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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. Maio. 2002

 

Preocupando-se com a futura vivência da dor de parto e a sua expressão durante o trabalho de parto*

 

Worrying about labor and delivery pain and its manifestation during childbearing process

 

 

Emília SaitoI; Dulce Maria Rosa GualdaII

IEnfermeira obstetra. Doutora em Enfermagem. Professor Doutor da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
IIObstetriz. Livre-docente. Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Ao procurar compreender a vivência da dor de parto pelas mulheres que deram à luz em um hospital-escola, onde a prática de analgesia do parto não é comum, foi possível perceber pela análise dos dados que a expectativa da experiência da sensação dolorosa é inerente ao processo de parturição pela gestante e pela forma que utiliza para expressar essa dor no contexto da assistência. O estudo etnográfico foi desenvolvido com a adoção da Antropologia Cultural como referencial e a coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com as mulheres e pela observação direta do contexto. Conclui-se que a atitude de acolhimento da mulher pelo profissional que a assiste pode ser uma estratégia para a compreensão do fenômeno, independente da fase em que ela se encontra. Assim, possibilita a implementação de um cuidado eficaz e de qualidade, uma vez que refletirá de forma positiva na relação profissional-mulher e família.

Palavras-chave: dor, parto, assistência obstétrica


ABSTRACT

In seeking to understand labor pain experience by women who gave birth at a hospital school, where analgesics are not common, data analysis and the way pregnant women express this pain in the care context allowed for the perception that the expectation of feeling pain is an inherent part of the delivery process. This ethnographic study adopted Cultural Anthropology as a reference base and data were collected by means of interviews and direct observation. We conclude that the caring professional’s welcoming attitude may be a strategy for understanding the phenomenon, no matter which stage it is in. Thus, it enables the implementation of an efficient and quality care, since it exercises a positive influence on the relation between the professional and the woman and her family.

Key words: pain, labor, obstetric care


 

 

A contração uterina é essencial para que o parto vaginal ocorra com êxito. Assim, é um fenômeno desejado, esperado, controlado e, em algumas ocasiões, induzido pelos profissionais que assistem a mulher e a família durante o trabalho de parto e parto. Por outro lado, a contração uterina representa para a mulher que a vivencia uma sensação dolorosa.

Toda dor é uma experiência pessoal que envolve um alto grau de subjetividade e a única pessoa que pode descrevê-la e ser considerada como a autoridade sobre essa sensação é a própria pessoa que a vivencia. A dor é experienciada pela pessoa e não simplesmente pelo seu corpo (CROOK, 1985; PIMENTA; PORTINOI, 1999).

Segundo Morris (1991), a experiência da dor promove sentimento de exclusão e isolamento na pessoa, mas ao mesmo tempo, esta experiência é social, uma vez que ela é construída e compartilhada culturalmente.

A comunicação pela pessoa que a vivencia, quando o faz para outras pessoas, sofre influência de fatores culturais, psicológicos e sociais. Desta forma, o comportamento de dor varia em concordância com a cultura e a época. A personalidade, o ambiente, a cultura, o gênero, entre outros fatores, afetam diretamente a percepção da dor e a resposta correspondente a ela (HELMAN, 1994; THOMAS, 1997; PEREIRA; ZAGO, 1998; GUIMARÃES, 1999).

No caso específico da situação de parto e nascimento, a expectativa da vivência da sensação dolorosa está presente durante o período gestacional, no mínimo. A sua inevitabilidade encontra-se associada à história da humanidade, textualmente explicitada nos escritos bíblicos.

Na sociedade ocidental, incluindo o Brasil, a maioria dos partos ocorre no ambiente intra-hospitalar, seguindo o modelo "americano" de assistência ao parto e nascimento, que se caracteriza, inclusive, por enfocar a gestação, o parto e o puerpério como processos potencialmente de risco e pelo emprego de forma intensiva de novas tecnologias e intervenções que, muitas vezes, exarceba a sensação dolorosa (RATTNER, 1998).

Em nosso país, o quadro acima é agravado pelo fato da maioria das instituições de caráter público não empregar a analgesia do parto com maior freqüência e liberalidade, reforçando, assim, a associação entre parto, dor e sofrimento.

Estes aspectos são determinantes na comunicação da dor vivenciada pela mulher durante sua experiência, em especial, para os profissionais de saúde que a assistem, visto que a presença de um acompanhante de sua livre escolha é restrita em grande número de maternidades brasileiras, bem como na expectativa de vivenciar a dor de parto pelas mulheres que estão grávidas, quando lhes é oferecida a oportunidade de falar sobre seus sentimentos nesta fase do ciclo gravídico-puerperal ou após a experiência da dor de parto.

Objetivando a compreensão dos comportamentos relacionados à dor de parto, entre outros aspectos, por mulheres que a vivenciaram, realizamos um estudo qualitativo em um hospital-escola da cidade de São Paulo. Nesta pesquisa, adotou-se a Antropologia Cultural como referencial e a Etnografia como método.

A primeira etapa da coleta de dados foi efetivada por meio da observação participante do contexto, após o projeto de pesquisa ter sido avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, campo de estudo. E a segunda etapa, constituiu-se de entrevistas com sete mulheres que deram à luz no referido hospital-escola e consentiram participar do estudo, após terem sido informadas de sua finalidade e da garantia de seu anonimato e da inexistência de implicações para a assistência oferecida pela instituição.

As entrevistas ocorreram no próprio domicílio das puérperas em data e horário previamente agendados em conformidade com seu interesse e disponibilidade. A questão apresentada na primeira entrevista com as mulheres foi "me fale como foi para você sentir a dor de parto".

Cada entrevista foi registrada com o uso de gravador e o conteúdo da fita magnética foi transcrito na íntegra pela pesquisadora. Ao se processar a análise dos dados, emergiram temas centrais que dizem respeito ao: preocupa-se com a vivência da dor de parto e a manifestação da experiência da sensação dolorosa do processo de parturição.

Preocupando-se com a dor de parto

Na gestação, a mulher recebe informação sobre a vivência da dor de parto, em especial, tendo como fonte as outras mulheres com quem mantém laços de parentesco ou amizade. A informação é recebida de forma passiva, contendo uma conotação altamente negativa e gerando sentimentos de dúvida, incredulidade, resignação e, sobretudo, de medo.

Assim, a descrição do comportamento da dor de parto é empregada pelas mulheres para narrar às futuras parturientes a intensidade da sensação dolorosa e como agir para seu alívio, justificando até a adoção de comportamentos que socialmente, em geral, não são aceitáveis pela mulher que experiencia a dor de parto.

"... A minha irmã mais velha falou que fez escândalo no hospital quando foi ter o nenê dela..."

"Que nem minha cunhada falou assim, que no parto dela, ela sofreu, ela jogou soro longe, dava soco na parede, mordia o travesseiro ... Ela fez uma porção de coisas que as pessoas não gostam, mas ela falou que não dava pra agüentar. Ela falou que eu também ia gritar, que eu sou medrosa. Que eu ia fazer escândalo como ela fez ... Que a dor é uma dor que você vai morrer, que precisa gritar, precisa fazer escândalo pra agüentar, você quer quebrar tudo ... A dor de parto é uma dor que você vai morrer, que vai morrer, que vai, vai, que a mulher precisa fazer alguma coisa, ela pensa que vai morrer ..."

A preocupação com a futura vivência da dor de parto pela gestante foi também identificada por Kesselring (2001), ao estudar a percepção das mulheres sobre a experiência de sua participação em grupos de gestantes. As mesmas foram atendidas no serviço de pré-natal de uma instituição na cidade de São Paulo.

O autor identificou esta preocupação com a dor de parto nos temas: percebendo-se despreparada para enfrentar o trabalho de parto e parto; conhecendo experiências de partos vividas por outras mulheres; compartilhando sentimentos relacionados ao parto e compartilhando estratégias de ação para enfrentar o trabalho de parto e parto.

Manifestando a vivência da dor de parto

Durante o trabalho de parto e parto, isto é, na vigência da dor de parto, esta sensação provoca em algumas mulheres o desejo de empreender uma ação:

"Aquelas cólicas forte assim que você chega a espremer. Me espremia, assim na cama de tão forte que ela vinha."

"Aquela dor bem forte que você não agüenta. Sabe quando você está com uma dor insuportável? Que você não agüenta. Dá vontade de você segurar tudo, rasgar tudo."

"Quando a dor vinha forte, forte assim de dar vontade de morder e que tinha em frente, lençol, travesseiro, eu mordia."

O tipo de comportamento da mulher que está em trabalho de parto está vinculado à presença ou não de um profissional para expressar seus sentimentos e assim, obter apoio:

"... tendo alguém do seu lado, você conversa, se distrai, você aperta qualquer coisa, segura na mão, não sei. A pessoa tá lá: calma tô aqui, conversa com você. Então a pessoa se sente mais amparada. Agora quando tá sozinha. A dor vem, você quer gritar, você quer falar que tua perna tá doendo, você quer ouvir alguém falar: não tá tudo bem, é assim. Você precisa ouvir isso, mas se você está sozinha você não vai ouvir isso. Vai ouvir de quem, da parede? Então o que ajudou muito foi a enfermeira ter ficado comigo um tempão, né?"

O comportamento da pessoa, familiar ou profissional, que está ao lado da parturiente também influencia no modo de agir da mulher durante a vigência da dor de parto. As parturientes verbalizaram que o comportamento ideal do outro é o de não solicitar que realizem algo ou que se mantenham tranqüilas ou calma:

"Depois minha sogra veio e ficou lá comigo. segurava na minha mão, pedia calma. Não adianta a pessoa pedir calma. você fica mais nervosa se a pessoa fica do seu lado pedindo pra você ficar calma, pra você respirar fundo, como a enfermeira falou. Você fica mais nervosa. Ah, eu mesmo, quando tava sozinha, eu tava ótima, nem gritar, eu gritei. Mas se a pessoa tava do meu lado pedindo calma, pedindo pra mim respirar fundo, é, pedindo que não ficasse gritando que se não ia prender a respiração do nenê. Eu tava mais nervosa. Então eu ia preferir ficar sozinha, eu ficava mais calma."

A forma da mulher comportar-se durante a vigência da dor de parto é variável e está estritamente vinculada ao alívio da sensação dolorosa, que a adoção do comportamento proporciona para ela. Podendo estar este comportamento relacionado à expressão verbal, como gritar, ficar calada ou resmungar:

"... quando a dor apertou, né? Eu gritei. Eu gritei porque o grito alivia. A gente bota pra fora aquela agonia que tá sentindo lá dentro."

" ... gritar eu não gritei, eu não gritei, mas ficava resmungando, falando baixinho. Como se tivesse rezando. Mas eu resmungava assim, tentando pra ver se fizessem alguma coisa logo."

"Na hora da dor, gemi, né? Da dor fraquinha, eu gemi que alivia. Mas depois comecei a gritar, quando não suportei mesmo."

Muitas vezes, o comportamento de permanecer "sem gritar" foi adotado com objetivo diverso do alívio da sensação dolorosa, como no caso de uma mulher, pelo fato deste comportamento representar economia de energia a ser despendida, uma vez que se encontra cansada:

"Não gritei, não fiz escândalo porque não tinha, assim, forças. Sabe, força pra gritar, força pra fazer escândalo. Não tinha aquela coisa porque tem que ter muita energia pra fazer tudo isso. Porque além de sentir dor e, ainda, fazer escândalo, tem que ter muita energia."

Outra razão para a mulher permanecer "sem gritar", durante o trabalho de parto e respirar fundo, é o medo gerado pela informação recebida das conseqüências do ato de gritar, como "...quanto mais você gritar, mais o nenê vai subir e dificultar seu parto".

Para aliviar a dor de parto, as mulheres adotam alguns comportamentos não-verbais, muitas vezes, em associação ou alternadamente com a expressão verbal. Às vezes, mais de um comportamento não-verbal é assumido na busca de alívio da sensação dolorosa.

"Eu mordia o lençol, né, durante a dor, depois ficava quietinha. Aí quando a dor voltava, eu mordia o lençol de novo. ou então eu esticava bem as pernas na cama, tentava, tentava alcançar a parte do pé da cama assim, né, pra tentar aliviar um pouco."

"Então eu fazia de tudo: eu segurava forte na cama, colocava o braço pra trás, segurava com força naquele ferrinho da cabeceira. A força era tamanha que eu achava que ia entortá-lo. Eu tava sei lá, eu liberando alguma, eu tinha que fazer alguma força."

Assim, podemos concluir que a dor de parto é um fenômeno universal, cuja singularidade apresenta-se na forma como ela é vivenciada e expressa para o outro, pelo significado que lhe é atribuído pela própria pessoa, bem como pela sociedade a qual a pessoa que a experiencia está inserida. O presente estudo nos faz refletir sobre a importância desse tema, e deve ser levado em consideração pelos profissionais que atuam na assistência à mulher no ciclo gravídico-puerperal.

No acompanhamento pré-natal, é possível e desejado que a gestante e família percebam no profissional uma atitude de acolhimento, proporcionando à mulher oportunidade de manifestar seus sentimentos, de forma individual ou em grupo de gestantes, onde com grande probabilidade o tema da dor de parto emergirá. Fato este que permitirá sua discussão à luz, também, de informações sobre medidas de como lidar com a dor de parto, buscando seu alívio por meio de técnicas e estratégias que igualmente sejam confiáveis para a mulher e à família.

O profissional que assiste a mulher durante a vigência da dor de parto deveria estar consciente de que o comportamento expresso de forma verbal ou não-verbal por esta é influenciado pelo contexto no qual está inserida. Portanto, seus próprios sentimentos e comportamentos frente à dor do outro interferem na relação profissional-cliente, mas o acolhimento da parturiente e família continua sendo um objetivo a ser almejado, em especial, nos dias de hoje em que a humanização da assistência ao parto e nascimento emergem como uma tendência e desafio a estes profissionais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CROOK, J. Women in pain. In: COPP, L. A .(ed) Perspectives on pain. New York, Churchill Livingstone, 1985. cap.8, p.113-37.

GUIMARÃES, S.S. Introdução ao estudo da dor. In: CARVALHO, M.M.M.J. de. Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo, Summus, 1999. cap.2, p.13-30.

HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. 2.ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.

KESSELRING, B.B. de C. Preparando-se para enfrentar o parto e pós-parto: a experiência da participação em grupo de gestantes. São Paulo, 2001. 93p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.

MORRIS, D.B. The culture of pain. Berkeley, University of California Press, 1991. cap. 2, p. 31-57: The meanings of pain.

PEREIRA, A.P.S.; ZAGO, M.M.F. As influências culturais na dor do paciente cirúrgico. Rev. Esc. Enf. USP, v.32, n.2, p.144-52, 1998.

PIMENTA, C.A de M.; PORTINOI, A .G. Dor e cultura. In: CARVALHO, M.M.M.J. de (org). Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo, Summus, 1999. cap.8, p.159-73.

RATTNER, D. Concepções alternativas de assistência e seu impacto nos indicadores perinatais. In: SEMINÁRIO ESTADUAL SOBRE O ENSINO DE ENFERMAGEM PARA A ASSISTÊNCIA AO NASCIMENTO E PARTO, 1, Ribeirão Preto, 1998. Anais. Ribeirão Preto, Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras – Seção Paulo, Departamento de Enfermagem Materno Infatil e Saúde Püblica da escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 1998.

THOMAS, V. N. Pain: its nature and management. London, Baillière Thindall, 1997. cap.2, p.20-34.

 

 

* Extraído da Tese de Doutorado "Da obtenção de informação ao esquecimento: a vivência da dor de parto em um hospital-escola", Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 1999.