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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002

 

Enfermeiro: o papel que se define nas relações conflituosas*

 

Nurse: the role defined in conflicting relations

 

 

Laura Filomena Santos de Araújo NettoI; Flávia Regina Souza RamosII

IProfa. Ms. da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso, integrante do Grupo de Pesquisa ARGOS – Processo de Trabalho e Conhecimento em Saúde e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Fundamental da EERP-USP. E-mail: laurafil@eerp.usp.br. Fone res.: (16) 621-8286
IIProfa. Dra. em Filosofia da Enfermagem do Depto. de Enfermagem e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Saúde, Trabalho e Cidadania, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

 

 


RESUMO

Este estudo procurou compreender o processo de construção de identidade do enfermeiro enfocando a tipificação de seu papel. Trata-se de uma abordagem qualitativa em que se buscou privilegiar a compreensão de significados e as relações dos seres numa dada estrutura. O papel do enfermeiro, social, cultural e historicamente estabelecido, mostrou assumir significados localmente constituídos no cotidiano do trabalho, na mediação de cada ser e seu trabalho e nas interfaces dos papéis dos diversos trabalhadores.

Palavras-chave: papel, enfermeiro


ABSTRACT

This study aimed to understand the nursing identity construction process, focusing on the characterization of his or her role. A qualitative approach is adopted, seeking to privilege the understanding of meanings and the relations between individuals in a given structure. The social, cultural and historical roles of the nurse showed to acquire locally constituted meanings in daily working practice, in mediating each individual and his/her respective task and at the interface of different staff members’ roles.

Key words: role, nurse


 

 

INTRODUÇÃO

Neste estudo veremos que aquilo que está mais ou menos corporificado numa tipificação de Papel - o Enfermeiro - assume significados localmente constituídos no cotidiano do trabalho, na mediação de cada ser e seu trabalho através dos papéis (mas não somente, pois nem todos os usos e comportamentos estão inclusos na tipificação do papel) e, ainda, na interface trabalhador/trabalhador que se dá no exercício do papel de cada um num espaço e tempo determinado. Entendemos que os saberes e fazeres do enfermeiro operam e expressam identidades, contudo as contradições - Ser e Papel, existem.

 

OBJETIVO

Compreender a construção do papel do enfermeiro nas relações do cotidiano de trabalho.

 

METODOLOGIA

Trata-se de pesquisa qualitativa, abordagem que melhor permite privilegiar caracteres nucleares do objeto investigado: os significados, a relação tempo/espaço/realidade e as relações dos seres humanos numa dada estrutura.

Nossa escolha para espaço de pesquisa foi um hospital do Sistema Único de Saúde, localizado no município de Cuiabá. O grupo pesquisado inicialmente foi formado por enfermeiros; contudo, no decorrer do estudo outros trabalhadores foram incluídos, pois a construção de identidade se mostrou determinada em relação à outras práticas e outros saberes, sendo um processo fortemente relacional (visualizamos esta inter-relação através de relações não somente conflituosas). Portanto, o outro participa desta construção de identidade, em especial se relacionando com e podendo dizer quem é o enfermeiro. Contudo, é importante atentarmos para quem fala, de onde fala e quando fala, pois as relações envolvem diversos trabalhadores e seus campos de saber/poder.

Os dados coletados (a relação pesquisadora-sujeitos, durante a coleta de dados, obedeceu as orientações da Resolução CNS 196/96, sobre a ética em pesquisa com seres humanos) foram ordenados, classificados e agrupados através dos sentidos apresentados, procurando manter a inter-relação de seus significados. Em sua análise utilizamos estudos sobre Identidade e Identidade Tipificada (Berger; Luckmann, 1973), estudos sobre Poder (Foucault, 1979a, 1979b) e diversos estudos da enfermagem sobre a constituição do saber na saúde (Almeida; Rocha, 1989; Gomes, 1997; Pires, 1989).

A Identidade é um produto da dialética homem/mundo de onde emergem as identidades individuais - fenômeno importante da realidade subjetiva; e os tipos de identidade - fenômeno relativamente estável (cristalizado) da realidade social objetiva (Berger; Luckmann, 1973).

O Poder foi compreendido como produtivo, relacional e em rede (Foucault, 1979a, 1979b), pois no cotidiano do trabalho, a concepção de poder não se limita ao campo do trabalho, como poder externo aplicável ao trabalhador e aos processos de produção, mas incorpora o trabalho como ação humana essencial, também constituinte de uma identidade humana histórica e expressão da rede de elementos que participam desta construção, entre os quais o poder tem papel estruturante e subjetivante.

À noção de poder relacional acrescentamos a noção de poder sobre o corpo. Este, é uma tecnologia de poder que acarreta uma progressiva organização da vida social através de rituais meticulosos que têm como objetivo o corpo, constituindo o poder disciplinar (Foucault, citado por Maia).

Interessa-nos esta compreensão pois na constituição da medicina moderna, e sua centralidade no complexo hospitalar, houve a definição do corpo como objeto do trabalho médico e, com isto, o seu domínio. O corpo passa a ser objeto de saber médico e alvo do seu poder, e esta ocupação dos corpos pelo poder permite a sua sujeição - docilidade e utilidade.

Sobre o corpo o saber médico definiu seu objeto e construiu o seu conhecimento – o objeto foi concebido e essa concepção foi fundamentada cientificamente se estruturando sobre ciências positivas, das quais derivou a medicina experimental. Esse objeto, apreendido por essas ciências positivas e tornado Objeto do trabalho, passa a ser aceito como o verdadeiro e único, sendo outros objetos e saberes desqualificados por não verdadeiros, passando tal atributo do plano do conhecimento para a legitimação no processo de trabalho em saúde (Gonçalves, 1994).

Diversos trabalhos em enfermagem abordam a questão da constituição da medicina moderna e sua centralidade na saúde, assim como a constituição deste saber e a definição do seu objeto. Dentre eles, Pires (1989) reconhece a relação saber e poder que impõe o saber médico no ato de saúde e subordina ao seu poder os demais profissionais; Leopardi (1994) aborda a centralidade do poder médico a partir da reestruturação dos hospitais onde se deu a ascendência política do saber médico; Almeida e Rocha (1989) falam da reordenação do espaço confuso do hospital através da disciplina cujo exercício, enquanto poder disciplinar, foi confiado ao médico a partir da transformação do saber médico; o saber se traduziu em poder e se cristalizou no topo da hierarquia hospitalar, ao qual a prática de enfermagem se subordinou numa relação de dependência; Gomes et al. (1997) abordam, igualmente, a constituição do hospital como modelo de cura e o corpo como objeto de medicalização atingido pelo saber e poder médico; Caponi (1997) aborda o poder como eixo de produção - o poder que produz saber, individualidades e subjetividades, e nos produz.

Às relações de poder, acrescentamos o saber que media, igualmente, as relações, determinando a cada trabalhador um seu lugar. O papel do trabalhador no campo de saúde se delimita, em especial, através do saber, e este se encontra estruturado em termos de poder. Poder, saber e papel estão inter-relacionados e há de se buscar o sentido tecnológico do saber, contido "... nas relações sociais significativas" (Gonçalves, 1994, p.90) em que tal saber se processa e se insere.

Desta forma está constituída e configurada a centralidade do médico (e do seu saber, poder e papel) no trabalho em saúde, em torno do qual figuram os demais trabalhadores, entre os quais, de enfermagem, numa relação, em geral, conflituosa.

 

O PAPEL QUE SE DEFINE NAS RELAÇÕES CONFLITUOSAS

A auto produção do homem é sempre necessariamente um empreendimento social (Berger; Luckmann, 1973) sendo que nas relações, em dinâmica tensão, os conflitos estão presentes e foram observados enquanto importantes construtores da identidade do trabalhador. Através do conflito se confrontam e se (re)delineiam os atributos e os afazeres, sobrepõem-se os campos de poder exercido por cada um e, também, pelo conjunto de trabalhadores. Por isso, é na relação de conflito e na forma como os seres respondem aos mesmos, através de suas escolhas, que continuamente ocorre o (re)delineamento, a (re)definição de papel.

Propusemo-nos a observar as relações de um cotidiano de trabalho procurando identificar os conflitos; nestes, os trabalhadores envolvidos, as suas causas, os dilemas para o enfermeiro, as atitudes/ações adotadas pelo mesmo, a condução do conflito e as estratégias utilizadas.

O trabalhador enfermeiro e o médico estiveram envolvidos nos conflitos observados com maior freqüência; contudo, existiram relatos de conflito do trabalhador enfermeiro com outros trabalhadores e com familiares de paciente. Foram pouco observados conflitos com trabalhadores de nível técnico de enfermagem assim como com o coordenador de enfermagem.

Ressaltamos que os trabalhadores se articulam no espaço do trabalho a todo o momento e, mesmo considerando que determinados trabalhadores mantêm mais intensa relação no espaço e tempo do trabalho, o envolvimento conflituoso entre trabalhadores dependerá não tanto da proximidade dos mesmos, mas dos dilemas que envolvem suas relações – localmente e historicamente constituídos. Neste estudo, os dilemas e suas causas estão situados na arena de definição de papel.

As causas de conflito envolveram, em geral, a definição de papel do outro trabalhador, do papel tipificado do enfermeiro (autonomia, competência, atribuições, responsabilidades e exercício do papel) e a definição do seu próprio Ser.

As tensões e conflitos freqüentemente ocorreram nas situações de interdependência de trabalho em torno da situação de assistência; tiveram suas causas localmente situadas no cotidiano do trabalho, contudo perpassam as relações não só neste Espaço e Tempo.

[Enfermeira relatando uma situação conflituosa entre ela e um médico]:- O paciente vai parar!Se a pressão está 8x4 não está compensada e eu não vou fazer tal medicação! [enfermeira]; - Mas eu estou mandando queridinha [médico]. - Fiz relatório...A gente sente assim: tem médico que discute com você, é o ideal:- O que está achando? [médico]; Eu falo - Não dá; - Tá bom [responde o médico]. Mas outros que não agem desta forma. (Inês Enf.).

No âmbito específico do campo de autonomia do enfermeiro (ações de gerenciamento do espaço e tempo, do pessoal de enfermagem, do cuidado), os dados indicaram uma relativa independência dos enfermeiros na condução das tensões e, mesmo, poucos conflitos nas relações; contudo, conflitos neste âmbito existiram e foram, também, bastante dependentes da qualidade das relações estabelecidas entre os trabalhadores de enfermagem.

Foi percebido estar internalizado no papel do enfermeiro o discutir com o trabalhador médico, indicando quanto é marcante o papel do médico na definição do papel do enfermeiro (qual será a importância diretamente inversa?), e quanto é interessante e controverso esta identidade que se constrói nesta relação de conflito.

Então é assim, você é enfermeira porque você exerce a sua função de enfermeira, então você tem aquele apoio, porque você vai, você discute com o médico, então... (Inês Enf.).

Na causa do conflito estaria a própria necessidade de construção e delimitação do papel do enfermeiro na interface com o papel do médico; então, a causa seria a própria afirmação do seu papel.

O papel do enfermeiro estaria sendo confirmado por aquele que possui a hegemonia do saber e poder no trabalho em saúde - o médico. Este, através de sua hegemonia, detém as credenciais para legitimar o papel de demais trabalhadores da saúde. Assim, a definição de papel perpassa pela discussão da constituição do objeto de trabalho do trabalhador da saúde.

O conflito na relação ocorreu em situações diversas, dentre elas, quando o médico responsabilizou o outro trabalhador (freqüentemente o enfermeiro) por procedimentos mal conduzidos ou danos ao paciente decorrente da assistência médica prestada; ocorreu, também, quando os interesses e conflitos internos à categoria médica pressionaram o enfermeiro a se tornar intermediário ou mediador do conflito entre médico e médicos especialistas.

Uma senhora apresenta fratura de membro inferior, mas também problema clínico – diabetes; tem início de escara e está em colchão casca de ovo. Segundo a enfermeira, por ser caso ortopédico e clínico, a ortopedia não quer prescrevê-la e ela me diz que tem que pedir para os médicos do plantão, caso contrário a paciente acaba ficando sem prescrição. (Inês Enf.).

Contudo, em algumas situações de assistência do ponto de vista técnico e, especialmente, humanístico, familiares de paciente se consideraram negligenciados pelo enfermeiro e o responsabilizaram por danos ao paciente.

Em outras situações, o enfermeiro foi responsabilizado pelo médico (com freqüência frente à família de paciente) pela condução e resolução dos conflitos nas relações e das tensões decorrentes da disponibilidade e gerenciamento dos recursos físicos, materiais e humanos necessários à assistência.

O médico parece se proteger das tensões e conflitos evitando embates diretos e se responsabilizar nas situações conflituosas de assistência; atribui a condução e resolução dessas situações ao outro trabalhador, sendo que o enfermeiro alternadamente se posiciona ou é posicionado como um escudo do médico.

- O enfermeiro é aquele que está coordenando, é para quem a gente faz as queixas...

- (Pesquisador) Para quem você faz as queixas?

- As queixas, tipo assim: - Ah! Está faltando tal coisa, não tem maca, não tem oxigênio, não tem..., Acabou o material de curativo... [O enfermeiro] é um coitado que fica correndo para lá e para cá. Então, acabou hierarquizando o serviço; essa é a impressão aqui dentro (Francisco acadêmico de medicina).

Neste sentido, nas relações de conflito, especialmente entre o médico e o paciente, o enfermeiro foi freqüentemente figurado como um intermediário, mediador, diplomático, aparador de conflitos.

Vale aqui ressaltar as conseqüências do modo como a medicina foi distanciando-se do cuidar (conseqüentemente do Ser cuidado) à medida que incorporou a clínica enquanto estritamente diagnóstico e tratamento. Igualmente na enfermagem vem ocorrendo este distanciamento através do trabalho parcelar e sua focalização no corpo como objeto, e este reduzido aos sinais e sintomas de doenças. Contudo, ambos os trabalhos se diferenciam quando a enfermagem toma o Tempo e Espaço como também um seu objeto e ao procurar, ao menos como perspectiva, voltar-se para o cuidado. Almeida e Rocha (1989) consideram o cuidado como objeto da enfermagem, contudo aceitam que este objeto não está claramente definido, em especial na interface com o trabalho médico.

Em várias situações que são de exclusiva competência médica, alguns médicos legitimaram procedimentos resolvidos pelo enfermeiro. Outros reprimiram fortemente procedimentos de rotina de atendimento ao paciente, antecipados pela enfermagem, por não terem sido por eles ordenados. Da mesma forma, na relação enfermeiro e auxiliar de enfermagem, o campo de autonomia do auxiliar foi ampliado ou não através da legitimação, pelo enfermeiro, do procedimento realizado por ele.

Aqui eu já vi episódios em que se fala: - Não, não podia ter feito... E a pessoa ficar numa situação chata, tenta falar: - Não, mas... Às vezes tenta justificar falando assim: - Mas já trabalho com essa equipe há tantos anos, eu sei que tem que pegar veia! E o médico responder: - Não, mas eu não quero que pega! Não! Eu não mandei... Entendeu! Medindo o poder dele! Sabe, de vez em quando aparecem essas coisas. (Francisco acadêmico de medicina).

O que é permitido e cedido ou não - aquilo que dá visibilidade ao campo de poder específico a cada trabalhador envolvido numa relação - variou conforme a situação e os trabalhadores envolvidos; assim sendo, o poder é novamente entendido como fortemente relacional.

O tipo de poder que os enfermeiros realmente detém no âmbito do trabalho é questionado por Leopardi (1994, p.51,50) ao distinguir entre "... dirigir um grupo e discipliná-lo, entre influir nas decisões tomadas ao nível central e decisões para solucionar problemas cotidianos". Complementa, citando Lojkine, que o poder do enfermeiro é um "... poder que aparentemente se lhes é emprestado, é um poder enquadrado, delimitado e subordinado".

Heller (1991) nos lembra a relevância da categoria El limite no conceito de Espaço que, na vida cotidiana, circunscreve o raio de ação do ser a limites determinados. Assim, os trabalhadores da enfermagem restringem-se em suas ações, em especial, a este Espaço e Tempo do Cotidiano.

Apesar disto e por sua vez, a inabilidade e o descompromisso no desempenho do papel médico foram freqüentemente apontados pela enfermagem, sendo papel principalmente da enfermagem intervir junto ao médico para o atendimento ao paciente. O enfermeiro parece entender que o médico é um grande produtor de tensões e conflitos.

Contudo, não temos o ponto de vista do médico sobre o que julga ser papel do enfermeiro; também não observarmos como, e até que ponto, o mesmo produz e conduz tensões e conflitos neste cotidiano. No entanto, referindo-nos à situação culminante do conflito, onde a agressão física e/ou psíquica esta materializada, os relatos mostraram que o médico é citado geralmente como o agressor e o trabalhador da enfermagem a vítima.

Vários conflitos ocorreram decorrentes de prescrições medicamentosas não realizadas ou contestadas pelo enfermeiro por considerá-las deletérias ao paciente; neste caso o dilema para o enfermeiro seria se pode/deve, como seu papel, emitir julgamento sobre o desempenho do papel médico; e influir na ação deste médico fazendo-o modificar ou suspender a prescrição.

Observamos alguns relatos e ocasiões, não tanto de emergência, em que o enfermeiro ordenou a realização de terapêutica médica considerando a tensão/conflito a ser resolvido, a vontade e a disponibilidade do médico em resolver a situação, a qualidade da ação médica – hoje a equipe não é lá muita coisa, a própria situação – uns não esperam...outras a situação é rotineira - e considerando, também, a sua própria experiência de trabalho.

Observamos, também, alguns relatos de situação de emergência em que o enfermeiro realizou procedimento médico delegado a ele pelo próprio médico, por subentender e considerar a inabilidade aparente do médico para executá-lo, e ao considerar a sua própria experiência e habilidade na situação. Uma situação inversa foi observada, em que o médico realizou procedimento relativo ao trabalhador de enfermagem por julgar seu desempenho pouco qualificado no decorrer de uma assistência.

Logo depois da punção venosa foi instalado o oxigênio na criança e, a seguir, encaminhada para o RX. Antes do encaminhamento o médico pediu um exame de sangue e ele mesmo colheu; disse que houve muita demora 'só para pegar uma veia'. (Observação).

O dilema para o enfermeiro é apresentado como a possível reflexão que chega a empreender - sou, tenho, devo, exerço, posso, decido, responsabilizo-me, interfiro ou não - para sua tomada de decisão em torno de uma causa de conflito. Dessa forma, na definição de seu papel tipificado seria questionada sua autonomia (quais são meus espaços e limites profissionais em relação ao outro trabalhador) competência para (posso ou não discutir ordem médica), sua atribuição (devo ou não levar o prontuário para o médico que deixou de prescrever), sua responsabilidade (no sentido daquilo pelo qual o enfermeiro possa ou seja obrigado a responder) e seu exercício do papel (exerço ou não meu papel, sou ou não respeitada no exercício do mesmo); assim como a definição do seu próprio ser, uma vez considerarmos que a reflexão é, necessariamente, um empreendimento que envolve o ser por inteiro, não somente a racionalização do seu papel tipificado.

Novamente nos reportamos a Heller (1970, p.94), pois ao se mostrar como um dilema a ser resolvido, a possível reflexão empreendida pelo enfermeiro em torno de uma causa de conflito denota um certo confrontamento de si com o seu papel e uma possibilidade do ser manifestar-se, mesmo através do seu papel. Esta autora entende que o comportamento do tipo papel modifica a função do dever-ser na vida cotidiana e estereotipa os modos e os comportamentos. Neste dever ser "... revela-se a relação do homem inteiro com os seus deveres, com suas vinculações, sejam essas econômicas, políticas, morais ou de outro tipo".

Os dilemas éticos estiveram presentes nas tensões e conflitos do trabalho, ocorreram na condução da assistência e estiveram relacionados à qualidade da assistência ao paciente. Os dilemas mais freqüentes foram relativos às competências, atribuições e responsabilidades do trabalhador. O nível de responsabilidade do trabalhador no produto da assistência foi colocado freqüentemente em evidência – sentido pelo enfermeiro como nem sempre/somente pertinente ao mesmo, contudo assumindo e sofrendo, este trabalhador, uma parcela grande das responsabilidades. O enfermeiro se vê bastante pressionado por todos estes dilemas.

Quer médico, quer outras coisas, outras especialidades, a enfermeira tem que fazer... Quer dizer, o médico se vê, bonitinho para cá e a bomba ficou na mão da enfermeira! (Inês Enf.).

Heller (1970, p.89) nos diz que é comum à vida cotidiana a assimilação da hierarquia de valores morais, contudo existem "... na vida humana determinados pontos nevrálgicos nos quais se projetam muito intensamente os problemas da escolha moral. Mas esses problemas brotam do solo de uma hierarquia de valores já assimilada, que é afirmada ou negada pelo homem em questão".

Em torno da assistência ao paciente sentiram-se os conflitos mais intensos que demandaram a atitude reflexiva do enfermeiro. A hierarquia de valores da profissão de enfermagem, orientada para o cuidado humano, parece auxiliar na decisão deste enfermeiro em cada situação, mas não somente.

Nas atitudes/ações adotadas os enfermeiros apoiaram-se no conhecimento prático e teórico da enfermagem - em especial aquele imbricado ao conhecimento bio–clínico; no conhecimento das normas institucionais, em especial, das normas e rotinas; no conhecimento dos processos de trabalho desenvolvidos neste espaço e tempo – esses procedimentos a gente faz assim...; no conhecimento do seu e dos demais papéis; e nos resultados de seu próprio trabalho - que constituem parte da sua experiência de trabalho.

A ação está orientada por um saber que se constituiu em torno de um seu objeto; orientada, ainda, pelas relações estabelecidas neste Espaço e Tempo cotidiano de trabalho. Assim, saber, objeto e papel estão relacionados.

O âmbito da ação contém, ainda, as experiências do trabalhador, pois os enfermeiros utilizaram-se desses conhecimentos específicos associados às suas experiências de trabalho e de vida. Estas experiências são bastante valorizadas pelos trabalhadores velhos de casa e devem ser buscadas pelos novatos.

Também o trabalho diário que o enfermeiro desenvolve, sua postura e o seu jeito de trabalhar, parece influir nas atitudes adotadas, sendo que os trabalhadores de enfermagem valorizaram o estar junto fazendo como condição para respeitarem as atitudes do enfermeiro.

Parece existir um elo estrito entre confiança e conflito; na visão dos trabalhadores de enfermagem, a confiança está nesta experiência no trabalho, na postura, e no conhecer os papéis; e esta confiança respalda o trabalhador enfermeiro na condução dos conflitos do trabalho cotidiano.

As ações do enfermeiro também foram consideradas na dependência da qualidade das relações estabelecidas com o outro trabalhador, em especial, o nível de proximidade e de abertura permitida na relação, onde tem sempre os mais chegados, os que eu consigo mais. E, também, das trocas e do que se cede na relação.

Consideradas, ainda, na dependência da forma como essas relações estão estabelecidas em torno dos referenciais de poder dos trabalhadores, do nível de confiança construído na relação, das capacidades pessoais (técnicas, relacionais, emocionais) e das atitudes de cada trabalhador (sua postura nas relações). Ou seja, a relação pessoal estabelecida com o outro trabalhador parece influenciar na liberdade com que os trabalhadores decidem.

Tinha funcionário que eu via que era experiente, eu chegava e perguntava: - Ó fulano, dê uma forcinha aqui, sei que você tem mais experiência; ele falava: - Hum! Mas você é enfermeira. Eu falava: - eu sou enfermeira, mas sou humilde de dizer que você é uma funcionária mais experiente do que eu, você é auxiliar, eu sou enfermeira, mas eu estou aprendendo com você, a gente vai trocar informações, entendeu, o que você não souber, você pode vir perguntar para mim, que eu vou ter prazer em te ensinar. E assim como teve ‘n’ funcionários que vieram; tipo assim, funcionário que não sabia mexer, montar, deixar montados aqueles tubos do carrinho do respirador. É, eles não sabiam. Então, quer dizer, eles vieram perguntar para mim; então, quer dizer, eles começaram a sentir aquela confiança: - A gente pode perguntar para ela, que ela vai ensinar. Então comecei a ensinar como é que deixava as cânulas, certinho, para por produto, como que ia deixar para não estragar...(Silvana Enf.).

Os trabalhadores percebem diferenças entre o enfermeiro novo e velho de casa, em especial na forma como os mesmos conduzem os conflitos. Isto indica que todos os conhecimentos e relacionamentos acima descritos constituem o seu estado de experiência (ser e fazer) como enfermeiro, e influem na forma como os mesmos lidam com os processos e as relações nos momentos de pressão, conflitos e tensões, diferindo-os quanto às suas escolhas.

A condução do conflito. Observamos situações e relatos em que a atitude do enfermeiro foi de reação às imposições geradoras de dilema, posicionando-se ativamente frente ao outro trabalhador, modificando o curso do conflito. Outras, em que utilizou estratégias diversificadas para evitar confrontos diretos; outras ainda, em que os dados não possibilitaram saber se houve uma clareza de posição assumida pelo enfermeiro - se o mesmo se contrapôs ou não à ordem. Poucas foram as situações e os relatos em que disseram nada poder fazer e não se envolveram ou transferiram o conflito para outro trabalhador, considerando-se isentos ou sem condições de assumir responsabilidades. A tendência, em geral, foi de intervir nas situações.

Outras situações ainda em que, mesmo expressando quanto lhe custavam em termos de desgaste e sofrimento, assumiram para si a responsabilidade do conflito, mediando-o, conduzindo-o e, em geral, liberando o outro trabalhador da responsabilidade conjunta pela situação.

Contudo, observamos que, em geral, o enfermeiro se coloca à frente dos problemas - talvez devido à própria amplitude do seu papel onde centraliza o controle do seu plantão - e se vê quase que na obrigação de dar conta das situações que envolvem, principalmente, a assistência. Assim, o enfermeiro sofre mutuamente as conseqüências da definição de seu papel e do desgaste físico/psíquico.

O enfermeiro sente-se, ainda, constantemente pressionado e responsabilizado pelo médico pela resolutividade da assistência, e isto também lhe causa sofrimento psíquico. Pareceu haver relação entre o estado constante de vigilância do enfermeiro e este nível de pressão e responsabilidade que lhe é imputado no seu trabalho diário – anotar tudo, ver tudo - onde estar vigilante e vigiar são estratégias de prevenção para que não seja culpabilizado.

Os dados observados foram pouco expressivos da capacidade reflexiva do enfermeiro frente aos problemas e à qualidade da assistência prestada ao paciente, mas esteve presente.

- Não digo que não funciona, sabe, mas precisa você estar empurrando, sempre, falar: – Doutor, fulano de tal, vem cá, tem que ver o paciente tal... E você toma na cara! Mas assim, às vezes você nem leva, acaba não procurando, sabe, esperando que ele veja, fazendo alguma coisa... né!

- (Pesquisador) Você às vezes toma a conduta...

- Não, eu não, tipo assim, o que não é para eu fazer eu não faço. Eu chego: – Está aqui, é do senhor, paciente tal, está aqui! Se ele não fizer, eu vou lá, faço um relatório e encaminho!

- (Pesquisador) É uma forma de resolver...

- Não, isso daí não está resolvido! O problema do paciente continua. Foi resolvido o meu problema. A minha parte eu fiz, mas e o paciente? O paciente não pode ser responsável por isso. (Fátima Enf.).

De acordo com a postura mais ou menos ativa que adota, modificando ou não a direção que o conflito assume, o enfermeiro parece se sentir, em cada situação, mais ou menos respeitado ou subjugado pelo outro trabalhador.

As estratégias de condução do conflito usadas pelos trabalhadores estiveram, em geral, centradas na relação dual; apareceram poucas e limitadas estratégias que envolvessem o conjunto (ou parte) dos trabalhadores. Algumas estratégias de conteúdo mais normativo e técnico são elaboradas pela coordenação de enfermagem abrangendo parte ou todos os setores de enfermagem.

Estratégias diversificadas foram utilizadas pelos vários trabalhadores, mais elaboradas quanto mais se prestam para evitar confrontos ou dão respostas a outras estratégias utilizadas nos embates indiretos.

- Você é enfermeira, mas você é médica, um pouco médica também; e você, mais ainda, tem que saber o conhecimento da patologia, você tem que saber; tanto que um dia, que um paciente estava com sangramento e o moço [o médico] disse: - Vai fazer lavagem! E passa sonda, e o paciente está grave, e hemorragia, e vai...; - Mas doutor? - Não, vai! E toma essa lavagem! Mas está errada alguma coisa... Aí, falei: - Mas está errado! Porque eu senti aquele vômito, aquela tosse, sabe! Não era bem pelas vias digestivas, sabe... Dor nas costas, assim! Aí esperei um tempo, peguei a prancheta, olhei o RX... O paciente não tinha pulmão, né?

-(Pesquisador) Não era hemorragia digestiva?

- Não, era uma Tuberculose! Discuti com o outro médico, e ele falou: - Mas meu Deus, e agora? Falei: - Foi erro de quem? (Inês Enf.).

Embora tenhamos poucos dados observados referentes às estratégias médicas, alguns trabalhadores evidenciaram que, para evitar confrontos frente ao paciente e familiares, os médicos utilizam-se da delegação de competências e responsabilidades a outro trabalhador.

A maior parte dos conflitos, é aquela questão, o médico chega e fala: - Esse paciente não é do Box, eu preciso de vaga lá em cima; como se o enfermeiro tivesse... Criou-se o hábito de o enfermeiro saber onde tem a vaga, então: - Olha, me arranja a vaga, tira esse paciente daqui, esse paciente não é meu! Como intermediário, o enfermeiro tem uma interação com os outros setores do hospital; - Bom, arranja uma vaga lá na clínica cirúrgica, esse paciente não é para ficar no Box não; - Ah! Esse paciente não... é da clínica médica, se vira, sobe com ele. Entendeu! Joga a responsabilidade para o enfermeiro por ele ter essa... Ele acaba assumindo esse caráter bem burocrático: - Olha, você acha a vaga, porque aqui ele não vai ficar! Tipo assim: - Você, você resolve porque eu... O que eu não posso é ficar com esse paciente, eu não posso assumir essa situação, paciente não é cirúrgico, é clínico. Aí, sai o enfermeiro a correr atrás da vaga. Então fica com esse papel de diplomático, né! De cata para cá, leva para lá! (Francisco acadêmico de medicina).

Os dados mostram inúmeros artifícios e subterfúgios usados para que o embate não seja (tão) direto. Dessa forma, o enfermeiro busca estar junto, alertar, sugerir – vamos fazer um teste? Empurrar, falar, pedir, mostrar. Ou seja, nas relações o enfermeiro usa de estratégias variadas (designadas instrumentos, armas, argumentos, formas de abordagens) de conteúdo normativo, técnico, emocional e sedutor (onde pretende o envolvimento do outro) com o fim de influir, persuadir ou ter ascendência sobre o outro trabalhador para contornar os embates diretos.

Os dados mostram, também, artifícios e subterfúgios usados para que o embate não ocorra, ou seja minimizado. O enfermeiro faz, ele mesmo, a ação do outro, chegando algumas vezes a entrar no âmbito restrito de ação do outro trabalhador – comunico o médico depois que faço. Com receio de se expor, às vezes busca transferir o conflito para outro trabalhador ou envolver os familiares do paciente no conflito. Utilizam-se, de forma muito presente, as estratégias em torno do jogo de cintura e os mecanismos institucionais como, por exemplo, relatórios.

O ter jogo de cintura foi fala recorrente entendida por nós no sentido de maleabilidade incorporada ao Ser e Fazer do enfermeiro – como condição para ser um bom enfermeiro; e é na base do jogo de cintura, como estratégia, que o enfermeiro age. Ter diplomacia também foi uma fala corrente, significando estar agindo segundo um resultado que se quer alcançar; ou seja, essa capacidade de mudar suas formas de conduzir as situações de acordo como elas lhe aparecem para que se contorne ou se resolva a situação seguindo um objetivo; essa capacidade também foi referida como dever ser introjetada.

Jogo de cintura e diplomacia configuram-se num tipo de sutileza, num exercício. Sua efetiva mecânica é contornar o conflito direto, sua dinâmica é de influir ao invés de impor e sua utilidade é produzir uma ação condizente ao que se deseja. Desta forma, jogo de cintura e diplomacia podem ser entendidos como uma estruturação de ações que procura induzir, seduzir, facilitar, converter em seu favor. Configuram-se em formas variadas de poder - como possibilidade de resistência e também como estratégias de exercício do poder. As ações de resistência "... não são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível" (Foucault, 1979a, p.91).

As escolhas do enfermeiro e o curso de suas ações estiveram fortemente delimitados pelas próprias tensões e relações do espaço e tempo do trabalho. O enfermeiro demonstra conhecer, em geral, os casos e encaminhamentos necessários, e através de inúmeras estratégias consegue mais ou menos resolver os problemas e conflitos que ocorrem. Os dados mostram o quão são turbulentas, tensas e ásperas as relações neste espaço e tempo, de forma que parece haver um certo grau característico de insatisfação e sofrimento produzido no trabalho. Nas relações de conflito se sobrepõem os campos de poder exercido por cada e, também, pelo conjunto de trabalhadores; e nas escolhas que os mesmos processam os papéis são continuamente confrontados, (re)delineados e (re)definidos.

 

CONSIDERAÇÕES

O trabalho possui referência histórica e eixos estruturantes que se situam dentro e fora do próprio trabalho, incluindo elementos da ordem da própria construção do saber. Este, até certo ponto, é especificável, objetivado em modos de intervenções e tecnologias e destinado a se concretizar em instituições reconhecidas para tal. Assim é que o trabalho, enquanto tipificador de papéis, no campo da saúde se delimita, em especial, através do saber. Voltando a Berger e Luckmann (1973), o desempenho de formas de ação tipificadas – construtoras de identidades tipificadas, está vinculada ao conhecimento, estruturado por sua vez em termos de poder.

O estudo da relação saber-poder no trabalho pode contribuir para o entendimento da construção de Identidade, em especial, da Identidade Tipificada do trabalhador da enfermagem. Através do saber (dentre outros elementos) o enfermeiro vem estabelecer, na relação, a definição de seu papel.

A construção de identidade do enfermeiro apresentou-se relacionada a uma definição tipificada de identidade, constituída social, cultural e historicamente; contudo, o papel concreto do enfermeiro é um papel que se define (ou melhor, está em definição) no seu desempenho diário, nas interfaces e mediações com os outros papéis e nas relações de trabalho, num espaço e tempo cotidiano específico.

A definição de papel está configurada por entre elementos objetivos e subjetivos da esfera cotidiana - onde traços característicos reafirmam os papéis. As especificidades de cada trabalho, constituídas em torno de referenciais de saber e poder, mediam os conflitos entre os trabalhadores e delimitam à cada trabalhador seu espaço, objeto, papel.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Maria Cecília Puntel; ROCHA, Juan Stuardo Yazlle. O saber da enfermagem e sua dimensão prática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1989.

BERGER, Peter; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

CAPONI, Sandra N. C. Compaixão e disciplina na genealogia da ordem médica. Florianópolis: UFSC, 1997. mimeo.

FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979a.

_____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979b.

Gomes, E. L. R. et alii. Dimensão histórica da Gênese e incorporação do saber administrativo na enfermagem. In: ALMEIDA, M. C. P.; ROCHA, S. M. M. (Orgs.). O trabalho da enfermagem. São Paulo: Cortez, 1997. p.229-250.

GONÇALVES, Ricardo B. M. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec - Abrasco, 1994.

MAIA, Antônio C. Sobre a analítica do poder de Foucault. Tempo social, São Paulo, v. 7, n.1-2, p.83-103, out., 1995.

PIRES, Denise. Hegemonia médica na saúde e a enfermagem: Brasil - 1500 a 1930. São Paulo: Cortez, 1989.

 

 

* Este artigo foi elaborado a partir da Dissertação de Netto (2000), apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso