de que a criança pode subverter suas supostas dependências para fazer seu próprio pedido; seja na instituição familiar, hospitalar, instituição moradia, ou outras; desde que haja ouvidos atentos. Caso contrário, esses pedidos se perdem. Seu pedido pode ser dirigido a favor da própria criança, ou a favor de seu cuidador. A mãe de Tales o procurava e foi incluída e, sendo incluída pôde ir situando sua função materna, a começar pela falta de paciência.

Tem também a vertente do próprio Tales, enquanto sujeito. O que ele queria ao fazer aquele trajeto repetidamente? Houve um percurso trilhado por alguém que mal conseguia andar, e a fala – da mãe – antecedida por alguém que pouco falando fez um pedido que incluiu a ambos, o que para a mãe ofereceu um eixo de enfrentamento de uma angústia que a mantinha nos seus afazeres domésticos, deixando de lado os poucos dias restantes de um filho, que fez um apelo. É importante destacar que esse apelo vai além do choro, agressividade, apatia, etc., manifestações recorrentemente identificadas em uma criança diante de uma impossibilidade.

Ele, Tales, já tinha um caminho percorrido com o pai, no qual incluiu a mãe. Para além do movimento motor, o pedido só alcança esse estatuto quando há alguém para escutá-lo. E essa escuta pode ser definida como a consideração acerca do sujeito, independente da idade, como nos mostrou Lefort sobre Marisa.

Por essa vertente, na clínica com criança, considera-se desde o aspecto cronológico, inferior ao de um adulto, mas se considera principalmente as capacidades de apreensão e formulação do mundo, que vão tomando diferentes formas de expressão. Estas não seguem somente referências cronológicas ou culturais, mas principalmente referências das marcas que constituem, conformam e constroem a posição da criança no mundo.

 

Referências

Faria, M.R. (1998). Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo, Hacker.

--------------. (2004). As entrevistas preliminares aos tratamentos com crianças. In Acheronta (Online) v. 20, p. 35-48.

Freud, A. (1971). O tratamento psicanalítico de crianças. São Paulo, Imago Editora Ltda.

Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completa (1969), vol VI,. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.

-----------. (1907). O esclarecimento sexual das crianças. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completa (1969), vol IX,Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.

----------. (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completa (1969), vol IX. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.

----------. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completa (1969), vol X. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.

Klein, M. (1970). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego.  In Contribuições à psicanálise (M. Maillet, Trad). São Paulo, Editora Mestre Jou.

Lacan, J. (1995). O significante no real. In A relação de objeto. Seminário 1956/1957. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

-----------. (2002). O desejo e sua interpretação. Seminário 1958/1959. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação psicanalítica de Porto Alegre.

Lefort, R. (1997). Marisa, a escolha sexual da menina (V. Avelar, Trad.). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

Minatti, S.P. (2005). De pensamentos triviais ou absurdos à formação de elo eficaz – o poder da transferência na clínica psicanalítica em instituição. InPulsional - revista de psicanálise, São Paulo, V. Vol. 1, no. 1, p. 136-141.

Nasio, J.-D. (2000). Os grandes casos de psicose (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

Sauret, M-J. (1998). O infantil & a estruturaConferências em São Paulo 29, 30 e 31 de agosto de 1997. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise.

Silva, A.L.B.P. (2006). Da fantasia de infância ao infantil na fantasia – a direção do tratamento na psicanálise com crianças. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

 

 

1 Grifo nosso.
2 Grifo nosso.