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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Cuidando do corpo morto: um relato de experiência

 

Caring for the dead body: an experience report

 

 

Alyne de Medeiros AlvimI; Camila de Oliveira SantosII; Nébia Maria Almeida de FigueiredoIII; Teresa ToniniIV

IAcadêmica do 7º período da EEAP/UNIRIO. Rua Maranhão, 473. Casa 20. Méier. RJ. CEP-20720-230. e-mail: alynemedeiros@globo.com Tel.: 2596-8718
IIAcadêmica do 7º período da EEAP/UNIRIO .Bolsista do CNPQ
IIIProfessora Titular do DEF/ EEAP/ UNIRIO, Doutora em Enfermagem, Pesquisadora CNPq
IVProfessora assistente do DEF/ EEAP/UNIRIO, Mestre em Enfermagem

 

 


RESUMO

Trata-se de um relato de experiência em uma unidade de clientes graves de um Hospital Público da cidade do Rio de Janeiro. As autoras, acadêmicas de enfermagem, vivenciaram o processo de morrer de um cliente, e o cuidado de seu corpo pós-morte. Isto gerou muitos conflitos, dúvidas, emoções positivas e negativas, carreadas de reflexões sobre o cuidado e a enfermagem. O referencial teórico utilizado foi Machado, Figueiredo (1999) e Kübler-Ross (1997).

Palavras-chave: enfermagem, morte, cuidado


ABSTRACT

This study is an experience report at a unit of patients in serious conditions of a Public Hospital in Rio de Janeiro. The authors, who are nursing students, experienced the process of a client’s death and care for the body after death. This created many conflicts, doubts, positive and negative emotions, loaded with reflections on care and nursing. Machado, Figueiredo (1999) and Kübler-Ross (1997) were used as a theoretical framework.

Key word: nursing, death, care


 

 

INTRODUÇÃO

Durante o ensino clínico supervisionado, realizado na Emergência de um Hospital de Grande Porte do Município do Rio de Janeiro, através da Disciplina Atenção à Saúde do Adulto e do Idoso II, da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto-UNIRIO, nós autoras nos deparamos com sentimentos nunca vividos anteriormente ao nos deparar com a morte, e com os cuidados de enfermagem pós-morte. Por isso, sentimos a necessidade de elaborar este estudo para relatar esta experiência frente o preparo do corpo morto.

Tudo começou quando a enfermeira perguntou para a médica: "morreu?" e a médica respondeu : "morreu". Após este fato o professor que estava nos acompanhamento falou que podia deixar que nós (inclusive ele) prepararíamos o corpo. No mesmo momento, uma olhou para os olhos da outra, e apesar do uso da máscara uma sabia o que a outra estava sentindo. O impacto de estarmos perante a morte de um desconhecido e de preparar o corpo, denominado pela equipe staff como "pacote", nos causou diversos sentimentos, como : medo, pavor, tristeza, insegurança, nervosismo, ansiedade, angústia, aflição, dentre outros.

Sentimentos também vivenciados por Fontes et al. (1995, p. 7) ao afirmarem que a morte de um estranho deveria impressionar-nos pouco, mas, apesar disso, sentimo-nos perturbados, porque essa morte nos faz lembrar que também somos mortais.

Foi uma experiência, que talvez jamais quiséssemos vivenciar, mas o que podíamos fazer ? Estávamos ali para aprender, e os nossos olhares estavam dizendo é difícil, mas faz parte da nossa profissão.

Como diz Virgínia Henderson apud Fontes et al. (1995,p.7) uma das inerentes funções dos enfermeiros é assistir o indivíduo doente ou são, na realização das atividades que contribuem para a saúde, para a reabilitação ou para a morte serena.

Além dos sentimentos vivenciados, outros aspectos foram observados como: taquicardia, dor no fundo do coração, tremor e sudorese fria nas extremidades. Sinais e sintomas sentidos talvez por pensarmos que poderíamos ser nós mesmas ou uma pessoa próxima em cima daquele leito, morta. Foi a pulsão da morte contida em nossos corpos, gerando pavor pelo medo de morrer comum em todos os mortais. Uma luta contra a própria realidade da vida (Eros) – a morte (thanatos) (Figueiredo et al., p.139), desencadeando os sinais e sintomas descritos devido à liberação de enzimas como as adrenalinas e prostaglandinas.

Ao iniciar o preparo do corpo apesar de termos a presença do professor e do conteúdo teórico - prático ministrado há dois períodos, não sabíamos que passo dar, tínhamos aflição até de tocar o corpo. Sentimo-nos como estátuas de movimentos lentificados, se é possível tal descrição.

....Vê se confrontado com a necessidade de ser forte e de demonstrar auto- controle. Esta é uma das exigências que faz a si próprio e que aparece também como resposta às expectativas de seus colegas. Perante tais situações, o enfermeiro vê-se perante uma encruzilhada: ou aceita esta realidade ou entra em stress. ( Nursing- edição portuguesa)- Revista Técnica de Enfermagem, nº 85- fevereiro 95- Ano 8- Lisboa. Portugal)

E aquele olhar?...Outra aflição nossa era perceber o olhar do cliente. Era um olhar vidrado, sem direção. Ao tentarmos fechar os olhos estes pareciam não querer ser fechados, como se houvesse a necessidade de dar continuidade àquele olhar sem rumo. Aos poucos fomos retirando os eletrodos que não mais davam sinal de vida, a sonda vesical, a sonda nasogástrica, o tubo endotraqueal (que estava obstruído com uma secreção serosanguinolenta em quantidade abundante que escorria por toda a face do cliente - que nojo!!! ), e a fralda. Após, começou a escorrer sangue pelo nariz que logo foi contido pelo tamponamento dando a impressão que estivéssemos asfixiando aquele cliente já morto, além do tamponamento da boca. Amarramos seus pés de forma cruzados, os braços sobre o tórax em forma de X, e sua cabeça fazendo o contorno até o queixo de forma a fechar a boca. Por fim, o enrolamos com um lençol branco e o colocamos identificação com uma etiqueta contendo seus dados pessoais. Em poucos minutos chegaram os funcionários da administração perguntando: "cadê? cadê"? Para eles algo comum do dia-a-dia, e saíram levando aquele corpo morto.

O que nos afligiu, o que nos aflige até hoje ao lembrar do acontecimento, e talvez o que sempre nos afligirá é a questão de não sermos treinadas a cuidar de um corpo morto, a lidar com morte, até porque não tenha como ser treinado para essa questão por ser algo de cada um, cada sujeito sente e reage à morte de uma forma, a partir de suas próprias experiências, expressando ou reprimindo seus sentimentos.

Para Machado apud Figueiredo et al. (1998), ressalta que associar o cuidado à morte ainda é um risco necessário, pois é preciso verificar como as enfermeiras se comportam diante dela. O referido autor acredita que as(os) enfermeiras(os) ainda não compreenderam bem o sentido da morte, e o cuidado que fazem com o moribundo é sempre para manter a vida.

Não sabíamos como lidar com o corpo pós-morte, no que referia a sua alma, ao seu espírito e sua religião. Isso nos afligia muito, pois tínhamos a impressão que aquele corpo estava com sua alma ali, naquele momento, como se estivesse presenciando todo aquele ritual, e nos observando. Será que tínhamos que pedir licença para tocar naquele corpo? Será que tínhamos que fazer uma oração? Mas qual seria a religião daquele ser? Teria que ser na nossa religião? Diante destas dúvidas, acabamos sem orar. Atualmente a ciência timidamente começa a aceitar que há algo além do corpo material, algo que ainda não podemos entender. Kubler-Ross (1997, p.13) afirma que a ciência não explica como alguém com morte cerebral é capaz de ler o número da placa de um carro e que ... os cientistas carecem de humildade. Temos que ter humildade para aceitar que há milhões de coisas que não podemos compreender, mas que nem por isso deixam de existir, de ser verdadeiras.

Por este estudo ser uma reflexão da prática, buscamos a compreensão de espiritualidade em Figueiredo et al. (1998). que afirmam:

Pensar no espírito é acreditar e manter o cliente ligado em sua fé, rezando e meditando ou criando um clima para que ele exerça, se puder, a sua religião ou que essa Dama de Branco reze por ele, mesmo que sua religião seja outra, não seja a dele.

Como seria a reação da família? Nós que teríamos que avisá-la?

Comunicar à família que o doente morreu não é tarefa fácil. O enfermeiro vê-se confrontado com uma grande pressão. A família poderá expressar vários sentimentos como: negação, aceitação, raiva, solidão, isolamento, culpa e choro.Por vezes apresentam mais do que um. Perante esta ambivalência o enfermeiro pode sentir-se incapacitado." Nursing – edição portuguesa- Revista Técnica de Enfermagem, nº 85- fevereiro 95- Lisboa. Portugal

Exatamente, nossa sensação de impotência perante à morte já que não tínhamos "mais nada a fazer". Esperamos, que se tiver uma próxima vez , os sintomas e sentimentos observados anteriormente não estejam presentes , já que ao relatarmos esta vivência sentimos tudo vir à tona novamente e isso nos fez sentir mal. A todo instante olhávamos para outros clientes que estavam muito graves e pensávamos: Será que vai morrer? Será que teremos que preparar outro corpo ? Será que vamos suportar?

Não sei o que incomodava mais, se era o descaso da equipe perante o corpo morto, talvez pelo hábito de vivenciarem sempre esta situação, os fazerem agir assim; ou a real presença do corpo morto estando "encerrados" os cuidados de enfermagem prestados por nós após o preparo. Cremos que o fato da morte se tornar um hábito na vida de algumas pessoas não seja justificativa para tratar o ser humano com desatenção. Porque o cuidado é o objeto fundamental da prática de enfermagem e acreditamos que é ele que dá sustentação à profissão e esse cuidado tem um compromisso com a vida – Eros – e com a morte – thanatos – muitas vezes podendo tornar-se aquele que se mantém entre a vida e a morte (Figueiredo et al., 1998).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos o objetivo do trabalho concretizado à medida que este se concentra no relato de experiência sobre o corpo morto das autoras.

Viver e refletir sobre a experiência da realização do preparo do corpo representou para as autoras desse trabalho um importante passo no continnum da profissão. Também, possibilitou ampliar a visão do cuidado de enfermagem e compreender que cuidar do cliente independe do seu estado vital, o corpo morto deve ser cuidado da mesma forma como prestamos ao corpo vivo.

Além disso, ao nos deparamos com a atual discussão da doação de órgãos para transplantes e o cuidado que se é exigido com o corpo morto até que se aguarde a confirmação da MORTE CEREBRAL e a efetivação da doação; nos fez pensar se o cuidado de enfermagem considerará formas eqüitativas ao corpo com Eros e Thanatos. Mas, isto ficará para um outro estudo.

 

Referências bibliograficas

Revista Nursing (edição portuguesa) - Revista Técnica de Enfermagem, nº85- fevereiro 95- Lisboa. Portugal, pág.: 7 à 10.

Kubler-Ross, E. A Morte- um amanhecer. São Paulo: Pensamento, 1997.

Figueiredo, Nébia; Machado; Porto, Isaura; Ferreira, Márcia; Marcas da Diversidade. A dama de branco transcendendo para a vida/morte através do toque, 1998.