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An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. Maio. 2002

 

Sobre a comunicação como competência humana na liderança do enfermeiro

 

About communication as a human competency in nursing leadership

 

 

Maria Auxiliadora TrevizanI; Gilberto Tadeu ShinyashikiII; Isabel Amélia Costa MendesI

IProfessora Titular, Departamento de Enfermagem Geral e Especializada de Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Pesquisadora 1A CNPq
IIProfessor Doutor da Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade da Universidade de São Paulo, Campus Ribeirão Preto, Psicólogo e Diretor do Departamento de Recursos Humanos da Reitoria da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Trata-se de ensaio que traz à reflexão a atuação do enfermeiro, enquanto gerente ou líder, no contexto da prestação de serviços. Através de delineamento sobre o gerenciamento autoritário praticado por este profissional e de considerações sobre sua compreensão, sentimento e resistência, aborda-se a liderança que pode ser exercida em consonância com métodos e recursos organizacionais contemporâneos, na perspectiva da comunicação como competência humana.

Palavras-chave: comunicação, liderança, gerenciamento, enfermeiro


ABSTRACT

This essay reflects on the performance of the nurse as a manager or leader in the context of service rendering. The authoritarian management practiced by this professional is outlined and considerations are made about his understanding, feelings and resistance. This way, leadership is approached in consonance with contemporary organizational methods and resources, from the perspective of communication as a human competency.

Key words: communication, leadership, management, nurse


 

 

A Comunicação a serviço da saúde, tema deste simpósio, nos remete à reflexão sobre a atuação do enfermeiro – gerente ou líder – no contexto da prestação de serviços. Portanto, após um delineamento sobre o gerenciamento autoritário exercido pelo enfermeiro – compatível com os pressupostos racionais e científicos incorporados pela administração durante a vigência da sociedade moderna, e considerações sobre sua compreensão, sentimento e resistência, nosso propósito com este ensaio é abordar a liderança que esse profissional poderá exercer na unidade de internação, tendo em vista métodos e recursos organizacionais contemporâneos, focalizando a comunicação como competência humana.

 

Gerenciamento do enfermeiro face às expectativas da modernidade

A performance organizacional e gerencial fundamentada na racionalidade e na ciência foi, no âmbito do trabalho, a característica determinante da sociedade moderna. Demarcando a execução do trabalho, projetando o avanço tecnológico e conduzindo o comportamento dos trabalhadores ao inabalável alargamento da burocracia, as organizações se empenharam no desenvolvimento de competências técnico-operacionais, de controle dos processos e da conduta de seus integrantes.

Na idéia de modernidade há a compreensão de que o ser humano é o que ele faz. Em sua reflexão crítica sobre esta questão, Touraine (1995) argumenta que o homem é, primordialmente, um ator social que tem papéis definidos a desempenhar visando contribuir para o bom funcionamento do sistema – para o autor, é estritamente nesse sentido que o homem torna-se útil socialmente, uma vez que o mundo moderno não reconhece simultaneamente suas vivências particulares e seu acesso ao universal.

Esse modelo, fertilizado pela cultura da razão, foi consagrado nas industrias e, em conseqüência de sua efetividade em termos produtivos e econômicos, é inserido nas organizações prestadoras de serviços à saúde que passam a utilizar os princípios da administração científica tendo em perspectiva o fazer do trabalhador.

Especificamente em relação aos serviços de enfermagem, os enfermeiros comprometem-se com a situação vigente e priorizam o desenvolvimento da competência técnica na prestação de cuidados ao cliente.

Parafraseando Srour (1998) podemos dizer que, como prática social, as organizações de enfermagem se estruturam através das relações coletivas que são mediadas pelos meios de produção de serviços; portanto, são distintas das relações interpessoais. Enquanto que as relações coletivas se caracterizam pela impessoalidade e formalidade, as relações interpessoais envolvem as subjetividades dos agentes individuais, assumindo o caráter da informalidade, e descartam a mediação dos meios de produção. As relações coletivas abrangem as relações de poder, as relações de saber e as relações de produção, sendo estas últimas determinantes do estabelecimento das relações coletivas (SROUR, 1998). Este autor vinculou uma correspondência entre ethos – caráter cultural de uma coletividade – e os tipos de relações coletivas:

Ethos autoritário relações de dependência;

Ethos totalitário relações de sobredependência;

Ethos liberal relações de independência;

Ethos democrático relações de interdependência.

Salienta que as relações mantidas entre os agentes são atreladas às duas orientações de pensamento (autoritária ou libertária) e aos quatro modos de exercer o poder: totalitário, autoritário, liberal ou democrático.

O campo da enfermagem e sua relação com outros serviços hospitalares têm sido caracterizados pelo Ethos autoritário. Desta forma, preponderam as relações de dependência, ou seja, relações autoritárias no pensamento e na forma de gerência que se configuram na superioridade e na subordinação, na imposição e no conformismo, existindo incapacidade dos agentes para o desenvolvimento da auto-orientação e iniciativa própria. Tais relações são comuns em organizações burocráticas. Na unidade de internação, o gerenciamento autoritário então exercido pelo enfermeiro pauta-se, sobretudo, na provisão e no controle rígido de materiais e equipamentos e na supervisão rigorosa dos procedimentos executados pelos trabalhadores. Qualquer iniciativa de autonomia, criatividade ou inovação do enfermeiro é bloqueada pelas chefias imediata e mediata, e o enfermeiro, por sua vez, também impede iniciativas que possam ser tomadas pelos gerenciados. Fundamentado e comprometido com esse modelo, o enfermeiro atua como extensão do poder da posição central da organização, ou seja, representa o administrador hospitalar na unidade de internação (TREVIZAN, 1988). A esse contexto, soma-se a hegemonia do médico que desfruta de alto poder derivado do conhecimento relacionado ao tratamento e à cura do cliente. A interferência autoritária do médico na esfera de ação do enfermeiro é amplamente reconhecida.

A comunicação entre os integrantes da enfermagem e destes com os pacientes, nesse ambiente hospitalar, se restringe aos fatos relativos ao fazer, tendo em vista o cumprimento das tarefas e das ordens médicas. A análise de Mendes (1994) ilustra esta situação. Esta autora evidenciou que na atuação dos profissionais de enfermagem, do hospital estudado, não se explicita a presença de suas pessoas, apenas de seus papéis, alegando que esta condição delimita uma identidade de atos comunicativos que, por sua vez, projeta uma relação profissional mecanizada e despersonalizada. Utilizando o Paradigma Categorial de Bales, Mendes (1994) especificou a comunicação ocorrida entre enfermeiras e pacientes, constatando que de 900 unidades de interação trocadas entre eles, 90,7% são relativas a área neutra, ou seja, centradas em tarefas.

Desta forma, estes métodos e posturas utilizados deixam de observar o homem – trabalhador e cliente – na sua dimensão total e integradora. Aqui, o ser humano não tem voz, não tem expressão. Portanto, sua comunicação mais essencial não é ouvida e nem sentida.

 

Compreensão, sentimento e resistência: as mensagens do enfermeiro

Através de encontros freqüentes com enfermeiros gerentes da área assistencial, temos ouvido depoimentos a respeito de sua estafante rotina correlacionada a paradigmas tradicionais que não se adequam e nem respondem à realidade que se impõe nos serviços. Os enfermeiros estão compreendendo que o modo de alcançar a eficiência e a eficácia operacional, sobretudo fundamentado nos velhos padrões da divisão do trabalho com excessiva fragmentação técnica e impessoalidade, no cenário da assistência ao cliente hospitalizado, tem representado sua desmotivação e frustração, bem como de seu pessoal colaborador. Estão sentindo que manter o passo no ritmo estabelecido, incentivado pelo poder instituído, tem impossibilitado o trânsito de outras alternativas de gestão mais viáveis e compatíveis com valores da nova ordem social emergente. Em outros termos, podemos dizer que estão conscientes de que a visão de mundo que suportou as conquistas do passado revela-se incompetente para nossos dias.

Enfim, o enfermeiro gerente tem demonstrado, através de discursos, constrangimento e inconformismo com a prática cotidiana de enfermagem exercida no hospital. Se por um lado tal prática é caracterizada pela dominação, por outro, os enfermeiros têm utilizado mecanismos de resistência em oposição às relações de dominação presentes em sua área profissional. Nóbrega-Therrien (2001) percebeu, através de relatos de enfermeiras, que a dominação ao se concretizar em ações visíveis produz efeitos diretos que evidenciam relações desiguais no comportamento da enfermeira. "Quando é dominada, ela evita conflitos, responde com paciência, busca diálogo, utiliza o conhecimento... Quando domina, utiliza autoridade, norma, rotina, escala, punição, troca de setor, transferência, persuasão e/ou diálogo". Estas relações remetem conseqüentemente à resistência. Para a autora, as estratégias de resistência, na maioria das vezes individuais e informais, utilizadas pela enfermeira "estão relacionadas com atitudes que envolvem omissão, acomodação, adesão e inovação..." . Ainda que de forma negativa, as enfermeiras – sujeitos da pesquisa de Nóbrega-Therrien (2001), consideram essas atitudes como meios de resistir à dominação.

Dos encontros que temos tido com enfermeiros de diferentes regiões do país, também percebemos, de sua parte, a adoção de respostas semelhantes de resistência, principalmente no que refere à acomodação e omissão ; além disso, os enfermeiros estão demonstrando alguns comportamentos de independência. Essas atitudes adotadas pelos enfermeiros estão refletindo diretamente nas relações com outros profissionais da área hospitalar e com seu pessoal colaborador nas ações de enfermagem.

Por sua vez, o profissional colaborador (técnico e auxiliar de enfermagem) tem, cada vez mais, apresentado resistência, reproduzindo o comportamento observado nos enfermeiros.

No nosso entender os enfermeiros, e demais integrantes da enfermagem, ao responderem com resistência ao modelo autoritário estão buscando nas relações de independência, coadunadas ao Ethos liberal, novas formas de convivência no trabalho. As relações de independência focalizam a autonomia individual, a própria iniciativa e "a crença na necessidade de o agente adquirir uma posição socialmente reconhecida, contando tão-somente com as próprias forças...cujos vetores são o mérito, o desempenho, a qualificação crescente, o primado do indivíduo como mestre de seu destino" Srour (1998). Seus princípios alertam o indivíduo para a necessidade de responder completamente por suas ações e seus fracassos. Estas relações atribuem valor ao modo de gestão liberal no qual a impessoalidade e o profissionalismo são a tônica, permeados pela sociabilidade e capacidade de trabalho conjunto em equipe – os gentes sociais cooperam para manter a segurança coletiva e para enfrentar problemas comuns.

Contudo, essa mudança de gerenciamento do enfermeiro, no âmbito da unidade de internação, alicerçada nas relações de independência, parece-nos inadequada. De um comportamento autoritário, de uma mentalidade de comando e controle, o enfermeiro está passando a assumir condutas liberais, deixando seu colaborador à vontade, sem orientação, resultando no afrouxamento dos critérios da assistência que busca a excelência. Temos convicção de que o trabalho de enfermagem – assistencial e gerencial – não pode ser balizado nas relações de independência.

Pela natureza das ações de enfermagem, pela essência de seus serviços e cuidados, suas relações de produção devem determinar o estabelecimento de relações coletivas fundamentadas no Ethos democrático e nas relações de interdependência. Estas relações realçam o espírito de cooperação, a co-responsabilidade e a cidadania. Retratam vínculo e convergência à volta de objetivos definidos através de consenso. Facilitam a atuação democrática dos vários profissionais em agregados que buscam a plena integração através da complementaridade. Enfim, nas relações de interdependência os agentes interdisciplinares se ajudam mutuamente, contribuem com sinergia para o enfrentamento de questões ou problemas comuns, compartilhando o compromisso coletivo.

Assim sendo, acreditamos que compete ao enfermeiro assumir uma postura diferente, transcendendo o gerenciamento que tem exercido. Estamos falando de liderança para a revitalização das organizações de enfermagem. Trata-se de um desafio para os enfermeiros que visualizam além do tempo presente e que acreditam fortemente na finalidade da enfermagem.

 

Liderança do enfermeiro na perspectiva contemporânea – enfoque sobre a comunicação como competência humana

A liderança na perspectiva contemporânea, ou seja, na era do capital humano, é relação entre líder e liderados, cujo foco é o desenvolvimento e a exploração do potencial do trabalhador nas dimensões pessoais e profissionais. É um processo que substitui o comando e o controle sistemáticos pelo estabelecimento conjunto de uma direção para a organização.

Kotter (1996) esclarece que a criação de uma visão do futuro e o desenvolvimento das estratégias necessárias para concretizá-la, sustentam a direção estabelecida. A definição de uma visão do futuro, segundo Kotter (1999), contém mais características emocionais que racionais. Exige tolerância com a desordem, com a incerteza e com os contratempos, e a aceitação dos retrocessos que normalmente se seguem aos avanços. Argumenta o autor que as exigências do cotidiano levam ao conflito; contudo, enfatiza que visões efetivas devem ser objetivas para a condução do processo decisório e flexíveis para acolher iniciativas individuais.

Para alinhar o pessoal nesse processo, o líder deve comunicar enfática e amplamente a visão e a direção a ser tomada, para que todos, especialmente as pessoas relevantes, as compreendam e acreditem na sua validade e viabilidade. Através de suas próprias crenças e convicções o líder inspira as pessoas à ação e delega poderes para que ajam a favor da visão, tendo em vista que quando seu progresso se deparar com problemas mais sérios, as pessoas tenham energia e disposição para romper as barreiras e superar questões políticas e burocráticas (KOTTER, 1996).

Desta forma, é preciso contar com trabalhadores comprometidos. Ao tratar do comprometimento do funcionário como vantagem competitiva, Dessler (1996) constatou que líderes que se envolveram em práticas e formulação de políticas concretas de pessoal, fundamentadas, dentre outras, na valorização da pessoa, diálogos de mão dupla, comunhão, segurança, tratamento justo e realização, tiveram como resultado forte comprometimento dos funcionários. Davenport (2001) relata que nos tabalhadores que apresentam elevado comprometimento com a organização e com o trabalho, podem ser observadas as seguintes características: "valorizam os aspectos inerentes a seu trabalho; valorizam relacionamentos sociais que estabelecem no trabalho e as recompensas financeiras que recebem; seu desempenho é superior ao das pessoas com níveis de comprometimento e envolvimento mais baixos; eles tendem a preservar seus laços com a empresa".

Essa alternativa de liderança apresentada, alicerçada na compreensão e no compromisso, em nosso entender, se ajusta às necessidades do líder e dos liderados das organizações de enfermagem e estão em sintonia com as relações de interdependência que devem pautar as relações coletivas nesses serviços.

Nessa perspectiva de liderança, a comunicação é configurada como competência humana, levando ao desenvolvimento da autenticidade.

 

Referências bibliográficas

TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 1995.

SROUR, R. H. Poder Cultura e ética nas organizações. Rio de Janeiro, Campus, 1998.

TREVIZAN, M.A. Enfermagem Hospitalar: Administração & Burocracia. Brasília, UnB, 1988.

MENDES, I.A.C. Enfoque humanístico à comunicação em enfermagem. São Paulo, Sarvier, 1994.

NÓBREGA- THERRIEN, S.M. Dominação e resistência no trabalho da enfermeira. Ver. Brás. Enferm., Brasília, v.54, n.3, p.420-426, jul/set., 2001.

KOTTER, J.P. As novas regras. Trad. José Carlos Barbosa dos Santos. São Paulo, Makron Books, 1996.

KOTTER, J.P. Fazendo a mudança acontecer. In: HESSELBEIN, F.; COHEN, P.M. (ed). De líder para líder. Drucker Foundation. Trad Nota Assessoria. São Paulo, Futura, 1999.

DESSLER, G. Conquistando comprometimento. Trad Marisa do nascimento Paro. São Paulo, Makron Books, 1996.

DAVENPORT, T.O. Capital Humano: o que é e porque as pessoas investem nele. Trad. Rosa S. Krausz. São Paulo, Nobel, 2001.