An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002
A comunicação, a informação como possibilidade de redução da assimetria entre o profissional da saúde e o cliente
Communication, the information as a possibility for reducing the asymmetry between the health professional and the client
Narciso Vieira SoaresI; Valéria Lerch LunardiII
IEnfermeiro, Mestre em Enfermagem, Professor do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI Campus de Santo Ângelo - RS. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem Saúde e Educação (GEPESE/URI)
IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Adjunto IV do Departamento de Enfermagem da Fundação Universidade Federal do Rio Grande FURG. Pesquisadora do CNPq
RESUMO
A partir da constatação de relações verticais, autoritárias e paternalistas dos profissionais de saúde com os clientes, realizamos um aprofundamento teórico acerca das questões da ética e dos direitos do cliente no cotidiano do trabalho da enfermagem, apoiando-nos em autores que vêm abordando tais temas sobre diferentes ângulos. Neste texto abordamos, especificamente, a importância da comunicação e da troca de saberes como um instrumento para a redução de relações assimétricas entre os profissionais de saúde e os clientes.
Palavras-chave: comunicação, ética, direito do cliente
ABSTRACT
On the basis of the perception of paternalistic, authoritarian and vertical relations between health professionals and customers, we made a more thorough theoretical study about the ethics and client rights issues in day-by-day nursing, supported by authors who have been approaching these subjects from different angles. In this text, we specifically approach the importance of communication and the exchange of knowledge as an instrument for reducing the asymmetrical relations between the health professionals and the clients.
Key words: communication, ethics, customer right
1 - INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, têm se verificado grande crescimento do saber na área biológica e avanços tecnológicos, os quais têm permitido, aos profissionais da saúde realizarem procedimentos, tanto invasivos como não invasivos com maior segurança. Apesar dos avanços na área do diagnóstico e do tratamento, relações mais simétricas entre clientes, profissionais da saúde e instituições, parece-nos ainda não terem avançado suficientemente. São muitas as situações do cotidiano profissional que demonstram a continuação de uma relação, predominantemente verticalizada, paternalista e autoritária.
Neste texto abordamos, especificamente, a importância da comunicação e da troca de saberes como um instrumento para a redução de relações assimétricas entre os profissionais de saúde e os clientes.
A autonomia do ser humano é considerada um direito nato, mediante a qual ele pode agir de acordo com sua vontade, fazer escolhas do que é melhor para si como um sujeito sócio-individual, ser sujeito histórico e não esperar, estar a mercê da concessão de benesses e da vontade dos outros. Ser autônomo significa ter liberdade de pensamento, sem coações internas ou externas, poder optar e decidir, entre as alternativas que dispõe, qual a que melhor lhe convém como um ser de relações.
O respeito ao sujeito autônomo deve pressupor que aceitemos o "pluralismo ético-social, característico de nosso tempo; é reconhecer que cada pessoa possui pontos de vista e expectativas próprias quanto a seu destino, e que é ela quem deve deliberar e tomar decisões seguindo seu próprio plano de vida e ação, embasada em crenças, aspirações e valores próprios" (Fortes, 1998, p. 39).
A ação do profissional da saúde deve ser orientada para o respeito à autonomia, à liberdade de escolha do cliente diante da situação que lhe é apresentada, tendo sempre presente que o corpo, a dor, a doença, pertencem a ele e, à medida que violarmos sua autonomia, estaremos tratando-o como meio e não como fim em si mesmo; na medida em que este cliente exercer sua autonomia, reconhecendo seus direitos e deveres, estará construindo, também, sua cidadania.
Na obra que aborda não apenas o cuidado com o corpo, mas o desenvolvimento da cidadania, através de uma consciência democrática, liberta, responsável e reflexiva, tanto do profissional como do cliente, Gauderer (1995, p.14) considera que: "a nossa postura é, por formação e também, por força do ofício, autoritária, dogmática, paternalista, e está se tornando mais flexível, democrática e de parceria com o paciente e a comunidade, devido às mudanças ocorridas no cidadão". Apesar de já serem observadas algumas mudanças nessas relações, principalmente nos grandes centros, nos quais os questionamentos bem como as pressões da coletividade são maiores, o que têm exigido dos profissionais da saúde uma postura mais democrática, esta não parece ser a tônica dominante, tendo em vista as múltiplas diferenças regionais e culturais do país. Essa relação de poder, paternalista, ainda prevalente nos dias de hoje, vem sendo reproduzida ao longo da história, entre os profissionais de saúde e os clientes, nos serviços de saúde e nas sociedades em geral.
Foucault (1990) resgata, metaforicamente, o que denomina de "Poder Pastoral", ou seja, o poder do pastor sobre suas ovelhas e o rebanho como um todo para favorecer o entendimento de muitas das relações paternalistas, presentes nas sociedades modernas, tanto na relação do Estado com a população e os indivíduos, como em especial, no exercício da medicina, na família, nas sociedades beneficentes, entre outros, que se encontram bastante articuladas. Nesta relação desigual, o pastor se reconhece como responsável por suas ovelhas e pelo rebanho, de quem exige obediência, a exposição de si, da sua vida, assim como a negação de si. De modo semelhante, muitas das relações que se dão entre os homens e, em especial, entre os profissionais da saúde e os clientes, também, se fazem, de modo desigual, aparentemente, sem reconhecer seus diferentes saberes, histórias, modos de ser e de viver. Na maioria das vezes, ainda, muitos profissionais, reconhecendo-se como responsáveis pelo cliente, decidem sem consultá-lo, acreditando, de modo autoritário, que são os que sabem o que é melhor para ele e que estão, talvez, agindo de um modo adequado e aceitável.
A obediência, predominantemente exigida pelos profissionais da saúde em relação aos seus clientes, dá-se mediante o estabelecimento de relações de dependência do cliente para consigo. O profissional, freqüentemente, de posse da informação, do conhecimento técnico-científico, tem exigido obediência, por parte dos clientes, para suas prescrições e orientações, visando à modificação de seus hábitos, como aparente pré-requisito para melhorar e assegurar a sua saúde.
As diferenças de saber, culturais, históricas e sociais, assim como a sua comunicação, concretizada através de uma linguagem técnica utilizada pelos profissionais da saúde, podem ser destacadas como possíveis barreiras para o entendimento do cliente.
Diversos fatores, então, têm contribuído para manter o cliente nessa relação de dependência para com o profissional da saúde; dentre outros, podemos citar: a falta de informação sobre seu próprio processo saúde-doença; as diferenças de saberes e de linguagem entre o cliente e o profissional, sem que seja feito um esforço mais significativo, por sua parte, no sentido de modificar esta relação assimétrica; a estrutura organizacional das instituições de saúde, bem como do Sistema Público de Saúde que, embora assegure, constitucionalmente, os princípios de universalidade de acesso, integralidade da assistência, eqüidade, participação popular e controle social do sistema e das políticas de saúde, na prática, mostra-se paternalista, discriminador, especialmente, das classes menos privilegiadas. Podemos perceber o descaso do sistema sócio-político e econômico, para com o setor da saúde, evidenciado pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde, pela insuficiência de recursos financeiros destinados a esta área, pelo baixo investimento em recursos humanos.
2. A COMUNICAÇÃO A TROCA DE SABERES COMO UMA POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DA ASSIMETRIA ENTRE O PROFISSIONAL DA SAÚDE E O CLIENTE
Percebemos a informação como elemento fundamental no processo de autonomia do cliente. Entendêmo-la como a mensagem que concretiza a comunicação entre as pessoas, ou seja, a passagem, a expressão, a transmissão de um saber, de um fato ou de um sentimento, podendo efetivar-se numa relação direta, pessoa-pessoa, num ato de compartilhamento de mensagens enviadas e recebidas; um intercâmbio de informações através da interação, em que o cliente e o profissional, compartilhando suas experiências, anseios e dúvidas, buscam "ser mais" [ O ser mais, para Freire (1980), é o processo no qual o homem, refletindo sobre seu estar no mundo e com o mundo, conhecendo-se a si, identificando suas limitações e aquelas que se impõem à sua ação, procura formas de vencê-las. Já, para Paterson & Zderad (1988), o ser mais é o processo do ser humano construído através do relacionamento consigo mesmo e com os outros, para tornar o seu viver mais humanamente possível] em suas relações. Na prática, percebemos que, muitas vezes, essas informações vêm sendo sonegadas por profissionais, envolvidos em múltiplos afazeres, exercendo funções que, necessariamente, não são suas, alegando não dispor de tempo suficiente ou, quem sabe, não priorizando esse momento de interação, de troca de experiências e de informações.
Por outro lado, o saber do cliente sobre si, sobre sua vida, seu modo de se cuidar, seu problema vivido, freqüentemente, também, não tem se constituído em mensagem a ser transmitida aos profissionais de saúde, não tem encontrado espaço para ser veiculado, seja por "falta" de tempo, de interesse, de reconhecimento do seu valor e importância. A troca de saberes, a comunicação, a informação ao cliente pode ser veiculada através do diálogo, da interação, pois, segundo Freire (1980, p. 82), o diálogo "é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. É o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial". À medida que os homens problematizam e refletem sobre sua prática cotidiana, tendo consciência de si e da realidade que os cerca, reconhecem que, para transformá-la, necessitam comunicar-se com outros homens, trocar idéias, ouvir opiniões, considerar que não temos verdades absolutas e que, por vezes, podemos estar equivocados.
A nossa ação profissional deve favorecer, ao cliente, a busca e a valorização do conhecimento de si, da sua realidade, através da informação, da orientação, porque, quanto mais informado estiver o cliente, mais opções terá de escolhas para decidir o que é melhor para si. Gauderer (1995, p. 12) considera que a informação "é a base da decisão, do julgamento e da ponderação. A informação amadurecida pela vivência e pela experiência nos permite transcender a liberdade, proporcionando-nos um estado de interdependência com as pessoas e o mundo à nossa volta, relação esta de igualdade, autonomia e liberdade".
A informação, na visão de Gauderer (1995), é um direito inalienável do cidadão, ou seja, o homem, para ter a sua condição de cidadão reconhecida, a princípio, requer o direito total e ilimitado de saber tudo o que diz respeito a si, sobre seu corpo, sua saúde e sua doença, uma vez que "esse corpo, essa saúde ou essa doença lhe pertencem", e não ao profissional que o atende. Ao ser atendido pelo profissional de saúde, permite-lhe lidar consigo, "mas não lhe outorga necessariamente o direito de, unilateralmente, decidir por ele" (Gauderer 1995, p.47).
Por sua vez, a desinformação faz com que muitos fiquem sem entender o que o profissional está lhes propondo e por não entenderem a complexidade do que pode estar lhes ocorrendo, o caminho mais fácil é aceitar passivamente, sem questionar o que lhes é oferecido. Para finalizar, entendemos que a informação pode estar sendo utilizada como exercício de poder por parte dos profissionais da saúde frente aos clientes. O apelo à sua obediência do cliente pode ser identificado na prática cotidiana nos serviços de saúde, em geral, por exemplo, quando temos como objetivo da educação para a saúde, alcançar a sua mudança de comportamento, alterações nos seus hábitos de vida, no seu modo de viver "sem um processo de convencimento e entendimento racional que possibilite uma decisão prévia sobre o cuidado de si" (Lunardi, 1997, p. 253).
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O reconhecimento do cliente, como sujeito autônomo e não mais como um objeto passivo a mercê do cuidado dos outros, deve ser buscado na prática da enfermagem, pois assim estaremos favorecendo a sua "independência e a sua libertação, estimulando a participação real e efetiva dos sujeitos na expressão das suas necessidades em relação à saúde, nas tomadas de decisão sobre o cuidado e o tratamento em si e nas lutas e reivindicações a favor dos seus direitos como cidadãos" (Lunardi, 1997, p.295).
É preciso destacar, no entanto, que, cada vez mais, os enfermeiros preocupados e inconformados com este processo de "coisificação" das pessoas, tanto dos clientes como, possivelmente de si próprios, por se sentirem impotentes para alcançar maiores rupturas neste vivido, têm optado por direcionar seu olhar crítico, investigador e de estudo para o cotidiano de sua prática. Tais exercícios têm se feito numa tentativa de, externamente a este processo, problematizá-lo, analisá-lo teórica e filosoficamente, apontando e sugerindo possibilidades de fissuras como estratégias de fortalecimento de uma categoria profissional, comprometida consigo e com os direitos daqueles que buscam os seus cuidados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FORTES, P. A. de C. Ética e saúde. São Paulo: E.P.U., 1998.
2. FOUCAULT, M. Tecnologias do eu. Barcelona: Ibérica, 1990.
3. FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação uma introdução ao pensamento dePaulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980.
4. GAUDERER, E. C. Os direitos do paciente: um manual de sobrevivência.5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.
5. LUNARDI, V. L. Do poder pastoral ao cuidado de si: a governabilidade na enfermagem. Florianópolis: 1997. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina.
Endereço para correspondência
Narciso Vieira Soares
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