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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O sintoma e seus desdobramentos na criança e na estrutura familiar

 

 

Vanessa Rossaka

 

 

Este trabalho provém de questionamentos a cerca de um caso atendido no ambulatório do Serviço de Psiquiatria e Psicologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no qual cursei, durante o ano de 2010, o Programa de Aprimoramento Profissional "Psicologia Hospitalar em Instituição Pediátrica".

Cabe ressaltar que este trabalho não pretende esgotar todos os desdobramentos do caso, pois considero que para isso seria necessário um maior detalhamento teórico e clínico, além de mais alguns passos em minha formação como psicanalista.

 

Recorte do caso clínico

Paula foi encaminhada ao Serviço de Psiquiatria e Psicologia (SPP), pela equipe de Reumatologia, devido à instabilidade de humor, dificuldade de aceitar a doença e de tomar os medicamentos. Os sintomas apresentados por Paula, aos seis anos, foram conclusivos para um diagnóstico médico: dermatopoliomiosite, uma doença crônica, rara em crianças, sem causa ou cura conhecidas e que se caracteriza pela inflamação da pele e dos músculos (Sociedade Brasileira de Reumatologia).

Paula também foi encaminhada à fisioterapia e hidroterapia e iniciou um tratamento medicamentoso especifico, com administração de gamaglobulina e corticóide.

Os primeiros sintomas da doença de Paula surgiram cerca de quatro meses antes do encaminhamento ao SPP, porém, um agravo nos sintomas ou um novo sintoma havia surgido recentemente: Paula não conseguia mais andar e precisava usar cadeira de rodas.

Desde o início, diferentes personagens da família de Paula compareciam nas entrevistas, a posteriori, pode-se considerar que houve uma repetição, no tratamento psíquico, do que acontecia em relação aos cuidados de Paula. Cada um desses personagens queixava-se dos demais e me contava partes da história pregressa de Paula, que eu precisei ir montando, como um quebra-cabeça.

Os pais de Paula, Juliana e Pedro, namoravam há aproximadamente um ano, quando Juliana descobriu a gravidez. Aos quatro meses de gestação, Pedro terminou o namoro com Juliana e lhe contou que tinha outra namorada, que também estava grávida, mas de um menino, e que ele havia decidido "ficar com eles" (sic). O término deste namoro tornou-se bastante conflituoso, com diversos episódios de discussões entre eles.

Paula nasceu e, desde então, seus cuidados foram compartilhados entre sua mãe, avós e tias maternas, mas distante de seu pai e da família paterna.

Aos três anos Paula vivenciou duas mudanças importantes: conheceu seu pai e sua mãe casou-se novamente.

Pedro começou a buscá-la aos finais de semana, quinzenalmente, para ficar com ele, sua esposa e seu filho. Paula relatava muito ciúme de seu meio-irmão e madrasta, dizendo inclusive "meu pai não quis ficar comigo para ficar com eles" (sic), assim, quando estavam todos juntos havia muitas brigas e certa competitividade entre eles, como se disputassem à atenção de Pedro. Os cuidados dispensados à Paula, mesmo antes do surgimento dos sintomas, geravam muitas discussões entre Pedro e Juliana.

Juliana mudou-se para a casa de seu esposo e Paula, apesar de ter seu quarto nesta nova casa, continuou "ficando" (sic) na casa das avós ou tias. Nessa nova família também havia outra criança, enteada de Juliana, que ficava aos finais de semana, quinzenalmente, com eles e Paula.

Que lugar tinha Paula então?

O discurso familiar sugere que Paula não tinha um lugar estabelecido, uma tia chega a dizer que "Paula não é de ninguém, não mora com ninguém, ninguém cuida de Paula!" (sic).

O compartilhamento dos cuidados de Paula entre esses inúmeros personagens gerava diversos conflitos desde seu nascimento, que se agravaram com o surgimento da doença de Paula. Parecia até um jogo de batata-quente...

Minha primeira hipótese quanto ao surgimento dessa doença é de que Paula precisava de atenção e cuidados e que foi através do acometimento no corpo que tentava reivindicar um lugar para si!

Nas sessões com Juliana e Paula era possível observar que Paula, por vezes, repetia as falas de Juliana, principalmente as queixas de Juliana sobre Pedro, como numa tentativa de não desagradar Juliana.

Entretanto, nos atendimentos individuais, Paula, aos poucos, começou a relatar diversos episódios de conflito entre seus familiares, principalmente entre seus pais, e falar sobre sua dificuldade em se posicionar frente a estes conflitos.

Paula relatou duas situações em que havia caído, uma com seu pai e outra com sua mãe e questionou-se "porque é que eu posso cair com minha mãe e não com meu pai?" (sic), esse questionamento remete à relação de Paula com sua mãe e com seu pai e, ainda, sobre a relação entre eles.

No atendimento seguinte Paula, ao falar sobre sua vontade de não ir para a casa de seu pai, por causa da sua madrasta e irmão, conta o seguinte episódio: em um sábado pela manhã ela disse à sua mãe que não queria ir à casa de seu pai, pois estava com muita dor, ao que sua mãe, segundo ela, respondeu "finge que não consegue mais andar então, assim ele não te levará a força" (sic), Paula continuou: "foi depois disso que não consegui mais andar" (sic).

Paula continuou falando sobre a sua relação com seus pais e com os outros personagens dessa trama familiar e questionando-se sobre como se posicionar nessas relações.

Depois de alguns atendimentos Paula começou a apresentar melhoras significativas na sintomatologia, suas dores melhoraram e ela conseguia dar alguns passos sozinha. Há de se considerar todos os esforços envolvidos nessa melhora, desde os tratamentos realizados por diversos profissionais ao esforço da própria Paula.

Nesta sessão, ela demonstrou-se extremamente feliz, andou pela sala e me pediu ajuda para sentar ou levantar. E disse "eu estou conseguindo andar, agora vou poder escolher para onde quero ir" (sic), essa fala pode ser interpretada de várias formas, uma das possíveis é "agora posso decidir se eu vou querer ir ou não à casa de meu pai".

Paula continuou a se questionar sobre o que podia fazer diante dos conflitos entre seus pais e, numa outra sessão, disse "eu sou só uma criança, ainda não consigo decidir com quem quero ficar. Não queria mais ter que pensar nisso, ter que resolver essas coisas" (sic) e relatou o quanto temia magoar sua mãe dizendo que gostava de seu pai; temia também que Juliana a chamasse de fingida e deixasse de amá-la.

Pode-se considerar que o significante fingida marcou a relação entre Paula e Juliana, pois sempre que Paula esboçava alguma tentativa de dizer à Juliana sobre sua vontade de ficar com seu pai, segundo Paula, Juliana dizia "então vai lá ficar com seu pai, você só finge que me ama, mas você ama só ele" (sic). Além disso, este mesmo significante aparece na fala de Juliana "finge que não consegue mais andar então" (sic).

No que compete ao trabalho empreendido comigo, considero que Paula, ao falar sobre as questões que lhe causavam sofrimento, pode deixar de utilizar o corpo como meio de expressão, isto é, houve uma passagem do corpo à fala, uma passagem do sintoma-queixa a um sintoma-analítico, a formulação de um enigma, de um questionamento implicado. Paula começa a questionar-se sobre o que fazer e relatar as dificuldades em tomar essa decisão, que para além de "com quem ficar" parece marcar "o que querem de mim?".

Neste momento irrompeu uma seqüência de faltas. Entrei em contato diversas vezes, sem êxito. Num destes contatos, sua tia materna disse que Juliana não queria mais trazer e nem que ninguém mais trouxesse Paula aos atendimentos; em outro contato, com o padrasto, ele relatou que Paula estava "caindo de novo" (sic) e que o quadro clínico estava se agravando. Quando consegui falar com Juliana, ela relatou que não ninguém mais tinha tempo para trazer Paula, e também relatou as quedas de Paula, que relacionou apenas com a interrupção da medicação.

 

Uma leitura possível

Pode-se considerar que a medicina e a psicanálise distinguem-se na compreensão do sintoma e, consequentemente, naquilo que propõe à família diante das queixas e demandas trazidas nos atendimentos iniciais.

Para a medicina o sintoma é um conjunto de sinais que indicam uma doença (Lamberte, 2004), é um recorte que o médico faz daquilo que o paciente lhe traz, e é a partir deste conjunto de sinais que os médicos elaboram o diagnóstico e a terapêutica a ser utilizada em cada caso. Cabe ressaltar, no entanto, que a medicina os estabelece a partir de um saber constituído, ou seja, em alguns casos, busca e apresenta um saber exterior aos pais e à criança e oferece acesso a um paraíso medicamentoso, exercendo uma "função silenciadora" (Clavreul, 1983) que pode suturar o sintoma enquanto manifestação própria e inconsciente, como proposto pela psicanálise.

O sintoma para a psicanálise é uma manifestação própria e inconsciente, substituto de uma satisfação pulsional recalcada e resultado do recalque (Lamberte, 2004), assim, para ter acesso ao sintoma o analista deixa em suspenso qualquer saber prévio e busca conhecer aquilo que poderá surgir como construção de um saber próprio do sujeito, através do dispositivo analítico.

No recorte deste caso pode-se verificar a presença de sintomas bastante diferentes, como aqueles identificados pela equipe médica, pela mãe, pai, padrasto e tias, além daquele nomeado pela própria Paula.

É importante destacar que, assim como em diversos casos relatados por Faria (1998 e 2004) não se trata de um sintoma "verdadeiro" e outro "falso", pois há verdade em todos estes sintomas: a verdade do sujeito que o traz em seu discurso, um recorte sempre subjetivo.

Para a autora o analista deve deixar em suspenso os sintomas trazidos pelos pais, para que possa emergir no discurso da criança um sintoma próprio. Considero possível estender esta indicação ao sintoma indicado pela equipe de saúde, ou seja, é preciso deixar em suspenso o que a equipe considera como sintoma que justifique o trabalho analítico, para que possam surgir as particularidades do vínculo dos pais com a criança, os sintomas identificados pelos pais e o sintoma próprio da criança.

Faria (1998) diferencia o sintoma como na e da criança: o sintoma na criança é aquele atribuído à criança no discurso parental, isto é, é o que os pais podem recortar da história, do discurso e dos sintomas apresentados pela criança e sintoma da criança aquele cuja própria criança nomeia, que justifica sua entrada em análise.

Segundo Faria (2010) há, na relação entre pais e crianças, de um lado, a oferta de um lugar, de uma posição, de uma função e, do outro, um sujeito que responde a essa oferta, que ocupa ou não esse lugar. A autora resgata as contribuições de Nominé (1997) e Sauret (1997) a cerca da decisão do sujeito, sem deixar de considerar aquilo que é da ordem dos pais e indica que o analista deverá atentar-se ao que se passa na singularidade do vínculo de cada um dos pais com a criança.

Moretto (2001, p. 91), ao tratar o sintoma para a psicanálise e a medicina, destaca que para Lacan "o sintoma é feito para o Outro na medida em que ele é uma resposta possível ao que o sujeito interpretou como sendo o desejo do Outro".

A partir deste referencial é possível considerar que há um enlace entre a subjetividade da Paula, a de seus pais e destes outros personagens.

Como já dito, minha primeira hipótese é de que diante desses cuidados compartilhados, dessas cenas de conflito familiar, das falas ameaçadoras e do medo de perder a mãe ou o pai, Paula produz, inconscientemente, tais sintomas no corpo, que os "obrigam" a cuidar dela, ou seja, essa doença seria uma forma de Paula reivindicar os cuidados e atenção que precisava.

Há de se considerar também o lugar oferecido à Paula, que me parece um lugar marcado por gerar diversos conflitos; oferta a que Paula, naquele momento, respondia, ocupando esse lugar.

A fala de Juliana "finge que não consegue mais andar então, assim ele não te levará a força" (sic) pode ser entendida como uma oferta de Juliana à Paula, oferta à que Paula responde com a produção, inconsciente, de um sintoma no corpo, ou seja, pode-se considerar que este sintoma remete à singularidade do vínculo existente entre Paula e seus pais e que é, então, "feito para o Outro" (Moretto, 2001, p.91), é uma resposta ao que Paula interpretou, inconscientemente, como sendo o desejo do Outro, neste caso, sua mãe.

É possível hipotetizar que se torna possível para Paula, ao utilizar significantes e nomear seu sofrimento, esboçar ressignificações do lugar que a doença ocupa para ela, na relação dela com sua família e na própria estrutura familiar. Ao longo do trabalho com Paula ela pode construir uma questão própria e formular uma demanda própria de análise, vacilando entre aproximação-distanciamento das queixas trazidas pelos familiares, assim como dos sintomas que revelavam os conflitos familiares ou parentais e seus próprios sintomas.

Pode-se considerar, ainda, que esse reposicionamento de Paula teve efeitos nessa estrutura familiar, o que pode ter contribuído para a interrupção do trabalho analítico. Não há como saber o que aconteceu com Paula e sua família, pois ela não retornou à análise, porém, uma suposição possível, é de que houve uma tentativa de manter Paula nessa posição, alienada no desejo destes Outros.

 

Referências

Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense.

Faria, M. R. (1998) Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo: Hacker.

Faria, M.R. (2004) Das entrevistas preliminares aos tratamentos com crianças às entrevistas preliminares com a criança. Comunicação oral apresentada na Jornada de abertura de FCCL: A direção do tratamento na psicanálise com crianças. São Paulo, 05 de março de 2004.

Faria, M.R. (2010). Constituição do sujeito e estrutura familiar: o Complexo de Édipo, de Freud a Lacan. Taubaté: Editora Cabral.

Lacan, J. (1969). Nota sobre a criança. In: Lacan J. (Org.) Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.

Lamberte, M.T.M.R. (2004). Fenômeno Psicossomático. In: Marcondes, E., Vaz, F. A., Ramos, J. L., Okay, Y. Pediatria Básica - Tomo I - Pediatria geral e neonatal. São Paulo: Sarvier.

Moretto, M.L.T. (2001) O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo.