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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Repensando a comunicação como instrumento gerencial em saúde a partir de uma perspectiva dialógica

 

Re-thinking communication as a health management instrument based on a dialogical perspective

 

 

Adriana Katia CorrêaI; Célia Alves RozendoII

IEnfermeira, Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Avenida Bandeirantes, 3900 - Campus Universitário - Ribeirão Preto - SP CEP: 14040-902
IIEnfermeira, Professor Doutor do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas

 

 


RESUMO

Nos serviços de saúde, predomina a perspectiva gerencial fundamentada na racionalidade instrumental. Nesse contexto, o processo de comunicação gerencial se desenvolve, principalmente, como instrumento formal que preserva o instituído em termos de hierarquias, normas e regras. Tal perspectiva vem sofrendo críticas já que não responde à proposta de implementação de um modelo assistencial calcado na integralidade da assistência, universalização, eqüidade, participação social do usuário, dentre outros princípios. Na constituição de um fazer gerencial que considere a dignidade do trabalhador e do usuário, a comunicação revela-se como instrumento a ser redimensionado, considerando as dimensões políticas, sociais, pessoais, enfim, humanas, presentes nas instituições. Nesse sentido, a proposta deste trabalho é refletir acerca da comunicação como instrumento gerencial em saúde, em uma perspectiva dialógica. Inicialmente, são feitas algumas breves considerações sobre as origens da gerência no contexto de trabalho capitalista e sua inserção no campo da saúde, com ênfase na racionalidade instrumental. Em seguida, são feitas considerações sobre a gerência em uma perspectiva contemporânea, enfocando a sua dimensão comunicativa, sendo apontados, dentre outros, o exercício de relações dialógicas, o enfrentamento de conflitos, a possibilidade de tomada de decisão compartilhada e mais criativa e, finalmente, o estabelecimento de relações mais humanas com o usuário.

Palavras-chave: comunicação, gerência, serviços de saúde


ABSTRACT

The managerial perspective based on instrumental rationality predominates in health services. In this setting, the management communication process is mainly developed as a formal instrument that preserves what is instituted in terms of hierarchy, norms and rules. This perspective has been criticized since it no longer responds to the proposal for implementing a care model based on care integrality, universalization, equity, social participation of users, among other principles. In the constitution of a managerial performance that will consider the worker's and the user's dignity, communication is revealed as an instrument to be re-dimensioned by taking into account the political, social, personal, in short, human dimensions present in institutions. In this sense, this study proposes to reflect on communication as a health management instrument from a dialogical perspective, At first, some brief considerations are made on the origin of management in the capitalist work setting and its inclusion in the health area, emphasizing instrumental rationality. Next, considerations are made about management from a contemporary perspective, focusing on its communicative dimension, in which, among others, the exercise of dialogical relationships, dealing with conflicts, the possibility of making a shared and more creative decision are pointed out and, finally, more humane relationships are established with users.

Key words: communication, management, health services


 

 

Introdução

A proposta de implantação do SUS que se fundamenta em princípios como a integralidade da assistência, a universalização, a eqüidade, a participação social do usuário, tendo em vista o conceito ampliado de saúde e o exercício da cidadania exige um fazer gerencial em saúde concebido para além da condução racional de ações pré-estabelecidas por normas e regras, quase sempre, cumpridas por trabalhadores enfocados como alienados e dirigidas a pessoas concebidas como passivas e, portanto, pacientes.

Na constituição de um fazer gerencial que considere a dignidade do trabalhador e do usuário dos serviços de saúde, a comunicação revela-se como importante instrumento a ser redimensionado, considerando as dimensões políticas, sociais, pessoais, enfim, humanas, sempre presentes nas instituições.

Nesse sentido, a proposta deste trabalho é refletir acerca da comunicação como instrumento gerencial em saúde, em uma perspectiva dialógica e integral.

Para tal, inicialmente, são feitas algumas breves considerações sobre as origens da gerência no contexto de trabalho capitalista e sua inserção no campo da saúde, com ênfase na racionalidade instrumental. Em seguida, são feitas considerações sobre a gerência em uma perspectiva contemporânea, enfocando a sua dimensão comunicativa.

 

A constituição da gerência: as transformações do trabalho no contexto capitalista

Enfocar a constituição da gerência, especificamente, no campo da saúde e enfermagem, exige, inicialmente, uma aproximação às transformações do trabalho no contexto capitalista desenvolvidas a partir da Revolução Industrial.

A produção, com o advento da Revolução Industrial, conforma-se como um trabalho coletivo e fragmentado, marcado pela separação fazer manual-fazer intelectual e pela especialização da tarefa. Essa conformação passa a exigir a realização de um controle sistemático desse trabalho coletivo, para se garantir a produtividade, com ênfase na atividade gerencial.

Comenta Motta (1999) que a Revolução Industrial acabou gerando complexidade organizacional, ou seja, hierarquias, tarefas especializadas e necessidade de supervisão e gerência. Nesse contexto, há preocupação com autoridade, responsabilidade, planejamento, controle, coordenação e relações de trabalho.

O mesmo autor destaca que a Revolução Industrial se processa no contexto da modernidade: "(...) o modernismo significou o rompimento com tradições milenares, instituindo uma ordem social mais dinâmica, direcionada pelo avanço tecnológico e pelo poder da razão humana; substitui dogmas, pensamento mítico e visão de mundo centrada na divindade, inaugurando o primado da ciência, do progresso econômico e da razão" (MOTTA, 1999, p.04).

Nesse contexto, teve grande repercussão, inicialmente, no campo industrial, a constituição da gerência científica, no final do século XIX e início do Século XX, formulada por Frederick Wislow Taylor. Para Taylor (1970), cabe à direção planejar o trabalho de cada operário, possibilitando que cada um receba instruções escritas e completas acerca da tarefa que deve ser realizada, sendo especificados o que deve ser feito, como fazê-lo, além do tempo exato para sua execução.

Cabe ressaltar que a razão instrumental aí predominante acaba por privar o indivíduo de reflexão, de percepção e de responsabilidade, sendo essas capacidades transferidas para aqueles que dirigem o processo de racionalização, como os administradores e gerentes (FREDDO, 1991).

A gerência em saúde também se origina na constituição do trabalho coletivo que se refere, como aponta Pires (2000), ao modo de produzir que emerge com a divisão manufatureira do trabalho, sendo encontrado na atividade industrial, nos serviços, aí incluído o trabalho assistencial em saúde.

Nos serviços de saúde, ainda é predominante a perspectiva gerencial calcada na racionalidade instrumental, o que vem se traduzindo em modos de trabalhar objetivantes que reduzem trabalhador e usuários a simples objetos desprovidos de sensibilidade.

Nesse contexto, o processo de comunicação gerencial se desenvolve, predominantemente, nessa mesma lógica, sendo enfatizada como instrumento formal que preserva o instituído em termos de hierarquias, normas e regras.

Tal perspectiva vem sofrendo críticas na medida em que não dá conta de responder à proposta de implementação de um modelo assistencial calcado na integralidade da assistência, na universalização, na eqüidade, na participação social do usuário, dentre outros princípios.

 

A comunicação como instrumento gerencial: uma perspectiva dialógica

Concordamos com a idéia expressa por Almeida et al. (1994) em relação ao trabalho gerencial em saúde: os princípios norteadores desse trabalho não são estáticos, neutros, nem absolutamente racionais. A atividade gerencial é extremamente dinâmica, dialética, estando as dimensões técnica, política e comunicativa em permanente articulação. Além disso, a gerência é enfocada em uma perspectiva de emancipação dos sujeitos sociais - trabalhadores e usuários dos serviços de saúde - incorporando o componente da construção da cidadania.

Nesse contexto, à gerência se incumbe a difícil tarefa e até o desafio de favorecer a constituição de uma prática de saúde não mais apenas eficiente, mas efetiva e, sobretudo, saudável e de qualidade, que se volte para valores como a cidadania do trabalhador e do usuário, a dignidade do homem, o compromisso social e a saúde como qualidade de vida.

Esse desafio só pode ser enfrentado quando a perspectiva gerencial valorizar a idéia de que são pessoas concretas que põem em ação, no cotidiano dos serviços, os projetos assistenciais. Como comenta Campos (1994), torna-se necessário experimentar novos modos de dirigir organizações, buscando superar o eixo central de todas as escolas de administração que se voltam a reduzir sujeitos humanos a instrumentos dóceis, objetos. Assim, é enfocado o desafio atual de governar para produzir sujeitos.

É nessa direção que passamos a refletir acerca da comunicação como uma dimensão importante da gerência em saúde, como possibilidade de criar condições para a transformação criativa do cotidiano, inserida no contexto das relações de trabalho.

Em uma perspectiva dialógica, participativa, é enfocado o processo de comunicação lateral que possibilite o exercício interdisciplinar e a aproximação do processo de tomada de decisão àqueles que põem em prática as ações de saúde.

Favorecer o exercício interdisciplinar implica considerar a constituição de um trabalho grupal que possibilite compartilhar conhecimentos e experiências, exigindo a criação de espaços democráticos de comunicação, através de constantes negociações, o que implica no difícil enfrentamento de conflitos que se fazem sempre presentes, principalmente ao considerarmos que os profissionais de saúde, de modo geral, em suas práticas ainda fragmentadas têm poucas experiências nesse sentido.

Cabe destacar, como refere Rondeau (1996, p.208/209), que a gerência nos moldes tradicionais pouco se volta para a questão do conflito, deixando, contudo, entrever que ele é algo mau, ao afetar a eficiência organizacional, acreditando que ele pode ser solucionado por mecanismos como "a definição das tarefas, das regras e dos métodos que prescrevem claramente os papéis e responsabilidades de cada um e que despersonalizam a execução do trabalho (...), a concentração do poder em uma hierarquia e em uma cadeia de comando precisa ter como função reduzir o nível de ambigüidade e de incerteza vividas pela base da organização".

O enfrentamento de conflitos demanda a capacidade de criar continuamente relações dialógicas entre os profissionais de saúde, envolvendo a inter-relação entre dimensões política e interpessoal. Ou seja, os interesses, muitas vezes divergentes, de grupos distintos precisam ser discutidos, tendo em vista um projeto de saúde, ao mesmo tempo que, os modos de se perceber e se relacionar com o outro precisam ser revistos e recriados de maneira compartilhada. Colocar-se no trabalho com espontaneidade, senso crítico e criatividade exige que o trabalhador busque o auto-conhecimento, bem como habilidade para reconhecer o outro, na sua diversidade.

Enfocar a comunicação nessa perspectiva dialógica permite diversificar a visão sobre os problemas, considerando-os em sua complexidade. Acerca do diálogo, Senge (1998) comenta que através dele, um grupo explora questões difíceis e complexas de vários pontos de vista. As pessoas suspendem seus pressupostos, apesar de comunicá-los livremente. Assim, é possível vir à tona a profundidade da experiência e do pensamento dos envolvidos, podendo ir além de suas visões individuais.

Essa visão diversificada sobre as questões, promovida pelo diálogo, pode favorecer o grupo na busca de soluções que considerem de modo mais crítico o contexto de trabalho, sendo também inovadoras. Acreditamos que o exercício do trabalho grupal, através do diálogo, pode despertar a criatividade, elemento essencial para a constituição de uma prática mais crítica e sensível.

A ótica do senso comum apreende o homem como mentalmente acomodado e respondendo de modo rotineiro aos problemas da vida, sendo a criatividade algo esporádico e que ocorre em momentos brilhantes de raras pessoas. Porém, é importante que se compreenda que todas as pessoas possuem recursos de criatividade. Algumas são mais hábeis na dimensão racional, ou seja, pensam, analisam, criando novas idéias através de julgamentos sobre as situações. Outras já se guiam mais facilmente por suas emoções, agindo por impulsos intuitivos, contrapondo-se, às vezes, a fatos e condições organizacionais (MOTTA, 1999).

Na verdade, concebemos que as dimensões racional e emocional não têm contornos rígidos de separação, ao contrário, se articulam, sendo justamente a sua composição o que cria a possibilidade de percebermos as experiências a partir de diversos ângulos, bem como de produzirmos idéias até então não pensadas, sentimentos novos e ações originais.

Outra questão essencial a ser considerada diz respeito às relações estabelecidas entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde., o que envolve, dentre outros aspectos, o exercício do diálogo e a valorização da vivência do processo saúde-doença pelo sujeito, em sua história de vida, como elemento fundamental na busca da qualidade de vida. Como têm sido essas relações? Os pacientes têm sido respeitados em sua autonomia? Têm recebido informações compreensíveis? Têm sido considerados em seu direito de participação social? Os usuários têm se sentido acolhidos? Essas são apenas algumas questões que precisam sempre ser retomadas no cotidiano e que dizem respeito à dialogicidade.

Pensamos ser fundamental estabelecer uma comunicação que não se restrinja ao saber técnico, possibilitando ao trabalhador escutar o usuário, na busca de compreendê-lo a partir de seu próprio modo de ser, inserido em seu contexto de vida. Uma comunicação que possibilite, também ao trabalhador escutar o outro trabalhador.

Nesse sentido, Campos (1994, p.53) enfatiza a necessidade de resgatar a arte da fala e da escuta entre profissional e paciente, equipe e família, instituições e sociedade, apontando que é através do vínculo profissional-equipe-paciente que se pode transformar a prática: " (...) A idéia do vínculo prende-se tanto à busca de maior eficácia (aumento do percentual de curas), como à noção que valoriza a constituição de espaços propícios à produção de sujeitos autônomos: profissionais e pacientes. Ou seja, só há vínculo entre dois sujeitos, exige-se a assunção do paciente à condição de sujeito que fala, deseja e julga (...)".

Essas idéias apontam para a necessidade premente de humanização dos serviços de saúde, na busca de criação de um atendimento mais digno ao usuário, bem como de um espaço menos alienante ao trabalhador. Dessa forma, reconstruir o processo de comunicação exige disposição para a busca de novos valores no próprio cotidiano de trabalho, o que consideramos bastante árduo, mas, sem dúvida, algo não apenas enriquecedor e criativo, mas, principalmente, transformador.

 

Considerações finais

Repensar a comunicação como instrumento gerencial nos serviços de saúde implica conceber que, nesses serviços, lidamos sempre com sujeitos em ação cujos projetos políticos, projetos e sonhos pessoais e coletivos podem se articular, a partir de negociações, na busca de constituição de um trabalho que, acima de tudo, lida com as situações singulares da vida humana, nas quais os fenômenos saúde-doença, vida-morte, sofrimento-alegria, limites-desejos dão sempre a conotação do inesperado que comporta a condição humana.

 

Referências bibliográficas

ALMEIDA, M.C.P. et al. Gerência na rede básica de serviços de saúde: um processo em construção. Rev. Bras. Enf., v.47, n.03, p.278-86, jul./set., 1994.

CAMPOS, G.W.S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECÍLIO, L.C.O. Inventando a mudança na saúde. São Paulo, Hucitec, 1994, cap.1, p.29-87.

FREDDO, A C. O discurso gerencial como lógica da dominação na organização. Rev Adm. Públ. , v.25, n.2, p.73-85, abr./jun. 1991.

MOTTA, P.R. Transformação organizacional: a teoria e a prática de inovar. Rio de Janeiro, Qualitymark, 1999.

PIRES, D. Novas formas de organização do trabalho em saúde e enfermagem. Rev Baiana Enf. , v.13, n.1/2, p.83-92, abr./out., 2000.

RONDEAU, A A gestão dos conflitos nas organizações. In: CHANLAT, J.F. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo, Atlas, 1996.p.205-25.v3.

SENGE,P.M. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 2.ed. São Paulo, Círculo do Livro/Best Seller, 1998.

TAYLOR, F.W. Princípios da Administração Científica.7.ed., São Paulo, Atlas, 1970.