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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Alteridade e câncer de mama: uma análise fundada no discurso*

 

Otherness and breast cancer: an analysis based on discourse

 

 

Cintia BraghetoI; Ana Maria de AlmeidaII

IPsicóloga, pós graduanda do programa de mestrado em Enfermagem em Saúde Pública do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública –EERP-USP
IIProfa. Dra. do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública –EERP-USP. Av. Bandeirantes, 3900 – 14040-902 – Ribeirão Preto-SP

 

 


RESUMO

A partir do pequeno número de pesquisas na área da saúde que tratam da alteridade, propõe-se uma discussão da questão da alteridade ligada ao câncer de mama. Para tanto, fez-se uma revisão não sistematizada da literatura. Os dados encontrados mostram o quão a mulher com câncer de mama tem presente em si a questão da alteridade. A partir desses pontua-se a implicação disso no contexto institucional e profissional da saúde.

Palavras-chave: alteridade, câncer de mama, discurso


ABSTRACT

As a result of the small amount of health research with respect to otherness, we propose to discuss otherness in relation to breast cancer. Thus, literature is revised in a non systematized way. The collected data reveal the great extent to which the question of otherness is present in the woman with breast cancer. Hence, we point out the implications in the institutional and professional health context.

Key words: otherness, breast cancer, discourse


 

 

Introdução

A partir da escassez de trabalhos na área da saúde que relacionem a questão da alteridade com o câncer de mama, propõe-se como objetivo deste trabalho uma discussão de como a alteridade está colocada no campo da doença, especificamente, na perspectiva da mulher acometida pelo câncer de mama.

Falar em alteridade implica em falar da linguagem, já que a primeira só é acessada a partir da segunda. Da mesma forma implica também em falar em inconsciente, o qual estrutura-se como uma linguagem, tal como afirma Lacan no Seminário 11 (1988). Além disso, Authier-Revuz (1994), afirma que a linguagem implica em falta no dizer também. Sendo assim, a linguagem é a ferramenta mestra do analista do discurso, é através dela que o analista pode acessar como presentificam-se no sujeito questões como a alteridade.

Lacan no Seminário 11 (1988), relata que para dar entrada ao inconsciente é necessária a separação do sujeito e do Outro, sendo que este é o lugar onde a cadeia do significante que comanda tudo situa-se, isto é, o Outro é a cultura, a Lei, as regras da língua. E é isso que vai poder presentificar-se do sujeito, que pode dar margem ainda à manifestação da pulsão. Lacan apud Laurent (1997) afirma que os conceitos de sujeito e Outro são uma tentativa de definição da alienação, que é a primeira operação de constituição do sujeito, assim é uma definição que aponta que o sujeito só pode ser definido a partir de si mesmo.

Pensando no Outro enquanto necessário à constituição do sujeito, vale lembrar que não todo sujeito pode estar presente no Outro. Sempre há um resto na representação sexual do sujeito no Outro, assim como coloca Laurent (1997). E é nesse momento que Lacan (1988) identifica duas faltas, que segundo Laurent seriam: a primeira falta relaciona-se com o fato mesmo de que inteiramente o sujeito não tem como ser representado no Outro, deixando então o sujeito marcado. A segunda falta, que é uma falta mais profunda, ocorre no momento da separação, que é segundo Laurent (1997), a segunda operação constituinte do sujeito, Lacan (1998): "Aquilo pelo quê o sujeito encontra a via de retorno do vel da alienação é essa operação que chamei, outro dia, separação. Pela separação o sujeito acha, se podemos dizer o ponto fraco do casal primitivo da articulação alienante, no que ela é de essência alienante. ...O sujeito – por um processo que não deixa de conter engano, que não deixa de representar essa torção fundamental pela qual o que o sujeito reencontra não é o que anima seu movimento de tornar a achar – retorna então ao ponto inicial, que é o de sua falta como tal, da falta de sua afânise"(p. 207). É nesse vazio que a alteridade radical se faz presente.

Authier-Revuz (1994) desenvolve a questão da falta afirmando que há dois tipos de representação da falta que marcam o dizer. A primeira representação dela deve ser tomada como imperfeição, como uma deficiência que o dizer apresenta, um modo de dizer que não é acabado. A segunda representação da falta no dizer diz respeito a uma ausência, uma falha que é complementar a primeira, sendo que essa palavra que falta pode indiciar uma fraqueza de quem enuncia em encontrar "a" palavra, ou ainda ser indício de uma fraqueza da língua, sinônimo de um não existe palavra. Em 1998, Orlandi situa a produção de Authier-Revuz como movimentando-se entre uma teoria da lingüística que não dá conta da completude do sujeito nem da linguagem e da concepção de sujeito enquanto forma orgânica na análise enunciativa.

Para Authier-Revuz (1990), a alteridade é sinônimo do que ela denomina por heterogeneidade discursiva, sendo que esta apresenta-se nas formas de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada. A primeira faz referência ao interdiscurso, que como afirma Cardoso (1999) não revela o outro, e é da ordem do inconsciente. E a heterogeneidade mostrada depende da heterogeneidade constitutiva, sendo uma forma do outro, através de marcas explícitas, delimitar o restante do discurso como sendo seu.

 

Câncer: história e panorama atual

O câncer pode ser definido como o crescimento desordenado (maligno) de células que se alojam em tecidos e órgãos, podendo ainda migrar-se para outras regiões do corpo (metástase). (Brasil. MS, 1999).

Ao adentrar o universo histórico, percebe-se o quanto o câncer está ligado à vergonha. Segundo Sant’Anna (1997, p. 43-4): "vergonha de ter sido afetado por uma doença, tradicionalmente, considerada inglória, relegada aos bastidores da cultura. Vergonha de abrigar um mal marcado pela imagem da corrosão, do desregramento orgânico ou do castigo divino. Vergonha que tende a transformar o doente no único responsável por seus sofrimentos. Por conseguinte, os modos de enfrentamento (o enfrentamento refere-se ao que o indivíduo pensa e faz para lidar com situações estressantes) do câncer permanecem, em grande medida, confinados ao silêncio, principalmente quando se trata do câncer de mama. Neste caso, a vergonha é agravada pela ameaça da mutilação de uma parte do corpo considerada, há muito, um dos principais símbolos da identidade feminina". Além disso, apesar das transformações técnico-científicas há ainda a persistência de temores e expectativas em relação ao câncer. Afirma Sant’Anna (1997): "Receios antigos relativos à mutilação, à solidão e ao abandono familiar não cessam de emergir no decorrer do tratamento em quimioterapia, por exemplo, ou no suceder de exames e cirurgias, quando o corpo é inúmeras vezes manipulado, vasculhado e diagnosticado" (p. 43-4).

As dificuldades para uma pessoa enfrentar um câncer sempre foram incontáveis. Isso porque ele sempre esteve ligado a inúmeros constrangimentos, como à associação entre câncer e falta de limpeza do corpo e da alma, pregada durante 1900 e 1930. Assim, o câncer foi comparado à sífilis no que dizia respeito ao seu contágio (adquirida por meio de práticas viciosas e da "sujeira", tanto ao nível moral quanto ao nível físico). Além disso, havia a analogia entre o câncer como um bicho que ia devorando a pessoa por dentro. O câncer foi sinônimo também de sacrifício e purificação. Sacrifício porque o doente teria que suportar o sofrimento até a morte, e purificação, porque achava-se que tocando os corpos de mulheres com câncer se obtinha um estoque de pureza. (Sant'Anna, 1997).

A partir de 1930 surgiram novas indagações em relação às possíveis causas do câncer. Por exemplo: "a ingestão cotidiana de produtos químicos presentes nos alimentos, o hábito de fumar e até mesmo o uso de aparelhos domésticos como a geladeira. O excesso de trabalho e o aumento de preocupações se transformaram em fatores predisponentes ao câncer". Reforçando a idéia, uma publicação, em 1996, da revista Veja, intitulada ‘A Guerra ao Câncer’ traz este conceito: "o câncer é produto humano, não um inimigo que ataca de fora, não um invasor. Células malignas são células do próprio doente, apenas com algumas alterações". (Sant’Anna , 1997, p. 57).

Vários foram os tratamentos alternativos utilizados pelos povos ao longo da história. Sabe-se do tratamento, na Europa durante o século das Luzes, com sanguessugas e outras formas de sangrias, porque acreditava-se que dessa maneira o sangue fluiria evitando as dores do câncer e o próprio câncer também. Segundo Sant’Anna (1997), no Brasil, em 1946, houve a utilização de tratamentos "com xaropes, pílulas, depurativos, benzeduras e passes" (p.47).

Em 1991, em um trabalho de Mamede, M. V. et al, intitulado como "Câncer: um conceito social", afirma-se que há necessidade de mais estudos que identifiquem outras dimensões do conceito câncer elaborado na mente da população, visto que vários são os inquéritos que têm retratado esboços do pensamento das pessoas sobre o câncer como: o câncer é a doença que mais mata; a mais séria do mundo, a mais angustiante, a mais dolorosa, doença enraizante, entre outros conceitos

Para o ano 2001, a estimativa é de 31.590 casos novos de câncer de mama, mantendo-se como a primeira causa de morte em mulheres tanto brasileiras como entre as mulheres dos países ocidentais. As estatísticas indicam o aumento de sua freqüência tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nas décadas de 60 e 70 registrou-se um aumento de 10 vezes em suas taxas de incidência ajustadas por idade nos registros de câncer de base populacional de diversos continentes. Tem-se documentado também o aumento no risco de mulheres migrantes de áreas de baixo risco para áreas de risco alto. Nos Estados Unidos, a Sociedade Americana de Cancerologia indica que uma em cada 10 mulheres tem a probabilidade de desenvolver um câncer de mama durante a sua vida (BRASIL, MS, 2001)

"Indiscutivelmente, o câncer de mama é provavelmente o mais temido pelas mulheres devido à sua alta freqüência e sobretudo pelos efeitos psicológicos, que afetam a percepção da sexualidade e a própria imagem pessoal. As estatísticas apontam que ele é relativamente raro antes dos 35 anos de idade, mas acima desta faixa etária sua incidência cresce rápida e progressivamente." (Brasil. MS, 1999).

 

Alteridade e câncer de mama: uma análise reflexiva

O câncer de mama é uma doença que causa alguma alteração no tamanho e ou na forma e ou no contorno das mamas. Partindo desse dado de realidade, pode-se pensar assim como coloca Fux (2001), que uma manifestação psicossomática deixa às claras uma lesão de órgão, é de indução significante, direciona a um gozo específico, é idiossincrático e até mesmo enigmático. A mesma autora continua seu trabalho desenvolvendo a questão do doente psicossomático, que seria o que sempre mostra uma resposta somática. São pessoas que tratam o corpo com alteridade, como se ele não os pertencesse.

As mulheres mastectomizadas, principalmente no momento que começam o tratamento para o câncer parecem realmente tratar o corpo com alteridade, são mulheres com relatos de anulação, muitas abriram mão de praticamente todos os seus desejos, que diria do corpo físico, para viver pela família, amigos, conhecidos, entre outros.

A alteridade na mulher com câncer de mama apresenta-se também no momento de um possível linfedema, que é um inchaço (edema) no braço do lado operado causado pela má circulação da linfa. E o que se ouve de muitas mulheres que têm linfedema é que o braço agora é um nenê , que sempre tem que estar sendo cuidado, monitorado. Mais uma vez um órgão é lesionado, e o que será que essas mulheres querem dizer com mais essa resposta somática? Qual é ou quais são o(s) significante(s) indutor(e)s desse adoecer? Além disso, tratar o braço com linfedema como se fosse um bebê não deixa de ser tratá-lo como um diferente, como uma parte do corpo que não pertence a esse sujeito.

Refletindo sobre a concepção de alteridade para Authier-Revuz (1990), como sendo também efeito do interdiscurso, e este último segundo Orlandi (2001), definido como todo conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos, será que o relato que se tem na história sobre o câncer não está muito mais presente nas mulheres com câncer de mama do que se pensa? O que explica os 40% de mulheres que chegam aos hospitais em busca de ajuda com a doença num estágio considerado avançado, muitas vezes com o tumor exposto e a presença de um odor desagradável?

 

Conclusão

Talvez se houvesse uma inversão naquela máxima: toda instituição acaba tomando a forma do mal que ela combate, os muitos tumores que hoje são diagnosticados e tratados seriam encarados como tumores sim, mas também como tumores que falam e que pertencem a um sujeito, que por meio da palavra não só se fez presente, precisou do corpo, tratado como alteridade para falar.

 

Referências bibliográficas

AUTHIER-REVUZ, J. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio. In: ORLANDI, E.P. Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 1994, p.253-277.

AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad. Est. Ling., v. 19, p.25-42, 1990.

AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas, Editora da Unicamp, 1998.

CARDOSO, S.H.B. Discurso e ensino. Belo Horizonte, Autêntica, 1999.

FUX, S.P. Psicossomática: uma questão para a psicanálise. Correio: revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n.35, p.18-27, 2001.

LACAN, J. O seminário-livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.

LAURENT, E. Alienação e separação I. In: Feldstein, R.; Fink, B; Jaanus M. (orgs.). Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, R.J., Jorge Zahar Editor, 1997, p.31-41.

MAMEDE, M.V. et al. Câncer: um conceito social. In: 43ª Reunião Anual da S.B.P.C., Rio de Janeiro, Julho, 1991. Anais. Rio de Janeiro, 1991. p.73-74.

Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. O câncer no Brasil, Brasil, 2001 (on line). Disponível na internet: http://www.inca.org.br.

ORLANDI, E.P. Análise de discurso. Campinas, Pontes,2001.

SEGAL, S. Mastectomia: mantendo sua qualidade de vida após o câncer de mama. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1995.

SANT`ANNA, D.B.DE. A mulher e o câncer na história. In: GIMENEZ, M. DA G. A mulher e o câncer. Campinas, SP, 1997. cap. 2, p. 43-66.

 

 

* Trabalho de conclusão da disciplina: Epistemologia da Linguagem: do visível ao opaco.