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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

O princípio da neutralidade como estratégia de interação enfermeira – família

 

The neutrality principle as nurse - family interaction strategy

 

 

Sueli Ap. Frari GaleraI; Margarita Antonia Villar LuisII

IDepartamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Doutoranda em enfermagem do Programa de Doutorado Interunidades das Escolas de Enfermagem da Universidade de São Paulo. sugalera@glete.eerp.usp.br
IITitular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP

 

 


RESUMO

Dada a ênfase atual na questão da família, surgiu o interesse de trazer para a discussão o principio da neutralidade como estratégia de interação enfermeira – família. Este principio fundamenta a abordagem sistêmica da família em cuidados de enfermagem, que tem como principal instrumento a entrevista familiar. Procurou-se fornecer exemplos práticos que facilitassem a compreensão dos conceitos, bem como sua aplicabilidade.

Palavras-chave: família, relacionamento enfermeira-família


ABSTRACT

In view of the current emphasis on the family question, it became of interest to discuss the neutrality principle as nurse-family interaction strategy. This principle underlies the systemic approach to family nursing care, whose main instrument is the family interview . In this paper, we aimed to supply practical examples that could facilitate the understanding of the concepts as well as their applicability.

Key words: family, nurse-family interaction


 

 

Introdução

A família guarda uma relação de proximidade com a enfermagem, pois ambas são ligadas ao cuidado à saúde. Desde Florence Nigthingale a enfermagem reconhece a família como objeto de sua intervenção, no entanto, na maioria das vezes o foco da atenção da enfermagem tem sido o indivíduo. A inclusão da família no cuidado de enfermagem vem ocorrendo em diversas especialidades, com maior ou menor ênfase dependendo da época.

O contexto atual de assistência caracteriza-se por mudanças profundas em nossa maneira de pensar e praticar o cuidado à saúde, colocando a comunidade e a família no centro do nosso enfoque. A criação do Programa de Saúde da Família, a redução do tempo de internação, o incentivo para tratamentos ambulatoriais e para uma rede de suporte mais ampla e flexível na assistência a portadores de doenças crônicas, são exemplos de mudanças que tem exigido a inclusão da família no plano de cuidados.

A família, enquanto célula vital para a saúde humana, é o contexto dentro do qual evolui a saúde do indivíduo. Ela influencia de maneira significativa as crenças de seus membros, suas atitudes e seus comportamentos relativos à saúde e à doença. Hábitos como alimentação, uso de álcool e tabaco, a prática de exercícios físicos e a maneira de lidar com situações de estresse se desenvolvem dentro do contexto familiar (DUHAMEL, 1995).

Portanto, incluir a família como objeto da intervenção de enfermagem é atualmente uma exigência e um desafio. Diversos autores questionam se a enfermagem está preparada para enfrentar este desafio, porém, preparadas ou não, os profissionais da atualidade são colocados cada vez mais em situações de interação com a famílias (HARTRICK et al., 1993).

O objetivo deste trabalho é discutir um dos princípios básicos na interação enfermeira - família: o princípio da neutralidade; e oferecer exemplos práticos de sua utilização.

 

Definição do princípio

O princípio da neutralidade é adotado na abordagem do sistema famíiliar em enfermagem, desenvolvida por Lorraine M. Wrigth e Maureen Leahey na Unidade de Enfermagem Familiar da Universidade de Calgary (WRIGTH; LEAHEY, 2000).

Esta abordagem adota a família como unidade do cuidado e se inspira na Teoria Geral de Sistemas, na Teoria da Cibernética, na Teoria do Conhecimento elaborada pelo biólogo Humberto Maturana e seus colaboradores, em Conceitos de Enfermagem e da Terapia Familiar, principalmente nos trabalhos da "equipe de Milão".

A abordagem sistêmica da família em enfermagem reconhece que a relação entre a dinâmica familiar e uma problemática de saúde é complexa, sendo impossível distinguir claramente os efeitos diretos de uma sobre a outra. Pode-se porém, observar uma co- evolução, onde a dinâmica familiar influencia a evolução da problemática de saúde e esta, por sua vez, influencia a dinâmica da família que, sendo outra, irá interferir na evolução da problemática, num processo contínuo ao longo do tempo.

 

O princípio da neutralidade refere-se à necessidade da enfermeira ser imparcial frente ao sistema familiar

Segundo Tomm (1987) a neutralidade como um princípio da entrevista familiar é uma noção pouco compreendida, pois estritamente falando, é impossível permanecer absolutamente neutro. Apesar desta dificuldade, a neutralidade é importante na abordagem sistêmica, vejamos porque.

Na abordagem sistêmica a família é definida como um grupo de indivíduos vinculados por uma ligação emotiva profunda e por um sentimento de pertença ao grupo, isto é, que se identificam como parte daquele grupo. (WRIGHT et al., 1990).

Segundo Maturana e Varela (1995) toda entidade viva somente pode perceber, responder, pensar, acreditar e agir de acordo com os limites de sua estrutura única como um ser. A realidade descrita por uma pessoa não existe independente dela, pois é uma reformulação de sua experiência. Consequentemente, a realidade que cada membro da família descreve não é uma "realidade objetiva", mas sim uma realidade entre parênteses, pois é uma reformulação de sua experiência vivida.

Nesta perspectiva a neutralidade diz respeito ao interesse da enfermeira pela realidade de cada membro da família, pois ela entende que cada ser humano é único, sendo única também suas experiências em relação aos fenômenos saúde e doença.

Segundo Duhamel (1995) a enfermeira que acredita que a objetividade não existe além dos parênteses terá mais facilidade para manifestar sua neutralidade, pois ela não considera que existe uma "verdade", ou uma visão que seria a mais correta que a outra. Por isso, ela não julga que uma pessoa em particular seja responsável por um problema, ao contrário ela considera que é todo o sistema que mantém o problema.

Assim, ao interagir com a família a enfermeira deve ter uma atitude que reflita respeito e interesse pela "realidade" de todos os membros do grupo, de modo que cada um possa afirmar que a enfermeira não defende um membro em detrimento de outro.

Cechin (1987) defende que uma atitude de neutralidade é mantida pela curiosidade. A curiosidade convida a uma busca contínua de informações, que impedem a enfermeira de adotar uma descrição única do sistema analisado. A curiosidade permite também explicitar diferentes posições ou percepções dentro da família, as quais, muitas vezes, são desconhecidas do próprio grupo.

 

Exemplos práticos

A seguir apresentamos algumas situações vividas por nós em interações com famílias no Programa de Atendimento de Famílias que tem entre seus Membros um Portador de Esquizofrenia (GALERA; LUIS, 2001), nas quais o princípio da neutralidade pode ser observado.

Uma família composta pela paciente, sua mãe, o irmão da mãe e sua filha foi convidada a participar do Programa citado acima. Apesar do convite ter sido estendido para todo o grupo, compareceram aos encontros somente a paciente e sua mãe.

Com o objetivo de manter nossa curiosidade frente a todos os membros do grupo elaboramos as seguintes questões:

Para a paciente: Se o seu tio estivesse presente e eu perguntasse qual a preocupação dele em relação ao seu problema de saúde. Qual seria a resposta dele?

Para a mãe da paciente: Nas conversas da senhora e seu irmão, quais as dúvidas que ele expressa em relação ao problema de saúde de sua filha?

Estas perguntas, embora tratem da percepção da paciente e de sua mãe, permitiram colocar as pessoas ausentes (tio e prima da paciente) no contexto das entrevistas, indicando que as enfermeiras valorizam as opiniões de todos os membros da família.

Em outra família composta pela paciente, sua mãe, sua irmã e seu padrasto, atendidas no mesmo programa, a mãe da paciente nos colocou, desde o início das interações, que seu marido (padrasto da paciente) tinha uma opinião diferente sobre a doença da paciente. Por isso ela achava melhor que ele não participasse. Porém, em todos os encontros, o padrasto estava presente, permanecendo quieto.

Nossa estratégia nesta situação foi de solicitar a opinião do padrasto, procurando criar um espaço para que ele se expressasse. Tão logo sua esposa parava de falar sobre um determinado assunto, solicitávamos a opinião do marido sobre o assunto. No início, quando o marido começava falar, a mãe e as filhas riam ou iniciavam uma conversa paralela. Ao longo do tempo, estas reações foram diminuindo. Pode-se então trabalhar com duas opiniões diferentes sobre o problema de saúde da paciente, a opinião da mãe (o problema é uma doença difícil de controlar) e a do padrasto (o problema é rebeldia e a mãe deveria ser mais enérgica).

Duhamel (1995) sugere que as enfermeiras que se propõem a ajudar famílias com alguma problemática de saúde, devem convidar e estimular a participação do maior número possível de pessoas da família. É importante recolher a percepção de cada membro quanto ao funcionamento da família, pois são elas que influenciarão os comportamentos de cada um, assim como o funcionamento de todo o sistema familiar. A saúde familiar depende dessas percepções e deste funcionamento.

 

Considerações finais

As enfermeiras estão habituadas a coletar dados, identificar problemas e propor intervenções para seus pacientes e familiares. Estas tarefas geralmente estão centradas nas concepções que a enfermeira tem sobre necessidade e sobre o quê é melhor para o paciente. Assim, freqüentemente, as enfermeiras visam convencer os pacientes a adotarem certos comportamentos, acreditando que existe uma visão correta da situação.

Duhamel (1995) salienta que nessa concepção poderá ser difícil dar provas de neutralidade e de flexibilidade no início da relação com a família. É impossível ser curioso se existe a crença em uma única verdade.

 

Referências bibliográficas

CECHIN, G. Hypothesizing, circularity and neutrality revisited: an invitation to curiosity. Family Process, v.26, n. 4, p. 405-413, 1987.

DUHAMEL, F. La santé et la famille: une approche systémique en soins infirmiers. Montréal, Gaëtan Morin Editeur, 1995.

GALERA, S. A. F.; LUIS, M. A. V. Programa de atendimento na comunidade ao portador de esquizofrenia e sua família. Projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, 2001

HARTRICK, G. ; LINDSEY, A. E. ; HILLS, M. Family nursing assessment: meeting the challenge of health promotion. J. Adv. Nurs., v. 20, p. 85-91, 1993.

MATURANA R.. H; VARELA G, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas. Editorial Psy II,1995.

TOMM, K. Interventive interviewing: Part 1 strategizing as a fourth guideline for the therapist. Family Process, v. 26, n. 3, p. 3-13, 1987.

WRIGHT, L. M. ; LEAHEY, M. Nurses and families: a guide to family assessment and intervention. Philadelphia, F. A. Davis Company, Third edition, 2000.

WRIGHT, L. M., WATSON, W. L. & BELL, J. M.. The familiy nursing unit: a unique integration of research, education and clinical practice. In: J. M. Bell; W. L. Watson & L. M. Wright (dir). The cutting edge of family nursing, Calgary' Family Nursing Unit Publications, 1990.