8E quando a própria criança faz o pedido?"Gozo em saber que..." author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Pais, escola, especialistas: quem sabe sobre a criança? o conflito de saberes entre a escola, os pais e os profissionais clínicos

 

 

Tânia M. Asturiano de Campos Rezende

 

 

Na relação entre profissionais da escola, profissionais clínicos e os pais de uma criança com problemas, confluem diferentes saberes, de modo ora convergente, ora conflitante. Afinal, quem é que conhece de verdade a criança? O que se pode saber de uma criança?

No cotidiano escolar atual, deparamo-nos com alunos que apresentam diferentes tipos de problemas, em diferentes contextos familiares. Notadamente há alguns anos, com a política de inclusão, é cada vez mais freqüente haver na escola regular alunos com deficiências ou distúrbios mais acentuados, de ordem física ou mental. Independente de qual é o diagnóstico clínico, cada aluno possui um histórico e uma condição familiar singulares, o que configura um cenário totalmente diferente de outros alunos que apresentem o mesmo problema. Para ilustrar, podemos pensar em três situações distintas para uma criança com atraso de desenvolvimento motor:

-entrar na escola cedo (com 2 anos de idade, por exemplo) e contar, desde o início, com o trabalho de profissionais clínicos e com pais que se dispõem a colaborar com a escola em prol de uma aprendizagem escolar mais eficiente; os pais querem estar presentes e cientes de tudo, participam dos eventos escolares, comunicam-se com a professora para corresponder aos seus pedidos e contribuir;
-entrar na escola com 4 anos de idade e ter pais que estejam perdidos e confusos, em meio a uma diversidade de médicos, diagnósticos e terapias, sem saber em quem confiar ou dar continuidade a qualquer tratamento, desconfiados e ansiosos; comunicam-se com a professora, mais para trazer suas dúvidas do que para acompanhar o trabalho escolar.
-entrar na escola com 3 anos, com pais que consideram que não há mais nada a fazer ou questionar, pois consultam os mais renomados especialistas e contratam todos os tratamentos indicados;resistem a qualquer demanda escolar, pois sentem que está tudo "resolvido"; comunicam-se com a professora para orientá-la e ensiná-la como agir.

Enfim, as situações familiares são bem diversas, dificultando qualquer generalização quando queremos falar sobre a relação entre criança, pais, escola e profissionais clínicos.  Portanto, considerar somente a especificidade do problema da criança, como é comum no meio (psico)pedagógico, pode atingir objetivos didáticos, porém não a realidade da criança, tampouco a realidade escolar. Nenhum professor trabalha com "crianças cegas", mas com a Mariazinha, de 6 anos, caçula de 5 irmãos e filha do José e da Joana, que teve rubéola gestacional, e nunca foi à escola antes etc e etc O confronto entre a criança idealizada e a criança que se apresenta ali no contato diário é inevitável e precisa ser trazido à tona – é material de trabalho para os profissionais da escola. Ao nos darmos conta desse desencontro, é preciso resistir à tentação de obturar essa diferença com uma teoria que aponte o "culpado", para não sufocar a possibilidade de expressão de um sujeito, onde ali se apresenta uma mãe, uma professora, uma criança, enfim, cada um dos envolvidos na cena. Trata-se de não tentar "consertar" esse desencontro, mas entendê-lo como algo inerente ao convívio entre adultos e crianças ou entre os "velhos" e os "seres pequenos", termos que Lajonquière (2010) utiliza justamente para sinalizar que a diferença não está no desenvolvimento de competências, marcando a superioridade do adulto ou a possibilidade dessa diferença ser superada numa linha evolutiva temporal. Velhos e seres pequenos remetem-nos a uma assimetria, a uma falta de proporção irredutível entre as gerações, que coloca em jogo o encontro com a castração e a busca de uma infância para sempre perdida.

A relação entre educadores e crianças, portanto, já inevitavelmente marcada por um estranhamento, pode ainda ser vivida como algo da ordem da impossibilidade ou do risco, quando se enfrentam problemas mais graves, como deficiências físicas, dificuldades de aprendizagem (por exemplo: o atraso na alfabetização, a dislexia, a discalculia), distúrbios comportamentais/ emocionais (onde encaixarei os quadros de déficit de atenção, hiperatividade, agressividade, indisciplina, timidez excessiva) ou distúrbios globais do desenvolvimento (onde há comprometimento da constituição subjetiva –interação social, fala e outras funções básicas, como nos casos de autismo, psicose ou quadros sem diagnóstico definido).

Para simplificar, nomearemos aqui todos esses distúrbios, síndromes, deficiências, como "problemas". Pois o que ocorre, na grande maioria dos casos, é que a criança enfrenta problemas para fazer o que esperam dela na escola, para lidar com as situações de aprendizagem propostas, para estar e conviver naquele ambiente coletivo e regrado que é a escola; e, por outro lado, os professores e profissionais da escola também enfrentam problemas, pois o que aquela criança ou adolescente lhe traz revelam uma falta no seu saber, geralmente fundamentado em sua experiência e respaldado em algum título ou diploma. Os adultos, dos quais se espera que saibam o que fazer, incluindo-se aí os pais, encontram-se impotentes.

Tanto a família quanto a escola costumam paralisar diante dos impasses que se enfrentam diariamente quando a criança apresenta algum distúrbio de constituição subjetiva ou física, pois isso renova a ferida narcísica dos adultos. A criança com problemas é uma imagem muito vívida da castração, ativando diversas formas de defesa: exclusão ou isolamento (como recusa de matrícula, expulsão), projeção e cisão (culpabilização da própria criança, "é ela que possui problemas, não eu", procura de causas físicas e diagnósticos que comprovem isso, "quanto pior ela está, melhor eu me sinto"), ou, ainda, negação (minimização ou negação do problema, indiferença, "para mim, são todos iguais"). Há diversas teorias e idéias pedagógicas, psicológicas e médicas que se prestam a essa paralisação, reduzindo o campo de visão e, portanto, de atuação junto à criança.

Na tentativa de superar esses impasses, as reuniões ou entrevistas entre orientador da escola e pais, bem como entre orientador escolar e clínicos, podem ser oportunidades de se ampliar os horizontes, mas também podem virar armadilhas para encontrar um culpado.

Nesse sentido, não é fácil a interação entre pais, professores, profissionais clínicos e a criança, nem previsível como vai se desenrolar esse encontro. A idéia de encontro é importante pois, por mais complicado e até doloroso que possa ser, reunir-se/ estar junto/ frente a frente, abre um espaço para a ampliação dos olhares e para o surgimento de algo novo. Chamar os pais para uma conversa, nessa intenção de promover um encontro, já insere uma diferença nos clássicos chamados "à diretoria", em que se espera que a escola vá reclamar do aluno. Um bom encontro sugere diálogo, sugere reconhecimento do outro, sugere que cada parte coloque suas cartas na mesa – um "jogo limpo", não um "jogo de cartas marcadas". Se as cartas não estão marcadas, ou seja, as posições de cada um na conversa não estão previamente definidas, isso implica nos profissionais da escola que convocam a reunião (diretor, coordenador ou orientador educacional) assumirem sua condição de saber incompleto, não-todo. O professor e demais profissionais sabem, sim, muito sobre a criança em questão, mas esse saber possui falhas que precisam ser assumidas para que se possa ouvir o saber dos pais. Nesse encontro, os pais ficam também autorizados a assumir suas próprias falhas e não são colocados numa posição em que precisam se defender ou defender o filho, tampouco numa posição em que precisem dar uma resposta à escola e esclarecer qual é o problema.

Quando o profissional assume um discurso de quem tudo sabe, fecha o espaço do encontro. Será que se trata, então, de permear esse encontro "profissionais da escola e pais" com momentos de escuta analítica? Quando o profissional abre brechas na conversa, suspende momentaneamente as posições estanques para permitir algum movimento inconsciente, que produzirá efeitos.

Inicialmente, tal tipo de reunião em que se promove uma "conversa aberta" é percebido como improdutivo:"conversamos, conversamos, e não chegamos a lugar algum"; "os pais vieram aqui e continuam resistentes a ver os problemas do filho"; "a escola me chamou e não tinha nada de concreto para mostrar" – mas ao falar sobre os problemas da vida escolar de Fulano, para alguém que pode escutar, pais e professores também se escutam e podem conhecer melhor o que os angustia. Vale ressaltar que, para além da compreensão e do entendimento, os momentos de abertura, de ruptura, de emergência do Real, que seriam o avesso do esclarecimento, são um indício de que ali algo efetivamente ocorreu. É notável como isso produz efeitos: mudanças de posição subjetiva, mudanças de olhar, de discurso - mesmo que nada "de concreto" tenha sido definido no encontro escola-pais.

Encontros e reuniões entre professores, coordenadores e profissionais técnicos da escola, entre si e com os pais, também não são suficientes (nem caberia esperar que fossem) para resolver as situações difíceis, embora possam contribuir imensamente. A partir de minha própria formação em Psicologia Clínica, Psicanálise e Educação e experiência como Diretora Escolar de uma escola particular de educação infantil, considero que quando o aluno é atendido por profissionais clínicos, o encontro com eles também é fundamental. De modo diferente dos pais, os profissionais clínicos falam de um lugar de especialistas.

Ao convocar o profissional que atende clinicamente um aluno, a escola se coloca na posição de quem não sabe tudo e está precisando de ajuda, o que pode resultar na conclusão ilusória, para ambas as partes, de que o especialista sabe. As falas dos professores assim expressam:"Fulano não pára de bater nos colegas, não sabemos mais o que fazer. A psicóloga dele virá aqui e nos dirá como agir." "Ainda bem que a fisioterapeuta vem, pois não agüentamos mais carregar Sicrano e ela deve nos ensinar o que fazer com ele." Já experimentamos, porém, situações em que o encontro com os profissionais clínicos ocorriam sob um clima de frustração e cobrança: "Beltrano não pára de bater nos colegas e faz terapia há mais de um ano! A psicóloga não faz nada?" "Por quê a fono vem aqui, se não está ajudando nada? Nós é que sabemos o que é ficar tentando entender o Joãozinho a tarde toda! Depois que ele entrou na escola, já aprendeu um monte de coisa..."

Para que se possa retomar o movimento e garantir espaço para o surgimento da criança-sujeito, é fundamental superar a rivalidade entre os envolvidos e potencializar a confluência de saberes, sem que se anulem e tampouco que pretendam ser complementares.Quando surge a rivalidade ou a idealização, porém, não é por mandato que elas serão superadas, assim como não há receita ou vacina para evitar que ocorram. Nesse sentido, novamente sugiro a imagem do encontro e da conversa, sem demandas objetivas e previamente definidas, pois através da fala e seus tropeços pode-se tecer uma rede de articulação profissional.

Para quem trabalha na escola (o professor, o coordenador pedagógico, o orientador educacional, o diretor), simplesmente conhecer o(s) clínico(s) que atende seu aluno, nessa conversa, pode ter um efeito apaziguador. Afinal, os especialistas também são gente de carne e osso, não super heróis com poderes mágicos, e os profissionais da escola percebem que não estão sozinhos, porém atuam num campo bem definido e distinto. O encontro com outros profissionais também traz reconhecimento dos saberes dos professores, o que lhes aumenta a autoconfiança e a noção de que mesmo no trabalho (geralmente) individual da clínica, com um "especialista no problema do Fulano", também se enfrentam impasses e dificuldades. Nesse sentido, considero muito frutífero fazer reuniões das quais participem, simultaneamente, o profissional clínico, a professora ou o professor, o auxiliar de classe e a orientadora educacional ou outro profissional da escola que acompanhe o caso. É freqüente ocorrer que tais encontros sejam restritos aos "especialistas técnicos" e que os professores fiquem de fora, o que denota a noção de que "lá fora", no campo do saber científico, há uma verdade redentora, que depois será passada ao professor através de uma orientação prática. Reuniões fechadas geralmente geram fantasias persecutórias (nas professoras e nos pais, principalmente), restringem a visão dos clínicos sobre a dinâmica escolar (se eles só tiverem contato com o diretor, por exemplo), e demandam mais tempo, já que será preciso depois retomar o que foi conversado com cada um dos envolvidos com a criança.

A visita à escola é um material valioso para o andamento do trabalho terapêutico e, em minha experiência, o retorno dos profissionais em relação a essas reuniões é muito positivo. O modo de trabalho de cada profissional deve ser respeitado: alguns preferem ir à escola logo após a adaptação da criança ou à chegada dela no consultório, outros preferem deixar o trabalho clínico avançar, outros ainda preferem não comparecer e falar por telefone. Seja qual for o processo, quando se forma uma rede de trabalho, com confiança entre os diversos profissionais, os problemas enfrentados perdem parte de seu peso e freqüentemente fluem junto aos demais, no cotidiano escolar. Em minha experiência, quando a linha de trabalho escola – clínica é radicalmente diferente, procuramos explicitar isso aos pais, resultando em diferentes posicionamentos, conforme a transferência criada com cada um: os pais podem optar por outra escola, após certo tempo, podem pedir indicação de outros profissionais, ou insistir na mesma configuração, convivendo com a divergência de abordagem. Afinal, quem sabe sobre a criança, quem está "certo", não poderemos nunca afirmar, mas a decisão sobre a vida da criança cabe sempre aos pais. O reasseguramento do papel de mãe e pai é fundamental em situações em que existem diversos especialistas em torno do aluno.

Geralmente, quando o profissional clínico vai à escola, visita todo o espaço e encontra o aluno que é seu paciente, mesmo que não de modo planejado Na educação infantil, a criança precisa ser informada sobre as reuniões, embora não participe diretamente delas. Seria novamente ilusório pensar que, com tantas reuniões entre os adultos e profissionais, as questões problemáticas serão superadas, excluindo-se a criança. Aqui, retomando o início da conversa, não se trata de A Criança, mas de uma criança específica.

"Os especialistas creem saber, graças a elucubrações científicas de ocasião, sobre as necessidades e interesses "da criança" ou de uma criança genérica. Em nome desse saber genérico, falam de A-Criança a outros, ao Outro. Quando dirigem a palavra a uma criança o fazem inevitavelmente em nome desse saber sem nome próprio, o saber dA-Criança. Portanto, os especialistas não falam com uma criança singular com nome e sobrenome. o "falar com uma criança" está em função do reconhecimento, por parte do velho, da própria implicação subjetiva em uma educação, quer dizer, de como é perlaborado aquele estrangeiro ao "si mesmo adulto" que o (des)encontro com o pequeno ser realimenta."(Lajonquière, 2010, p.215)

Quanto mais nova a criança, mais sensível aos olhares e às mensagens não-verbais. Mesmo os bebês e crianças que ainda não falam estão totalmente imersos na linguagem – se a criança, enquanto um sujeito, for ignorada, não há encontro e conversa, não há saberes da mais alta especialidade que poderão ajudá-la. Não há nenhuma formalidade nisso: podemos falar com a criança, no momento em que acharmos oportuno, que seus pais virão, ou que a professora conversou com a Fulana (sua terapeuta), que estamos preocupados com tal coisa, que queremos ajudá-la em outra, etc, durante o convívio habitual na escola. A criança é ouvida também, em suas perguntas, em seu brincar, em suas representações gráficas, plásticas, escritas, em todas as suas formas de expressão, sempre (sempre que possível, pois não há onipresença e onisciência do educador).

A criança com problemas corre alto risco de ficar abandonada e aprisionada entre rótulos, principalmente quando os adultos envolvidos nada querem saber do que está em jogo nesse (des)encontro: o (re)encontro com sua castração e com o infantil. Nessa perspectiva, é bem vinda a presença de um profissional com escuta analítica, que possa relançar aos envolvidos o que emerge enquanto inconsciente e, assim, resguardar brechas de movimentação nos discursos.

Quando os saberes se encontram, não conseguimos que se complementem ou se encaixem perfeitamente, como peças de quebra-cabeça, mas sim como cacos de um mosaico em construção. Com os cacos, as peças não se encaixam de um modo pré-determinado, mas sempre brechas irregulares, formando também figuras e paisagens, a posteriori, a despeito de todas as idealizações.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

LAJONQUIÈRE, L. (2010). Figuras do infantil – A psicanálise na vida cotidiana com as crianças.Petrópolis: Vozes.