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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Preparando a relação de atendimento - ferramenta para o acolhimento em unidades de saúde?

 

Preparing the service relationship - tool for the welcoming reception in health units?

 

 

Silvia MatumotoI; Silvana Martins MishimaII; Cinira Magali FortunaI; Maria José Bistafa PereiraII

IEnfermeira da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto. Doutoranda em Enfermagem em Saúde Pública do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
IIEnfermeira, Professora Doutora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Av Bandeirantes 3900 – CEP: 14040-901 smatumoto@uol.com.br; smishima@eerp.usp.br; cinirafortuna@yahoo.com; zezebis@eerp.usp.br

 

 


RESUMO

Tem-se por objetivo identificar e analisar aspectos pertinentes ao preparo para relação estabelecida entre trabalhador usuário em unidade de saúde da rede básica de Ribeirão Preto, tendo por perspectiva o acolhimento. Este é entendido enquanto processo, constituindo-se em um conjunto de atos executados de modos distintos no momento do atendimento. Tomou-se para o desenvolvimento deste estudo a perspectiva teórica do processo de trabalho em saúde segundo MENDES GONÇALVES (1992). Foram selecionados como instrumentos de aproximação ao empírico a observação participante e entrevista semi-estruturada.e, na etapa de análise dos dados, a análise temática. Identificou-se que para o acolhimento se processar há um "momento" de preparo do trabalhador, do seu espaço físico e das relações presentes no trabalho para que se dê o atendimento ao usuário, onde nem sempre são consideradas as necessidades do usuário que demanda aos serviços de saúde. Embora haja dificuldades quanto à disponibilidade de recursos, especialmente do setor público, é preciso nos determos para a preparação da relação serviço/usuário e trabalhador/usuário, buscando na estruturação do serviço, considerarmos os aspectos ligados a um relacionamento mais humano, mais acolhedor, uma vez que é no trabalho vivo em ato, nesta intercessão, que se configura a qualidade do atendimento.

Palavras-chave: processo de trabalho em saúde, acolhimento, espaço intercessor


ABSTRACT

This study aims to identify and analyze aspects pertinent to the preparation for a relationship established between workers and user at health units of the basic health services in Ribeirão Preto from the perspective of the welcoming reception. This is understood as a process, consisting of a group of actions executed in different manners in the moment of the service. For the development of this study, we adopted the theoretical perspective of the work process in health according to MENDES GONÇALVES (1992). To instruments to collection of data were selected the Participant observation and semi-structured interview were selected as research instruments, and thematic analysis was selected for analyzing data. It was identified that, for the welcoming reception to happen, there occurs a preparation "moment" involving the worker, the physical space and the relationships present at work with a view to user attendance, which does not always consider the needs expressed by the user towards the health services. Although there are difficulties with respect to resource availability, especially in the public sector, we have to stop for preparing the relationship service/user and worker/user, seeking to consider aspects linked up with a more human and welcoming relation in the structuring of the service, since it is in live, on-the-spot work, in this intercession, that the quality of care is configured.

Key words: work process in health, welcoming reception, intercession space


 

 

I. Apresentando o acolhimento

No trabalho em saúde, encontros únicos e singulares caracterizam seu desenvolvimento, ao que MERHY (1997) denomina do estabelecimento de espaços intercessores, espaços em que a subjetividade e as singularidades tanto do trabalhador como do usuário são expressas e que se configuram, portanto, na existência de momentos únicos, que demandam relações e intervenções específicas às necessidades expressas pelo usuário.

Neste estudo, as relações que serão aqui exploradas referem-se àquelas produzidas no contexto do Sistema único de Saúde - SUS, orientadas em princípio pela integralidade, universalidade, eqüidade e acessibilidade, em que se destacaram aspectos relativos ao preparo para a relação que caracterizaram o acolhimento em uma unidade de saúde do município de Ribeirão Preto.

Estamos considerando o acolhimento enquanto um processo, resultado de práticas de saúde, constituindo-se assim em um conjunto de atos executados de modos distintos no momento do atendimento. Com isto não estamos considerando o acolhimento apenas como recepção do usuário em um serviço de saúde qualquer, mas como ação de responsabilização do trabalhador pelo usuário durante sua permanência no serviço de saúde (MATUMOTO, 1998).

"O acolhimento na saúde, como produto da relação trabalhadores de saúde e usuários, vai além da ‘recepção, atenção, consideração, refúgio, abrigo, agasalho", do conceito do Aurélio. Passa pela subjetividade, pela escuta das necessidades do sujeito, passa pelo processo de reconhecimento de responsabilização entre serviços e usuários, e abre o começo da construção do vínculo. Componentes fundamentais para um reinventar a qualidade da assistência"(BUENO; MERHY, 1997, p.3)

Muito antes do encontro trabalhador/usuário, a unidade de saúde como um todo se prepara para esta relação. Esta preparação se dá desde a concepção de sua finalidade, operacionalizada através da estruturação do trabalho, segundo seu modelo de assistência, da destinação de um ambiente físico, da definição do quê, de quem e em quais circunstâncias irá acolher bem como da presença de determinadas condições de trabalho, contexto em que os trabalhadores de fato concretizarão o atendimento, em nome da unidade de saúde.

Assim este estudo tem por objetivo identificar e analisar os aspectos pertinentes ao preparo para relação estabelecida entre trabalhador usuário em unidade de saúde da rede básica do município de Ribeirão Preto, tendo por perspectiva o acolhimento.

 

II. O percurso da pesquisa

Tomou-se para o desenvolvimento deste estudo a perspectiva teórica do processo de trabalho em saúde (MENDES GONÇALVES, 1992) considerando-o um trabalho como outro qualquer produzindo homens em relação com outros homens e com a natureza em um dado processo sócio-histórico. "Lida com homens (seus agentes e usuários) cujas necessidades também são constituídas histórica e socialmente. (MATUMOTO, 1998, p.26)" e que irão conformar a finalidade que encaminha o desenvolvimento do trabalho. Neste sentido, sendo o homem o objeto de trabalho em saúde, é preciso apreendê-lo e reconhecê-lo "em seu processo de objetivação do que é saúde/doença, ou seja, enquanto movimento de objetivar suas necessidades de saúde, quando externaliza sua subjetividade em relação ao processo saúde-doença" (MATUMOTO, 1998, p.27)

No movimento de atender às necessidades expressas por este homem, e que não são necessidades humanas quaisquer, ou seja "[...] aparecem como aquilo que precisa"necessariamente"ser satisfeito para que este ser continue sendo um ser" (MENDES GONÇALVES, 1992, p. 19) em um dado espaço-tempo, lança-se mão de instrumentos de trabalho específicos, saberes e fazeres que possibilitam o atendimento das necessidades expressas. Nesta direção, MERHY (1997b, 121) expressa que no trabalho em saúde utilizamos de saberes tecnológicos que podem ser as tecnologias duras (equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, equipamentos, normas, estruturas organizacionais), as leve duras (saberes bem-estruturados presentes no processo de trabalho em saúde, como por exemplo, a clínica, a epidemiologia, a psicanálise, dentre outros) e as leves (tecnologias de relação, tais como o vínculo, escuta).

Assim, tendo por sustentação este conjunto de conceitos este estudo teve como cenário uma unidade de saúde da rede básica de serviços de saúde do município de Ribeirão Preto – SP. O município, importante centro regional pela extensa rede de serviços em geral, mas com forte vocação para a área educacional e de saúde, apresenta cerca de 504.000 habitantes (IBGE, 2002) (http://www.ibge.gov.br/cidades; capturado em 02 de Março de 2002). Sua rede de serviços básicos é composta por 27 unidades básicas de saúde e 5 Unidades Básicas e Distritais de Saúde, com funcionamento 24 horas e distintas áreas de assistência à saúde.

A unidade selecionada para o estudo foi a o Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Unidade Distrital, desenvolvendo atividades de assistência ambulatorial programáticas, especializadas, serviços de apoio e diagnóstico, aplicação de tratamentos, pronto atendimento 24 horas e vigilância epidemiológica.

Considerando que o acolhimento se dá durante todo o processo de atenção à saúde, foram selecionados como instrumentos de aproximação ao empírico a observação participante e a entrevista semi-estruturada. Para a organização da observação participante, foi utilizado o Fluxograma analisador do modelo de atenção de um serviço de saúde (MERHY, 1997b) (Mais informação acerca desta ferramenta pode ser obtida em: MERHY, E.E. et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde. A informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: MERHY, E.E.; ONOCKO, R. (orgs). Agir em saúde:um desafio para o público. São Paulo, Hucitec/Lugar Editorial, 1997b. Parte 2, p. 113-150). Foram realizadas 19 observações de atendimento, sendo selecionadas as situações a partir da anuência do usuário para que pudesse ser acompanhado seu percurso dentro da unidade de saúde. A entrevista semi-estruturada foi realizada com 9 dos 41 trabalhadores envolvidos nos atendimentos observados, sendo considerados para a seleção dos trabalhadores de diferentes categorias profissionais e de diferentes áreas de atendimento. Na etapa de análise dos dados foi utilizada a análise temática segundo Bardin (1995).

 

III. Olhando e conversando com o empírico – o preparo para a relação

Efetivar o trabalho em saúde exige a preparação do ambiente físico, enquanto espaço de relações. O atendimento representa a aproximação de pessoas, para tentarem solucionar algum problema, condições mínimas de privacidade e conforto tornam-se necessárias.

Observou-se, nesse estudo, que em alguns ambientes físicos preparados para a relação, como os balcões com vidro com um pequeno orifício, no setor Pronto –Atendimento - PA (Assim denominado o setor da Unidade de Saúde para onde demanda pacientes que necessitam de atenção imediata, caracterizando-se por um atendimento de urgências e emergências clínico, cirúrgicas etc.), ou balcões em ambiente aberto, na clínica médica, o usuário deveria expor o motivo de sua procura, sem nenhuma privacidade. Nestas circunstâncias, tanto o usuário quanto o trabalhador tiveram que falar alto, para conseguir se comunicar e serem ouvidos um pelo outro. Em um ambiente aberto, a relação sofre interferência do som ambiente (conversas de pessoas, choros de crianças, sirene de ambulâncias, comunicação pelo auto-falante e outros); somam-se ainda ocorrências do momento como interrupções para informações, pessoas que passam e cumprimentam, pessoas que "passam mal", que desviam a atenção do trabalhador para fora do espaço intercessor que tenta se estabelecer.

Este ambiente interfere sobre o acolhimento, pois o usuário fica constrangido, limitando-se a expressar rapidamente seu problema, ou sua queixa. Não há reservado para si um espaço privativo, o que faz com que não respeite o espaço do outro, em circunstâncias semelhantes, dando-se o direito de interromper outras relações.

"chego às sete, eu gosto de chegar mais cedo (...) aí os pacientes chegam, - a gente pega o cartão e as pastas (...) a gente pesa os pacientes e manda os pacientes ir ali pro médico. – nesse intervalo, tem, paciente pra saber onde é a oftalmo, onde é o raio X, onde é o elétro, onde é a coleta (...) esquece a papeleta em casa e a gente tem que fazer outra papeleta – não marcou os exames direitinho (...) não colocou número, ou não colocou o nome e vem pra gente fazer isso pra eles, que eles, mesmo você explicando, tem muitos que não entende e vem pra gente fazer, isso é tudo no intervalo que você tá vendo e pesando o paciente . Pressão..., a gente vê pressão, - (...) sempre... (...) informação, alí é direto... Onde é a farmácia (...)" (Entrevista 6).

Mesmo em ambientes fechados como no caso do consultório médico, durante as observações registraram-se interrupções diversas. Estas apontam para a necessidade de uma reflexão sobre o quanto se respeita os diversos espaços de relação do processo de trabalho em saúde.

As pós consultas da clínica médica são realizadas em uma sala preparada para atender dois usuários ao mesmo tempo. Nela trabalham duas auxiliares de enfermagem. Uma delas apontou este fato, em sua entrevista, como exemplo de condições de trabalho desfavoráveis, devido às interrupções freqüentes, as mais diversas, que interferem no cumprimento de suas tarefas. Acrescenta-se o fato de que não demonstram preocupação com as interferências do ambiente, para o estabelecimento de relações de atendimento mais próximas, mais humanas, possibilitando auxiliar o usuário a lidar com seus problemas de saúde, assumindo uma posição conformada, "não tem jeito, isso aí não tem solução", considerando a situação praticamente "normal".

"(...) você tá conversando, fazendo pós consulta, o paciente entra lá dentro da sua sala e te corta e você, porque a porta tá aberta, e corta tua pós consulta pra perguntar ou alguma informação... (...) você sempre é interrompida aií... Eu acho péssimo, detesto, já reclamei, já, mas não teve como você fechar a porta porque é eu e a colega trabalhando... A colega tá com paciente e eu tô com outro, sempre tem acompanhante... e aquela sala é pequena... e não tem nem como você fechar a porta alí. Se você fechar a porta não entra paciente ali. A porta tem que ficar aberta... Eu acho horrível, não gosto... já reclamei, já falei, mas não tem condições... não tem jeito... Isso aí não tem solução..." (Entrevista 6).

Outro aspecto da preparação do ambiente, para a relação de atendimento diz respeito ao cuidado com as condições de limpeza. Um ambiente limpo, claro, organizado reflete uma atenção antecipada para com o usuário e com o trabalho a ser desenvolvido. Uma usuária assinalou a importância da limpeza do ambiente comparando este serviço de saúde aos da cidade em que morava anteriormente. "No Rio os postos são muito ruins, mal cuidados, sujos, os médicos usam roupas sujas, as cidades estão sujas, com mal cheiro, o povo não cuida. Aqui para saúde é bem melhor." (OBS 6). É clara a relação limpeza e saúde e esta também compõe parte do que o usuário busca no serviço de saúde.

O respeito e atenção para com o usuário também podem ser demonstrados pelo trabalhador através do cuidado com que prepara sua vestimenta para o trabalho e a adequação da mesma. Estes cuidados causam boa impressão para iniciar a relação de atendimento. Isto foi explicitamente colocado pela usuária que demonstrou confiança no serviço de saúde em que se encontrava.

O cuidado com a aparência e a vestimenta também é observado nos usuários, demonstrando preocupação em apresentar-se da melhor maneira possível ao outro, preparando-se para a relação que irá construir.

"(...) a gente vê muito o paciente aqui (...) Vê ele limpo, vem passear... no CS, né? Ele limpo, as crianças, limpas, bonitas... eu não esqueço um dia que eu estava fazendo visita agora... há um mês (...) Tinha chovido... estava um barro na favela... e todo mundo estava de chinelinho, né? Tomando cuidado para não sujar o pé, de roupinha muito bonitinha... Na hora que chegou na esquina da Rondônia... ela saiu daquele quadrilátero da favela, todo mundo colocou sapatinho e meia, as crianças, 3 crianças, a mãe... sabe? Pegou a sacola jogou num canto, a sacola, com os chinelos sujos... e veio para o centro de saúde que eu encontrei com ela na sala de vacina, depois fazendo curativo numa criança, né?" (Entrevista 1 - Piloto (Entrevistas piloto para testar o roteiro de entrevista).

A preocupação para com o outro, o usuário, pode ser observada também pela forma com que se utiliza da sinalização e se informa a localização das salas e setores de atendimento, isto é, como se lança mão da tecnologia dura, placas, cartazes, painéis informativos e outros. Desde a entrada são pouco destacadas, as placas são pouco evidentes e os setores, em muitas situações, ficam sem ninguém para informar.

Não se está dizendo que toda a sinalização do local deva ser mudada, e sim que o serviço como um todo, através de seus trabalhadores, devem considerar a sinalização tal como se encontra, orientando os usuários, segundo suas necessidades; ficando assim, atentos para identificar dentre o conjunto de usuários, aqueles que apresentam no momento, dificuldades em localizar-se espacialmente na unidade de saúde, seja por limitação de escolaridade, seja por dificuldades circunstanciais como dor, ansiedade, medo, em um exercício constante da eqüidade e acessibilidade.

"Às 14h38min chegamos ao RX. Há uma senhora no final do corredor, olha para uma das portas e para o balcão e pergunta para nós que nos aproximamos: ‘não tem ninguém aqui? É a senhora que atende?’ Respondi que o atendimento seria após às 16 horas e que estaríamos aguardando. A paciente agradece dizendo: ‘Ah! Então eu vou embora’, e sai em seguida.(...).

Às 15h08min chega uma senhora com vários papéis à mão e pergunta sobre o atendimento. Informamos sobre o início às 16 horas. (...)" (OBS 6).

Na situação acima, parece que não se percebeu a importância deste cuidado, o usuário não teve qualquer tipo de informação ou atenção, o preparo do ambiente para o atendimento neste momento foi nulo, gerando sensação de incerteza. Se não estivesse realizando esta pesquisa naquele momento, aquelas pessoas teriam que procurar algum outro informante para saber sobre o horário de funcionamento do RX.

O preparo do ambiente não é meramente o preparo de um espaço físico, mas diz respeito ao cuidado que o serviço de saúde e o trabalhador têm ao executá-lo, expondo sua disponibilidade para a relação e para transformá-la em um espaço de acolhimento.

Outro cuidado com o preparo para a relação com o usuário pode ser considerado a adoção do agendamento por horário na clínica médica. "Lá no postinho da Vila Tibério tem médico bom também, mas gosto mais do Dr. X ... Meu horário é sempre este...Venho depois do almoço... Agora é tudo com hora marcada, né?" (OBS 17).

No entanto, nem sempre o programado é cumprido.

"Uma senhora que também aguarda consulta diz: "Dia que elas tá de veia boa dá tudo certo. Dia que elas tão de veia ruim tá perdido.(...) Teve um dia que tive que fazer um escândalo. Minha consulta estava marcada para às 7 horas e eles foram me atender só às 11. Fui lá e falei um monte para elas. Elas foram passando gente na minha frente... Foram passando gente ... Aí fui lá falar! Aí elas me atenderam.. (...) mas elas pegam muita gente para a mesma hora..." (OBS 19).

Este relato demonstra o outro lado do agendamento por horário, ou seja, a adoção desta forma de organização do trabalho atende às necessidades e prioridades do próprio serviço, regulação de um fluxo de demanda mais adequado para o desempenho do trabalho, sem preocupação com as necessidades dos usuários determinando para estes um horário de chegada e não o horário de seu atendimento, o que é contraditório com a expectativa que se cria, quando se diz que o serviço adota agendamento por horário.

Este choque entre a estruturação do serviço e a expectativa do usuário gera, neste último, uma certa falta de disponibilidade em relacionar-se com os trabalhadores de saúde, no caso as auxiliares de enfermagem, que são responsabilizadas pelo não atendimento, conforme o programado, demonstrando falta de credibilidade e confiança, que certamente refletirá no vínculo e no acolhimento.

Em algumas situações, a regra é tomada de forma rígida, não facilitando o acolhimento, distanciando-se daquilo para a qual foi implantada, ou seja, diminuir o tempo de espera, diminuir o número de pessoas circulando na unidade, para evitar tumultos e som ambiente elevados.

"(...) uma senhora entrega seu cartão de agendamento ao auxiliar: ‘Tenho consulta hoje... , Dr. PPP.’

Auxiliar olha o cartão: ‘Só que é as 14 horas. Só poderá descer às 13 e 30.’

Paciente: ‘Mas eu trabalho... as moças já-já estão lá. Elas pegam meu cartão e depois vou trabalhar.’

Auxiliar: ‘Só pode entrar meia hora antes do horário marcado. Pode aguardar. Às 13 e 30 a senhora desce’" (OBS 17).

Essa produção, de um certo padrão de prática burocratizada,decorre das circunstâncias em que se executa um projeto terapêutico, que se organiza parcelando o trabalho e fixando o trabalhador em uma determinada etapa. Nesse processo, o trabalhador executa "atos esvaziados de sentido, ou cujo sentido depende de uma continuação que o trabalhador não somente não controla como até desconhece" (CAMPOS, 1997, p. 235); Tal postura faz com que este não se sinta um sujeito ativo neste processo de produção, situação que o aborrece e o embrutece.

Tanto o agendamento por horário, como a normatização de fluxo de entrada dos usuários na unidade apresenta mais a tônica de disciplinar o usuário do que o intuito da unidade de saúde em voltar a atenção para ele. Essa disciplinarização evidencia a presença do poder na relação trabalhador/usuário desde a preparação das mesmas. No quotidiano, o que aparece como predominante é o usuário submetendo-se a essas normatizações e poderes do serviço e dos trabalhadores, nesse processo de "disciplinarização"(Forma de demonstração de poder semelhante ao observado em unidade hospitalar (CARAPINHEIRO, 1993) , que enquadra a demanda à oferta de atenção, ao cardápio disponível.

Essa relação de poder é desigual, é dada pelo papel - de usuário e de trabalhador, uma relação hierárquica socialmente determinada pelas próprias relações, pelo domínio do conhecimento, pela detenção de informações. Usuário e trabalhador, de certa forma, se preparam para a mesma, a medida em que se reconhecem mutuamente, de alguma forma naquele espaço intercessor. Este reconhecimento denominado como "a obra", trata do "reconhecimento tanto por parte do trabalhador como do cliente e da sociedade, do resultado do trabalho" (CAMPOS, 1997, p. 234).

O usuário que ora se submete ao trabalhador para ter seu problema acolhido, ora em outros momentos atua enquanto sujeito, também se faz presente de forma inteira na relação dentro do mesmo contexto, prepara-se para obter o que deseja. O trabalhador, por sua vez, pode fazer uso mais livremente deste poder utilizando-o das mais diversas formas no espaço de intercessão com o usuário, evidenciando ainda mais seu poder ou utilizando-o em uma relação mais horizontal em que ambos estão juntos na construção de uma resposta para o problema apresentado pelo usuário.

"No balcão há dois rapazes sendo orientados pela auxiliar. Um dos rapazes diz: ‘retorno.’
Auxiliar: ‘O senhor perdeu. Era há uma e meia, já foi.’
Paciente: ‘mas o serviço... não deu para vir antes...’
Auxiliar: ‘Acabei de colocar os pacientes que não tinham consulta marcada.’" (OBS14).

Antes de relacionar-se com o usuário, o trabalhador se depara com seu próprio trabalho. Sua representação quanto ao trabalho, dada pela concepção que tem dele, pelas condições em que este se concretiza, pelo retorno que pode obter, pela representação que tem do usuário e de suas necessidades. Este quadro gera certa disponibilidade deste trabalhador em relacionar-se com o usuário e de que forma, além do que vai interferir sobre a maneira como o trabalhador lançará mão das tecnologias (leve, leve-duras e duras) do trabalho em saúde, sobre o quanto e pelo quê se responsabilizará e qual finalidade norteará seu atendimento.

Um dos médicos referiu que apesar de ouvir os gritos do conflito entre as auxiliares e os usuários não sai do consultório, isto é, não ajuda, não sabe nem se o usuário foi atendido ou não. Reconhece o problema, mas não se envolve. Este relato traz à tona a questão do trabalho em equipe, no aspecto da cooperação entre seus membros, para tentar solucionar os problemas do setor de atendimento. A forma de atuação descrita pelo profissional nos leva a pensar que este está preso a uma matriz de divisão de trabalho, onde o médico só consulta e os problemas da recepção e agendamento, de preparação das condições de atendimento são da competência das auxiliares de enfermagem ou de qualquer outro trabalhador que atue fora do consultório médico.

O não envolvimento do médico com o acolhimento na recepção demonstra sua captura pelo trabalho morto ( Trabalho vivo, aquele que vai se dando em ato, podendo ser expressas a criatividade, a vontade do trabalhador e trabalho morto, aquele, onde se expressa trabalho vivo capturado, ou seja, trabalho já materializado, resultado de trabalho humano anteriormente produzido. (MERHY, 1997) , confirmado em sua entrevista, quando referiu que a estrutura e organização do trabalho o impedem de atender seus pacientes em intercorrências, sendo este um limitante de seu trabalho. Nestas situações, o trabalhador coloca-se na relação de atendimento como um não-sujeito protagonista da ação de saúde.

 

IV. Considerações finais

A observação do atendimento, assim como as entrevistas dos trabalhadores parecem revelar que é a sua finalidade que estrutura a relação a ser construída. Esta tal finalidade não se apresenta explicitamente, isto é, surge na relação como a resposta eleita, a melhor e mais viável naquelas circunstâncias, dentro de um cardápio de intervenções possíveis, pensadas pelo trabalhador, a partir e naquele espaço intercessor. Além disso, a estruturação do atendimento e das respostas que irão constituir o cardápio de intervenções pode se dar de forma mais ou menos abrangente; a partir da concepção de homem e de saúde/doença que embasa a finalidade dada ao atendimento. Neste processo, o trabalhador demonstra pelo quê e por quanto se responsabiliza, o que revela também suas concepções presentes na relação de atendimento, ou seja, a decisão tomada expressa a objetivação do trabalhador em relação ao processo saúde/doença e da finalidade que dá ao trabalho.

Assim, podemos considerar que a disponibilidade do trabalhador para o preparo do ambiente, de si próprio e da relação de atendimento propriamente dita, passa por dentro do próprio trabalhador (seus afetos, desejos, projetos) e pelo contexto no qual está inserido, entendendo-o muito além dos muros da unidade de saúde. Esta afirmação se baseia na percepção do trabalhador, enquanto homem de relações no mundo, que sofre e produz ações recíprocas de manutenção e transformação. Em seu quotidiano, entretanto, o trabalhador normalmente não se percebe assim, vive atribulado, correndo o tempo todo, com grande dispêndio de energia, sem parar para refletir sobre o que faz.

Embora haja dificuldades no setor saúde referente à disponibilidade de recursos, especialmente do setor público, é preciso nos determos para estes pontos levantados quanto à preparação para a relação serviço/usuário e trabalhador/usuário, buscando incorporá-los na estruturação do serviço, investindo no aumento de sua capacidade resolutiva, não só em termos de eficácia e eficiência, mas através de um relacionamento mais humano, mais acolhedor, uma vez que é no trabalho vivo em ato, nesta intercessão, que se configura a qualidade do atendimento.

 

Referências bibliográficas

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