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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Reflexões acerca da comunicação enfermeiro-paciente relacionada à invasão da privacidade

 

Reflections about nurse-patient communication with respect to privacy invasion

 

 

Jussara Simone Lenzi PupulimI; Namie Okino SawadaII

IProfessor Auxiliar da Disciplina Enfermagem na Saúde do Adulto do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá. Mestranda do Programa de Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). E-mail: jslpupulim@bol.com.br
IIProfessor Doutor do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da EERP-USP, Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem. Av. Bandeirantes, 3900. Ribeirão Preto – SP E-mail: sawada@eerp.usp.br

 

 


RESUMO

Este estudo tem por objetivo alertar os enfermeiros sobre como a invasão da privacidade pode dificultar a relação interpessoal enfermeiro/paciente. Destaca-se a importância da comunicação como instrumento facilitador do processo de interação, bem como a de atitudes e comportamentos que demonstrem respeito e consideração pelas características individuais de cada paciente. Ressalta-se a comunicação não-verbal como meio de transmissão de mensagens, por vezes mais expressiva e influente que a forma verbal. Concomitantemente, é necessário conquistar a confiança do paciente respeitando e protegendo a sua privacidade. Para tal, o enfermeiro deve ser capaz de captar as mensagens emitidas e de interpreta-las, procurando compreender as necessidades de cada indivíduo, a fim de estabelecer um relacionamento fundamentado na confiança e respeito mútuo. A enfermagem precisa aprimorar a sua comunicabilidade, que muitas vezes é um dom, mas pode e deve ser desenvolvida. Um processo de comunicação eficiente é imprescindível para a implementação de uma assistência de enfermagem de qualidade, personalizada e holística.

Palavras-chave: comunicação, relações interpessoais, privacidade, enfermagem


ABSTRACT

This study aimed at warning nurses about how the invasion of privacy can hinder nurse/patient interpersonal relations. We highlight the importance of communication as a facilitating instrument for the interaction process, as well as that of attitudes and behaviors demonstrating respect and consideration for the individual characteristics of each patient. Non-verbal communication is emphasized as a means of message transmission, which is at times more expressive and influential than the verbal form. Concomitantly, it is necessary to conquer the patient's confidence, respecting and protecting his privacy. To that end, the nurse must be capable of capturing and interpreting the produced messages, seeking to understand the needs of each individual in order to establish a relationship that is based on trust and mutual respect. Nurses must improve their communicability, which is frequently a gift, but can and must be developed. An efficient communication process is essential for the implementation of quality, personalized and holistic nursing care.

Key words: communication, interpersonal relations, privacy, nursing


 

 

Introdução

O ser humano está em constante interação e relacionamento com o mundo que o cerca, família, comunidade, trabalho, tradições, cultura, espiritualidade, ou seja, o contexto social onde vive. É através destas relações que o homem desenvolve sua consciência ética, definida por Gelain (1992) como sendo "a voz interna, o julgamento interior dos atos humanos". Portanto, o indivíduo traz consigo uma carga de valores morais e éticos que são apreendidos no decorrer de sua existência. Dentre estes valores, queremos destacar o direito e o dever ao resguardo da identidade e privacidade do indivíduo/cidadão, enquanto cliente e sujeito do processo de trabalho da enfermagem.

A privacidade tem sido considerada um importante componente de desenvolvimento e manutenção de sentido do "self". A habilidade para descobrir e selecionar informações que revelam o verdadeiro "self" contribui para o desenvolvimento de interações e relacionamentos. Ao mesmo tempo, a manutenção da privacidade permite ao indivíduo um sentimento de controle pessoal e expressão de autonomia, favorecendo a reflexão e auto-avaliação, além da liberação social e do contexto situacional para compartilhar informações pessoais. Portanto, a perda da privacidade pode ter sérias conseqüências para o indivíduo (Applegate; Morse, 1994).

Quando internados em instituições de cuidado à saúde, os pacientes reconhecem a dificuldade em manter a sua privacidade e individualidade, encarando a hospitalização como fator de despersonalização. Embora ações para proteger a sua intimidade sejam implementadas e vistas como importantes, alguns membros da equipe de saúde podem considerar inviável a sua preservação durante o exercício do seu papel e responsabilidades para a execução do trabalho.

Considerando especificamente a enfermagem, esta invadirá invariavelmente a privacidade do paciente durante a realização de alguns cuidados e procedimentos, como higiene corporal, sondagem vesical, entre outros. Por isso, concordamos com Glen e Jowlnally (1995) quando afirmam que o enfermeiro além de resguardar a privacidade do paciente, deve também auxiliá-lo a lidar com a perda da mesma. Mas como, efetivamente, o enfermeiro pode ajudar o paciente nesta circunstância?

 

Discussão

A condição de enfermidade e o internamento, que envolve inúmeros procedimentos, comprometem a independência do paciente e o controle sobre si mesmo, implicando em sentimentos como incapacidade, insegurança e impotência. Além disto, o paciente tem que dividir seu espaço pessoal, considerado por Bradley e Edinberg (1982) como o quarto, a cama e os objetos que o circundam, assim como os pertences pessoais. Ele compartilha seu espaço na enfermaria tanto com outros pacientes, quanto com visitantes e com a equipe de saúde que os assiste.

A natureza do relacionamento entre a equipe de saúde e os pacientes segundo Applegate e Morse (1994), requer pessoas que assumam a responsabilidade pelo cuidado das funções pessoais íntimas deles, sendo que muitas destas atividades de cuidado são freqüentemente executadas em áreas compartilhadas com outros pacientes na enfermaria. As autoras ressaltam que quando a interação é personalizada, os pacientes percebem que os membros da equipe são mais do que indivíduos responsáveis pelo cuidado. E sugerem que o diálogo, a troca de informações sobre temas em comum (esportes, trabalhos manuais, hobby, entre outros) pode ser a base para uma interação eficiente entre enfermeiro e paciente, a fim de estabelecer uma relação de confiança.

Kadner (1993) lembra que o enfermeiro é o profissional de saúde que permanece mais tempo com o paciente e enfatiza que atitudes como estar disponível, demonstrar sentimentos verdadeiros, encorajar um certo nível de intimidade, promoveriam uma comunicação e compreensão clara sobre os cuidados. Ressalta que a intimidade capacita o enfermeiro a compreender a personalidade do paciente e capacita o paciente a conversar sobre o que mais o incomoda. Mesmo quando a comunicação não é verbalizada, permite o desenvolvimento de um relacionamento terapêutico, fundamentado na confiança e respeito mútuo.

A comunicação como instrumento fundamental para a interação na área de enfermagem, vem sendo estudada por vários pesquisadores com o objetivo de melhorar a relação entre este profissional e o sujeito de seu trabalho. Alguns destes estudos referem-se à comunicação como veículo facilitador relacionado ao resguardo da privacidade dos indivíduos, uma vez que sua proteção está se tornando uma responsabilidade conjunta entre equipe de saúde e paciente, com independência e envolvimento, sendo promovida através de orientação e educação (Marr; Pirie, 1990).

É impossível imaginar o desenvolvimento das atividades de enfermagem sem uma comunicação eficiente, seja esta verbal ou não-verbal. A prestação da assistência de enfermagem vem exigindo, cada vez mais, que o enfermeiro desenvolva e aprimore esta habilidade com o intuito de promover uma relação de confiança, almejando facilitar a interação terapêutica.

Comunicação é o "processo pelo qual idéias e sentimentos se transmitem de indivíduo para indivíduo, tornando possível a interação social" (Michaelis, 1998). Esta definição reforça a necessidade de se investir nesta arte e dom que é comunicar, uma vez que é imprescindível para desenvolver o planejamento da assistência de enfermagem, orientar sobre cuidados e procedimentos, treinar para o auto-cuidado, entre outros. Para tal, corrobora-se com as funções da comunicação enumeradas por Arnold e Boggs (1989) que consistem em: conhecer a si mesmo e ao outro, estabelecer relacionamento significativo, examinar e estimular mudança de atitude e comportamento.

A finalidade dessa discussão é chamar a atenção dos profissionais de enfermagem e dos demais da área da saúde para a importância de se estabelecer um vínculo com o paciente comunicando-se com ele através de atitudes e comportamentos que demonstrem respeito pela sua privacidade. É intrínseca à natureza humana a necessidade de valorização dos seus princípios morais, das características pessoais, da identidade e da individualidade.

A equipe de enfermagem tem que estar ciente que a percepção do paciente sobre suas atitudes e comportamentos devem confirmar o discurso teórico, ou seja, o paciente percebe quando as manifestações não-verbais não são consonantes com as verbais. Ele observa as condutas e as reações do enfermeiro e quando estas não versam com o discurso, as palavras perdem o sentido. Isto gera insegurança, colocando em risco o processo de interação.

Ao observar as reações dos pacientes quando sentem sua privacidade ameaçada, ou mesmo invadida, percebem-se sentimentos como constrangimento, vergonha, embaraço, revolta. Por outro lado, demonstram satisfação e agradecimento através de expressões corporais ou verbais ao sentirem-se mais seguros quando a porta do banheiro é fechada, quando se colocam biombos durante a higiene corporal no leito, para a execução de procedimentos, ou mesmo quando seu estado clínico não é compartilhado com os demais pacientes da enfermaria. Isto acontece quando o respeito e a confiança são recíprocos nas relações entre a enfermagem e o paciente, condição necessária para o cuidado, e uma obrigação moral para quem, de algum modo, é responsável pelo bem-estar do outro.

O processo de cuidar envolve preocupação, dedicação envolvimento respeito, solidariedade e responsabilidade de quem cuida para com quem é cuidado. A demonstração de tais sentimentos por parte da equipe de enfermagem transmite segurança, favorecendo assim o relacionamento interpessoal. Quando a assistência é individualizada, os pacientes tendem a participar e colaborar com o processo de manutenção e recuperação da sua saúde.

A privacidade é um conceito abstrato e culturalmente definido, sendo dependente da situação. Portanto, as normas de privacidade definidas pela cultura dominante são redefinidas na relação profissional/cuidado entre o enfermeiro e o paciente (Applegate; Morse, 1994). Para que isto ocorra satisfatoriamente é importante conhecer a natureza física, cultural, espiritual, social e emocional do indivíduo, pois ele é um ser humano e como tal tem personalidade e dignidade.

Em concordância com Sawada (1995) ao ressaltar que a privacidade é uma necessidade e um direito do ser humano, sendo indispensável para a manutenção da sua individualidade, é importante lembrar que o paciente possui:

"o direito a atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte de todos os profissionais de saúde. Tem o direito a um local digno e adequado para seu atendimento.

o direito a manter a sua privacidade para satisfazer suas necessidades fisiológicas, inclusive alimentação e higiênicas, quer quando atendido no leito, no ambiente onde está internado ou aguardando atendimento"(Gauderer, 1998)

A enfermagem não pode ignorar que ao cuidar do paciente toca e expõe o seu corpo, sendo necessária em algumas situações, a nudez parcial ou total do indivíduo. Alguns estudos constataram que eles sentem desconforto, vergonha e constrangimento ao sujeitarem seus corpos despidos à ação dos enfermeiros (Pastore, 1995; Figueiredo; Machado, 1996, Silveira, 1997). Entretanto, a enfermagem parece "disfarçar" não perceber tais sentimentos, demonstrados em sua maioria através de manifestações não-verbais, como expressão facial e corporal, ou verbais, como recusar a higiene corporal alegando indisposição ou outro motivo.

Silveira (1997) ressalta que o "estar despido" é um fator a mais de estresse e sofrimento para o paciente, dificultando sua adaptação ao ambiente hospitalar, salientando que os enfermeiros apresentam falhas na proteção da privacidade dos pacientes. O enfermeiro precisa desenvolver habilidade para interpretar as diversas reações dos indivíduos, procurando compreender seus significados, para então poder intervir com a implementação de ações no sentido de ajudar o paciente a superar a perda da sua individualidade e privacidade.

Sabe-se que a maior parte das mensagens é emitida através da comunicação não-verbal, caracterizando a importância da enfermagem aprimorar sua comunicabilidade, uma vez que para prestar uma assistência holística, de qualidade, é necessário captar e compreender todas as mensagens transmitidas pelo paciente. Para que o processo de comunicação transcorra significativamente, é imprescindível que o enfermeiro conquiste a confiança e respeito dos pacientes, o que ocorrerá como resposta a atitudes de consideração, respeito e preservação da sua privacidade.

 

Considerações finais

A humanização do cuidar vem sendo enfatizada na prestação da assistência de enfermagem. Isto nos leva a refletir sobre a importância da comunicação como facilitadora no levantamento das necessidades do ser humano que está sob a responsabilidade da equipe de enfermagem.

Deste modo, ao realizar os cuidados o enfermeiro se aproxima do paciente, toca e algumas vezes expõe o seu corpo, ferindo o seu espaço pessoal e territorial, caracterizando como invasão da privacidade, o que gera ansiedade e desconforto. O enfermeiro tem que estar atento à manifestação destes sentimentos, demonstrar ao paciente que reconhece os seus direitos, como também, perceber qual a melhor forma de transmitir a ele que se preocupa com seus sentimentos e respeita sua individualidade.

Concorda-se com a colocação de Waldow (2001) ao apontar que as ações do cuidar propiciam a interação entre o cuidador e o ser cuidado, todavia esta interação vem tornando-se cada vez mais "impessoal, breve e formal", conseqüência da realização de procedimentos e cuidados de maneira mecanizada e rotinizada. Além disto, o avanço tecnológico e científico distanciam o enfermeiro do paciente, influenciando no tipo de relacionamento, em detrimento do conhecimento das características subjetivas do paciente.

Ao abordar a questão da privacidade no contexto da enfermagem, as colocações discutidas têm o propósito de provocar uma reflexão por parte dos enfermeiros acerca da importância de posturas e condutas que demonstrem preocupação com a intimidade e individualidade do paciente, respeitando os aspectos pessoais de cada indivíduo. Como afirma Barbosa (2000), "cuidar de pessoas significa uma vivência entre seres humanos, e em seu conteúdo estão incluídas as respostas humanas desses seres, tanto por parte de quem recebe quanto de quem presta o cuidado".

Palavras nem sempre expressam os sentimentos e as emoções das pessoas, que na maioria das vezes são mais evidentes através da expressão corporal e facial, ou seja, a comunicação não-verbal por vezes comunica com mais ênfase as necessidades e angústias do ser humano. Cabe ao enfermeiro, enquanto cuidador, buscar a compreensão das mensagens emitidas, o que, conseqüentemente, propiciará a efetividade das relações interpessoais.

 

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