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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Psicanálise e Educação: quando as fronteiras se esvaem

 

 

Carolina Cardoso TiussiI; Luiz Moreno Guimarães ReinoII; Paula MoreauIII; Tiago de Moraes Tavares de LimaIV

I Psicóloga associada do Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica, mestranda do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – PSA – IPUSP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Machado Kupfer. caroltiussi@yahoo.com.br
IIMestrando do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – PSA – IPUSP. luiz.moreno.reino@usp.br
IIIPsicóloga formada pela UFPR e mestranda do Departamento de Psicologia Clínica – PSC – IPUSP, sob orientação da Prof. Drª Maria Lúcia de A. Andrade
IVPsicólogo e mestrando do Departamento Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – PSA – IPUSP. tiagomtl@gmail.com

 

 

Apresentação

Esse trabalho teve início a partir das discussões que desenvolvemos na disciplina "Psicologia e Educação: limites e alcance de uma integração"1, ministrada pela Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer. Nossa tentativa é a trazer algumas reflexões que se localizam na fronteira entre o tratar e o educar, a partir da leitura psicanalítica, que, como sabemos, não é homogênea. Cada autor trouxe sua própria questão e seu próprio recorte para a discussão das aproximações entre a constituição subjetiva e o papel da educação. Ou seja, o que liga estas quatro partes que compõem esta apresentação é o fato de cada uma, a seu modo, se posicionar frente à mesma problemática, como focos de luz que tentam iluminar, por diferentes ângulos, o mesmo objeto.

Assim, após algumas considerações iniciais sobre possíveis distinções entre psicanálise e educação, vamos nos debruçar sobre uma prática específica, profissão da Mãe Social no interior dos abrigos, que condensa bem as dificuldades de traçar uma fronteira entre esses dois campos, a saber, o trabalho desenvolvido de educar e de tratar, envolvendo este um mais além, o cuidar. Essa questão será apresentada por Paula Moreau. Em seguida, Luiz Moreno problematizará a discussão, do ponto de vista da relação entre educação e psicopatologia, em especial, a partir do texto "Saúde mental, produto da educação?", de Jurandir Freire Costa (2003), no qual o autor questiona a relação entre educação e a produção ou a prevenção de psicopatologia. Por fim, Carolina Tiussi apresentará a proposta da prática denominada educação terapêutica, de Maria Cristina Machado Kupfer, que almeja uma articulação entre psicanálise e educação. 

Ao longo de nossas discussões, bem como com o cotejamento das diferentes posições de autores que se debruçaram sobre esta problemática, chegamos a uma possível divisão no conceito de educação, que não visa harmonizar as divergentes posições teóricas, mas simplesmente apontar para o fato de que, talvez, tais autores estejam se referindo a momentos distintos da constituição subjetiva. Trata-se, portanto, de operar uma cisão no conceito de educação, como se a educação tivesse dois tempos lógicos, um anterior a constituição subjetiva (no qual educar e o tratar se confundem), outro posterior a constituição subjetiva (onde a educação torna-se então impotente); sendo que a educação terapêutica seria uma tentativa de recolocar essa questão, colocando em evidência a função psíquica do ato educativo e seus efeitos para o sujeito. Nesse sentido, ela sugere uma leitura em que as fronteiras entre educar e tratar se esvaem. Tentaremos desenvolver melhor este argumento, ao longo das páginas que seguem, sendo que vale a advertência ao leitor que tudo aqui está em estado nascente, no interior de um debate que é complexo e árduo.

 

Introdução

Como ponto de partida, tomamos a dissertação de Renata Petri (2000), que procurou tratar justamente dos limites e características fundamentais que definem cada um desses campos. A autora faz referência a um artigo de Di Ciaccia, que se inicia com o que as duas disciplinas teriam em comum: ambas se inserem no campo da linguagem e localizam um sujeito à medida que reenviam a este a palavra endereçada ao Outro, autenticando o que foi dito, reconhecendo o sujeito. Há uma assimetria do sujeito em relação ao Outro, porém, enquanto o educador assume o processo identificatório aí implicado, o psicanalista se recusa a ocupar esse lugar. A chave para compreender essa questão consiste na diferenciação de duas instâncias distintas do Outro: "um primeiro Outro que reconhece e autentica, reenviando a própria mensagem (onde pais e educadores estariam posicionados), e um segundo Outro enquanto Outro barrado, faltante, que reenvia exatamente à falta de significante, mostrando que nem tudo é da ordem significante (posição ocupada pelo psicanalista)" (p. 36).

Podemos compreender essas duas versões do Outro como duas posições com a qual a criança é defrontada, num primeiro momento se alienando aos significantes que lhe são oferecidos pelo Outro para, num segundo momento, se deparar com a falta no Outro e construir então sua versão original para lidar com ela, ou negá-la (p. 37).

Para Di Ciaccia, a análise operaria sempre nesta articulação do sujeito do inconsciente com o Outro barrado – seja na criança, pela via da significantização dessa falta (isto é, através do falo), seja no adulto, por meio daquilo que resta dessa operação de significantização (o objeto a). A educação, por sua vez, se manteria circunscrita ao primeiro momento, sustentando o sujeito na autenticação e se dispondo à identificação, âmbito que poderíamos relacionar com o da construção – construção seja pela constituição de identificações, seja pela oferta (no ensino propriamente dito) de um instrumento "para um domínio pelo viés do saber" (Di Ciaccia, citado por Petri, 2000, p. 38).

Se seguirmos esse raciocínio e reservarmos à psicanálise o campo no qual um sujeito já constituído é confrontado com a falta no Outro, destinaremos à educação, no sentido amplo, o âmbito da constituição do sujeito. Isso porque para que uma criança possa existir no campo do Outro é necessário um ato realizado pelo Outro, uma inscrição, inserindo uma marca que indica ao sujeito a presença do Outro. É essa inscrição, segundo Jerusalinsky, que possibilita o enodamento entre imaginário, simbólico e real, definindo as bordas do objeto a (citado por Petri, 2000, p. 40). A agulha que será o vetor dessa costura, nas palavras do autor, é o Nome do Pai.

Mas seria essa distinção entre psicanálise e educação precisa? De um lado, na psicanálise, a interpretação que confronta o sujeito com a falta e, de outro, na educação, a construção de um processo identificatório – a psicanálise abarcando a educação? Se nos referirmos à definição de educação de outro psicanalista, Charles Melman, veremos que a questão é tomada de outro ponto de vista:

"O bem maior que posso lhe dar (ao meu filho) é de ter acesso à falta inscrita no grande Outro, quer dizer, ao real, pois é só este real que ele pode vir a habitar como sujeito e de onde ele pode vir a desejar" (Melman, citado por Petri,p. 41). A esse efeito de furo, o autor atribui um traumatismo, constitutivo da neurose.

Vemos como a noção de educação transmitida por Melman já não deixa tão claros os limites entre educação e psicanálise. Isso porque notamos que, na sua visão, um educar para constituir um sujeito desejante teria como condição um elemento que anteriormente tínhamos reservado ao ofício da psicanálise, a saber, a defrontação do sujeito com a falta no Outro. Portanto, não bastaria apenas reconhecer o enunciado do sujeito e autenticá-lo, mas remetê-lo ao fato de que esse outro que se ocupa dele, também ele, está submetido à castração.

Antes de seguirmos a diante nessa discussão, cabe ainda levantarmos uma segunda ampliação possível da concepção de educação, desta vez uma que dê conta de definir melhor a distinção entre a educação que relacionamos à constituição subjetiva e a educação que, por exemplo, a criança recebe na escola num momento posterior. Isso poderia ser feito separando-a, a educação também, em dois momentos: em uma primeira educação fundamental, que opera nessa inscrição fundamental cujo agente são os pais, e que é responsável por criar um lugar de enunciação ao sujeito; e em uma segunda educação, que teria como pré-requisito a efetuação da primeira, que consistiria na transmissão de conhecimentos revestidos de valor fálico. Se a primeira operação é pré-requisito para a segunda, também esta última já seria antecipada na primeira. Isto é, um efeito da ação educativa, segundo Lajonquière, é o de estabilização do gozo, ou seja, a criação de circuitos para canalizar a pulsão. Mas junto com as marcas do Outro que operam esses trilhamentos, também é transmitida "uma lógica operativa que transcende o campo fantasmático no interior do qual estamos singularmente tomados como sujeitos desejantes, uma vez que se trata de um pedaço da cultura, um universal, um fragmento de liame social" (Lajonquière, citado por Petri, 2000, p. 43).

Retomando nosso percurso até aqui, nossa reflexão a respeito da distinção entre educação e psicanálise nos permitiu pontuar duas problemáticas com as quais aquele que quiser traçar uma linha entre esses dois campos terá de se haver.

A primeira tem como centro a questão da instalação da falta, e de que papel teriam analista e educador no que se refere aos dois tempos lógicos da constituição subjetiva aí implicados: o do reconhecimento (de um enunciado, de um sujeito que fala), e o da confrontação do sujeito com a castração, com a falta no Outro. O desenvolvimento dessa questão terá continuidade neste texto quando tratarmos dos desafios que o cuidado de crianças abrigadas coloca do ponto de vista do tratar e do educar.

A segunda questão tem como centro a questão da identificação ou das marcas deixadas pelo Outro no sujeito. A temática da constituição subjetiva coloca aqui também uma divisão – agora no interior da educação – acerca da qual caberia perguntarmo-nos em quais dessas duas educações existe a possibilidade do aparecimento de uma psicopatologia. Essa discussão será abordada a frente, a partir do exame e problematização do texto de Jurandir Freire Costa (2003), "Saúde mental, produto da educação?" e, num segundo momento, à luz da proposta da Educação Terapêutica.

 

Educar e Cuidar: papel da Mãe-Social nos Abrigos

Em instituições como os lares-abrigos – casas financiadas pelo poder público de acolhimento de crianças menores de dezoito anos que, por diferentes razões, não residem com seus pais – constituiu-se a figura da mãe social. Trata-se de profissional responsável pelas crianças que ali residem. De acordo com o desenvolvido na introdução desse presente trabalho, podemos caracterizar a profissão da Mãe Social por uma dupla função referente a dois momentos da educação: ser responsável pelo endereçamento de um desejo a criança e ser representante do Outro barrado. Também será colocada em questão uma educação que não deixa espaço para dúvida, onde o educador se coloca de forma totalizante e a instituição com discurso engessado.

Além de estar encarregada de satisfazer as necessidades biológicas como dar comida e aquecimento à criança, a Mãe Social oferece o alimento da linguagem e o reconhecimento. Papel fundamental, usualmente exercido pelos pais que, fazendo parte do primeiro momento da educação. "É pela educação que um adulto marca seu filho com marcas de desejo; assim o ato educativo pode ser ampliado a todo ato de um adulto dirigido a uma criança" (Kupfer, 2000, p. 35). Período de suma importância para criança o que torna essa profissão muito delicada, pois mesmo não sendo mãe das crianças, tem o papel de reconhecê-las, de fazer a maternagem ao mesmo tempo em que é preciso lembrar que não é mãe delas. Porque que essa lembrança é necessária? Não poderia a Mãe Social, ser mãe conforme o nome sugere? Se sim, qual problemática poderia existir?

Se ser mãe implica depositar ideais na criança, planejar o futuro e dizer que sabe o que é melhor para esta, colocando-se como não faltante, não seria adequado essa posição. Estaríamos diante de uma educação produtora de engolfamento e de sofrimentos. Assim também seria se houvesse uma intervenção excessivamente pedagógica com discurso rígido da instituição, pois esta poderia "favorecer o anonimato deste outro a quem a criança é entregue, posto que incentiva o exercício do ofício numa perspectiva padronizante e tecnocrata, com tendência a exclusão de um saber inconsciente" (Mariotto, 2009, p. 26). A idéia de simbiose trazida pela primeira situação é tão problemática quanto à do anonimato, sendo esta talvez mais complicada. Mas como não confundir o trabalho de Mãe Social do ser mãe, sendo que na maioria das vezes as crianças foram abandonadas pelos seus pais?

A baliza entre função de acolhimento e função parental se dá quando o educador tem clareza de que exerce uma profissão. Seu trabalho deve estar atravessado pelo desejo de fazê-lo bem, de ser um bom educador. Segundo Mariotto (2009), além das gratificações afetivas imaginárias que estão presentes no trabalho, é fundamental que o caráter profissional, enquanto meio de subsistência, sobressaia. Assim, o salário do educador é um importante operador de limite, que reforça o lugar de profissional em que ele se encontra, lembrando-o de que não é o pai ou a mãe daquelas crianças, apesar de exercer as funções maternas e paternas.

Desse modo, ao ter o desejo voltado a desempenhar bem seu papel profissional e ao ter outros desejos além das crianças, outros interesses e afazeres, a Mãe Social coloca-se como barrada, como faltante, possibilitando transmitir a falta simbólica que abrirá espaço para constituição subjetiva das crianças, caracterizando o segundo momento da educação, a terapêutica, a que envolve um tratar e um cuidar, pela presença de um Outro barrado.

Cria-se, assim, oportunidade para uma possível amarração do sujeito, evitando desordem psíquica, mas sem ocultar a falta estrutural. Isso se dá a partir da singular forma de enlaçamento entre a criança e o Outro da linguagem. É nesse momento em que a função da Mãe-Social se mostra importante e também seria esse o papel do psicanalista, o qual não detém exclusividade.

O educar primeiro e segundo momento mostrou-se possível na figura profissional da Mãe-Social, o que possibilita pensar na educação em bordas com a psicanálise.

 

Notas sobre educação e psicopatologia

Vocês devem ter notado que o nosso argumento central está em propor uma espécie de divisão lógica do conceito de educação, como se a educação tivesse dois tempos ou como se houvessem duas educações. O primeiro tempo seria a fase de constituição do sujeito, na qual a criança depende do adulto para que as suas experiências se tornem significativas. Em termos lacanianos, podemos dizer, com Jerusalinsky (2001), que a criança não tem acesso direto a Lei, ela precisa de um outro – no caso, o adulto – para alcançar a Lei. Ou seja, nesse tempo de constituição do sujeito, a relação da criança com a Lei precisa ser mediada pelo adulto. Aqui situamos o primeiro tempo lógico da educação.

Apenas para ilustrar, ainda que temerariamente, Bleger traz uma cena interessante que é a seguinte: uma criança (aprendendo a andar) e sua mãe passeiam em um parque, chega um estranho e oferece algo a criança, ou seja, aborda ela diretamente sem contato prévio com a mãe, a criança antes de aceitar olha para o rosto da mãe... e aqui se passa algo interessante que é: a mãe não precisa dizer nada, a criança reconhece no rosto da mãe se ela deve ou não aceitar aquilo que vem do estranho. Tudo se passa como se a criança esperasse a autorização da mãe para aceitar ou não o que vem desse terceiro, desse estrangeiro. Assim o que está em jogo nesse tempo da educação é a possibilidade do adulto em modificar a relação da criança com a Lei, modificar essa relação da criança com esse terceiro. O que chamamos de psicopatologia está aí em vias de constituição2.

Agora a questão que eu gostaria de colocar para vocês é: uma vez que já ocorreu esse posicionamento frente ao Outro, ou seja, uma vez que já não é mais necessário o adulto para mediar a relação com a Lei, quais efeitos têm a educação no quadro clínico? Simplificando a questão: uma vez constituído o sujeito, como pensar na relação entre educação e psicopatologia?

Segundo Jurandir Freire Costa (2003), no texto "Saúde mental, produto da educação?", a resposta direta seria: não há relação alguma entre educação e psicopatologia uma vez que o sujeito está constituído. Apesar de uma série de esforços de criar uma possível educação preventiva para neurose, ou mesmo uma educação "desneurotizante", para usar a bizarra expressão de Vera Schmidt (citado por Costa, 2003). Para Costa, no entanto, toda educação que tenta incidir na psicopatologia pode ser chamada de "educação psicopatológica", e todas têm igual destino: o fracasso.

Isso nos remete a uma colocação de Freud (1937/2006), a qual diz que de nada adianta ensinar o catecismo aos índios, pois eles continuarão adorando seus velhos deuses no fundo dos seus quintais. Esta passagem, que está em "Análise terminável e interminável", pode ser entendida, entre outras formas, como: uma vez instaurado esse culto aos velhos deuses, todos os novos deuses serão superficiais e cultuados em altares artificiais. Pode até ocorrer uma mudança, mas ela será superficial. Tal como o camaleão que muda para continuar o mesmo, fenômeno evidenciado por Lacan com o conceito de identificação imaginária (Miller, 2002).

Bom, então, se esse segundo tempo da educação não produz saúde mental, nos termos de Costa, o que de fato esse tempo produz? Qual é o efeito psíquico da educação psicológica?

A educação psicológica cria e sustenta um tipo psicológico ideal, diz Costa. Ou seja, cria e sustenta um ideal psíquico de uma determinada sociedade ou parte dela. Voltando a questão: o que produz a "educação psicológica"?  Resposta: não produz nada, somente reproduz a ordem social. Contudo, essa ordem social demanda do sujeito justamente uma proximidade desse tipo psicológico social. Que pode gerar um tipo muito peculiar de sofrimento. Para evidenciar esta forma de sofrer, recorreremos a uma distinção.

A nossa contribuição, para pensarmos um exemplo desses dois tempos lógicos da educação, é dividirmos o sofrimento também em dois. Por um lado, há o sofrimento por um sintoma, aquilo que Freud (1912/2006) chama de ego-distonia. Por outro, haveria um sofrimento por um distanciamento ao ideal. Ambos são sofrimentos neuróticos, e apenas nos servirão para exemplificarmos as formas de sofrimento produzidas por duas educações diferentes.

Sofrer por um sintoma é sofrer, pois "há algo em mim que é mais forte que a minha vontade", ou, nas falas de uma paciente obsessivo, "algo em mim me obriga a fazer aquilo que não quero". Ou seja, é sofrer quando há algo em si que resiste a essa unificação imaginária do eu. Há um outro em mim, que eu não consigo integrar em mim mesmo. Chamamos isto de ipseidade.

Sofrer por um ideal é sofrer por não estar em consonância com uma imagem de si dada pelo outro. "Quando se imagina próximo do sujeito ideal pode sentir-se, como de hábito se sente, satisfeito e realizado; quando se imagina afastado, pode experimentar aflição, insatisfação" (Costa, 2003, p. 94). Tudo se passa como se o sujeito, já provido de uma imagem de si, comparasse-a com a do tipo psicológico ideal, tendo como produto satisfação ou insatisfação.           

Concluímos assim que sofrer por um sintoma nos indica um quadro psicopatológico, estrutural, formado no primeiro tempo lógico da educação. Sofrer por um ideal nos remete também a um sofrimento, mas de outra ordem, que nasce da inevitável institucionalização de padrões psicológicos de um grupo social, provenientes da "educação psicológica". É nesse sentido, que podemos dizer que a "educação psicológica" produz um tipo de sofrimento peculiar, que pouco tem a ver com psicopatologia.   

 

Educar e Tratar

Conforme apresentado anteriormente, para Jurandir Freire Costa (2003) a educação não produz saúde mental, apenas reproduz a ordem social, criando e promovendo tipos psicológicos ideais. Segundo o autor, nenhuma forma de "educação psicológica" é capaz de interferir em formações sintomáticas. Ele aponta inclusive que as inúmeras tentativas de articulação entre educação e saúde mental – Liga Brasileira de Higiene Mental, Bruno Bettelheim, Vera Schmidt, Anna Freud – na prática, restringiam-se a "transmitir conhecimentos psicológicos às crianças" (p. 65). 

No campo das pesquisas sobre Psicanálise e Educação, diversos trabalhos que partem de premissas semelhantes às de Costa, percorrem caminhos que os levam a hipóteses contrárias às do autor. Eles mostram que a educação pode ter efeitos sobre a constituição psíquica, ainda que depois do primeiro momento, de constituição do sujeito (Kupfer, 1999, 2000; Petri, 2000).

Tais trabalhos, entretanto, não se restringem a aplicar ao cotidiano escolar um vocabulário psicanalítico, ou ainda colonizar o campo da educação com práticas psicológicas e psicologizantes. Partindo de uma posição crítica com relação aos limites da articulação entre psicanálise e educação, e vacinados contra certa ingenuidade quanto aos alcances da psicanálise, esses autores não estão em busca de prevenir sintomas ou "desneurotizar" através da educação. Por outro lado, conseguem identificar na instituição escolar, referência de transmissão da cultura em nossa sociedade, e no ato educativo – que se difere do discurso pedagógico – efeitos de sujeito, que modificam os modos de relação com o Outro.

Quando adentramos o campo das psicoses, por exemplo, são inúmeros os trabalhos que indicam os efeitos terapêuticos da educação. Jerusalinsky (1997, citado por Kupfer, 1999), aponta que a ida das crianças psicóticas à escola pode contribuir para a estabilização de crises, em função de certo lastro no mundo simbólico que a escola pode fornecer. Devido ao reconhecimento social que a instituição escolar possui e às possibilidades que essas crianças têm de aprender, freqüentar uma escola pode provocar modificações na relação da criança com o Outro. Essa instituição pode fornecer para o psicótico um lugar simbólico da infância, ao qual ele pode se colar e utilizar como referência. Kupfer (1999) nos aponta que a aprendizagem da escrita, por exemplo, pode funcionar como um modo de a criança psicótica – que possui falhas no registro simbólico e imaginário – fazer borda ao real. Para a autora, a simples ida das crianças psicóticas à escola, pode lhes certificar um lugar simbólico no mundo, o lugar de criança. Em se tratando de crianças que não possuem o significante Nome-do-Pai amarrando os três registros, tomar a escola como ponto de referência para sua circulação no mundo, modifica a relação do sujeito com o Outro, ainda que não modifique a estrutura psicótica.

Em seu trabalho "Uma educação para o sujeito", Kupfer (1999) nos apresenta a proposta de trabalho denominada Educação Terapêutica. Para a autora, os conteúdos transmitidos na escola têm como efeito a produção de identificações, capazes de provocar giros discursivos que modificam a posição do sujeito. Ou seja, também para crianças neuróticas, a transmissão dos conteúdos escolares pode produzir quebra de cristalizações e ofertar novas formar de estar no mundo. Assim, a escola não produziria efeitos de sujeito apenas para crianças psicóticas, mas em todos os alunos. Ainda que a educação não seja capaz de "desneurotizar" ou "despsicotizar" sujeitos, podemos identificar no ato educativo efeitos terapêuticos.

Nesse momento, é preciso que se faça uma advertência. Entendemos que não é função da educação haver-se com os sintomas do sujeito, mas é seu papel apresentar àquele que é novo no mundo, as formas do viver disponíveis na cultura. Quando ensinamos história ou ensinamos a ler e escrever, por exemplo, estamos colocando à disposição da criança instrumentos criados culturalmente, que nos auxiliam a lidar com a falta e com as vicissitudes do campo do humano. Nesse sentido, "escola" tem haver com "saúde mental", ainda que para alcançarmos esse efeito, o educador tenha que estar bem posicionado em seu lugar social e isento do fardo de ser "produtor de saúde mental".

De acordo com Lajonquière (2006), "educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem à criança conquistar um lugar de enunciação no campo da palavra e da linguagem, e a partir da qual seja possível lançar-se nas empresas impossíveis do desejo". Ou seja, para esses autores, não se trata de dizer aos educadores como devem proceder em sala de aula, como devem se relacionar com seus alunos, ou como esses devem se comportar para serem "saudáveis" (crítica do Jurandir à educação psicológica). Trata-se de pensar que verdadeiros atos educativos podem produzir efeitos para o sujeito, independente de sua posição na linguagem (neurótica, perversa ou psicótica).

Assim, encerramos esse trabalho, deixando nossa contribuição para a discussão Psicanálise e Educação, mas sabendo que muito ainda tem que ser feito tanto no sentido de precisar melhor os conceitos, quanto de avaliar as consequências práticas dessa proposta da Educação Terapêutica, tanto para a educação quanto para a psicanálise.

 

Referências Bibliográficas

Costa, J. F. (2003). Saúde mental, produto da educação? In Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.

Freud, S. (2006). Sobre los tipos de contracción de neurosis. In Obras completas, v. 12 (J. L. Etcheverry, Trad.). Buenos Aires: Amorrortu (trabalho original publicado em 1912).

Freud, S. (2006) Análisis terminable e interminable. In Obras completas, v. 23 (J. L. Etcheverry, Trad.). Buenos Aires: Amorrortu (trabalho original publicado em 1937).

Jerusalinsky, A. (2001). Seminário 1. São Paulo: Universidade de São Paulo e Lugar de Vida.

Kupfer, M. C. M. (1999). Uma educação para o sujeito: Desdobramentos da conexão Psicanálise-Educação. Tese de livre-docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Kupfer, M. C. M. (2000). Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento. Salvador: Ágalma.

Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lajonquière, L. (2006). A infância, a escola e os adultos. In Anais do 5º Colóquio do LEPSI IP/FE-USP. São Paulo. Obtido em 27 de setembro de 2010: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100003&lng=es&nrm=iso>.

Mariotto, R. M. M. (2009). Cuidar, educar e previnir: as funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo: Escuta.

Miller, J.-A. (2002). Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Petri, R. (2000). O lugar do profissional no tratamento institucional da criança psicótica: analista ou educador? Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

 

 

1 A disciplina "Psicologia e Educação: limites e alcance de uma integração" foi ministrada pela Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer, no primeiro semestre de 2010, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Esta ilustração tem sua vantagem em marcar bem essa dependência que a criança tem relação à mãe para o acesso ao terceiro. No entanto, sua desvantagem está em que a criança, de algum modo, já reconhece que o adulto que a aborda é um estranho, ou seja, não é um prolongamento da relação mãe-bêbe.