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An. Col. franco-brasileiro sobre a clínica com bebês Ene. 2005

 

Interpretação e hermenêutica no surgimento do sujeito

 

 

Rosa Maria Marini Mariotto

Endereço Institucional

 

 


RESUMO

Este estudo pretende discutir o papel e a dinâmica da interpretação na constituição do sujeito.
Partindo da concepção freudiana desta noção, diferenciando-a do que ela ainda poderia guardar de confusão com a perspectiva hermenêutica, destaca-se sua função, aqui não no âmbito da técnica analítica, mas no interior da função materna e, portanto, no âmago da constituição do sujeito.
Deste modo pergunta-se: Seria este outro encarnado um intérprete hegemônico do Outro?
A inconsistência do intérprete, uma vez que ele não pode senão fazer sua tarefa um pouco às cegas, introduz uma opacidade interpretativa que abre um campo importante de reflexão sobre o peso que tem a experiência do não-sentido na constituição do sujeito.


 

 

Em sua obra Freud confere à interpretação um lugar de destaque, instituindo-a como método fundamental da psicanálise. Atribuir à interpretação tal posição apenas revela o caráter de ciframento de onde o sujeito emerge e funciona. É o que se formaliza portanto, em A Interpretação dos Sonhos (1900), onde Freud a define como "o método de deciframento, uma vez que ela trata o sonho como uma espécie de escritura secreta na qual cada signo é traduzido graças à uma chave fixa, num outro signo cuja significação é bem conhecida."Segundo Derrida (1967), a interpretação psicanalítica parece fazer da subsituição significante sua atividade essencial.

Neste sentido, seria possível aproximar este método ao da hermenêutica tal como é definida por Grondin (1999) enquanto "a arte, de âmbito universal e universalizante, de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos textos e de outras formas de interação humana"(p.9).

Porém, parece que tanto a hermenêutica quanto a psicanálise avançam para além de uma idéia de "perscrutadora de sentidos e significados"(p.11), além do que o universal não tem espaço nem para Freud e tampouco para a psicanálise a não ser no momento em que se particulariza.

A interpretação como método exige então, que se estabeleça formalmente a questão da linguagem enquanto constitutiva, alcançando a idéia de sentido e do não sentido na montagem do ser. Como nos adverte Lacan, a psicanálise é uma "experiência que designa, se é que se pode dizer, o seu ponto de fuga"(1954/55, p.137).

Abordar os modelos lingüísticos a partir da psicanálise, impõe a esta uma prática que evidencia os aspectos da linguagem, seus limites na constituição dos sentidos, onde importa menos sua função comunicativa do que seu caráter revelador e fundante. Tal como considera Lacan (1957), o ingresso no universo simbólico é o momento de constituição do inconsciente, onde o sueito ao se nomear em seu discurso para ser nomeado pela palavra do outro, se perde na sua realidade distanciando-se de sua verdade. Esta estrutura bipartite da linguagem, esclarece que não apenas o sentido não se encarna na objetividade dos signos, como há aspectos não codificáveis que subjazem ao processo de simbolização.

Assim, a consistência do ser tanto em seu enunciado quanto em sua enunciação depende deste Outro, enquanto tesouro de significantes, que veste o outro, agente materno.

A partir do exposto, o recorte que se propõe estabelecer pode ser formulado nas seguintes questões: seria este outro encarnado um intérprete hegemônico do Outro? Dito de outra forma, do que depende esta vocação e como ela se efetua na materialidade da relação mãe-bebê?

Se o sujeito é constituído na e pela linguagem é preciso que ele encontre material significante suficiente para se fazer representar simbolicamente. Tarefa que será inicialmente dividida entre o pequeno ser e o Outro Primordial.

A inscrição de marcas psíquicas realizada nesta operação inaugural de subjetivação corresponderia ao trabalho de simbolização em que o funcionamento do ser – pulsional – estaria submetendo-se a um sistema de representações. Trabalho este de responsabilidade daquele que vem ocupar o lugar do código de linguagem, operando um trabalho de ciframento e deciframento das experiências, em que a montagem subjetiva fica subordinada a essas tarefas.

Isto posto, fica exigindo então daquele que aí se candidata, uma certa vocação, a de ser o escriba de um novo sujeito. Duas operações se destacam: a de inscrição e a de interpretação desta escrita. É isto que Derrida (1967) encontra, ao buscar nos textos freudianos a idéia do sujeito como efeito da escrita, no sentido em que localiza em Freud a noção do Insconsciente estruturado como uma escrita. Em Uma Nota sobre o 'Bloco Mágico (1925) encontramos o ápice desta compreensão que pode ser recortada por este trecho do texto: "Se imaginarmos uma das mãos escrevendo sobre a superfície do Bloco Mágico, enquanto a outra eleva periodicamente sua folha de cobertura da prancha de cera, teremos uma representação concreta do modo pelo qual tentei representar o funcionamento do aparelho perceptual da mente"(p.290).

No processo de subjetivação 4 eixos fundamentais se perfilam. São eles: a suposição de um sujeito, o estabelecimento da demanda da criança, a alternância presença-ausência e a introdução de um terceiro. Estes operadores permitem compreender o processo pelo qual um sujeito, visitado pela linguagem, vai poder habitar um corpo e uma subjetividade. Neste sentido, compreende-se que nascer subjetivamente à vida é dar um passo para além do fisiológico, organizando-se num outro campo, numa outra ordem. Para que essa transformação ocorra, de um corpo nú para um corpo ou ser de linguagem, é necessário que alguém o introduza neste outro registro, lugar do discurso. Concorda-se integralmente com a afirmação de que "a instalação da subjetividade só pode ser verificada a partir dos efeitos diretos que essa instalação determina. Assim, a leitura dessa instalação na criança apóia-se em sinais fenomênicos que, articulados em uma lógica linguística simbólica, permitem supor a presença de uma subjetividade"(GNP, 2003, 17).

Verifica-se de saída então, que o laço com o outro é central já que, em virtude da "profunda prematuração específica do nascimento do homem"conforme Lacan (1966, p.100), o que revela uma imaturidade neuronal predominante nos primeiros meses de vida, ao filhote humano não há outra alternativa senão aguardar e depois se submeter àquele que tomar para si os cuidados necessários para a sobrevivência do bebê, denominado de função materna. Segundo Checchinatto (1988), a função materna se situa em dois registros: o da necessidade e o do desejo. Ou seja, o laço de dependência entre mãe e filho deve se dar tanto no plano biológico, de cuidados essenciais corporais, como no plano simbólico, registro onde o pequeno ser também é prematuro. Conforme cita o autor: "prematuridade que leva a uma dependência de alguém que sirva de suporte simbólico para a criança"(1988,p.40). É neste sentido que as necessidades do bebê serão sempre satisfeitas segundo o código simbólico da mãe, onde esta oferece ao filho não apenas alimento, mas também palavras.

Sendo assim, a função materna assegura não apenas a satisfação de necessidades fisiológicas, mas também organiza este funcionamento interpretando suas reações. De acordo com Infante (2000), a incorporação simbólica do filho pela mãe que interpreta seu grito como apelo, será capaz de subverter o fisiológico introduzindo-o no esquema da pulsão: comer/ ser comido, chupar/ser chupado. Respirar, comer, regular a temperatura do corpo, funções exercidas pela mãe na gravidez através do cordão umbilical, agora dependem de como a mãe toma o corpo de seu filho em seu espaço de desejo. De imediato, as conseqüências deste enlaçamento, revelam-se por exemplo, nas modificações do ritmo do sono, onde o bebê dorme mais e sonha mais, e na coordenação dos fluxos. Entre o estado de tensão e sua descarga denunciada pelo grito do bebê, situa-se a mãe que opera como agenciador do apaziguamento. Segundo Vorcaro (1997), o grito deve ser tomado pelo agente materno enquanto signo de uma falta de apaziguamento, que será respondida pela mãe com sua presença confortadora, onde as manifestações vitais do rompimento da homeostase orgânica sejam marcas a serem lidas como mensagem. É assim que, ao entrar nos primeiros moldes da série significante, a criança passa a responder menos por automatismos reflexos do que a partir das marcas introduzidas pelo Outro encarnado, que operam inconscientemente.

Portanto, toda interferência materna sobre o infans é balizada pelo código que autoriza a tradução em palavras das ações da criança. Esta lógica, tanto da escrita como da leitura, com a qual a mãe efetua sua função sobre o bebê se baseia no desejo insconsciente, já que o pequenino se posiciona para mãe enquanto signo desse desejo. Logo, é possível supor que a vocação interpretativa da mãe se sustenta na idéia de uma inconsistência do intérprete como possibilidade de produção de sentido. Isto é, a tradução supõe uma negatividade na leitura, um ponto cego que acompanha este trabalho de humanização, impondo tanto a parcialidade quanto a incerteza como bases sobre as quais a mãe sustenta sua função, pois a existência do inconsciente impossibilita radicalmente uma codificação generalizável.

O que se pretende ressaltar então, é que o desamparo da mãe frente à impossibilidade de uma "soberania quase absoluta do intérprete"(Birman,1991, p. 232), é condição necessária para que se possa exercer a dita função interpretativa. Este umbigo materno é o que impede que a criança fique completamente capturada por um discurso transparente e racional proferido pelo Outro primordial. É o que acontece por exemplo, nos casos de crianças psicóticas, fusionadas a um circuito unívoco de significação.

À polissemia do significante, à equivocidade radical da linguagem acrescenta-se também a negatividade como eixo de subjetivação.

Considerar que a inscrição significante está mais ligada ao 'não' do que ao 'sim' é tema de interesse desde Freud em seu texto de 1925, a Negativa, em com o qual Lacan também debate. Em seu seminário sobre a Identificação (1961/62), comprometido com a questão do Einziger Zug, dá à negatividade lugar privilegiado na inscrição do traço unário, base do processo de identificação e, portanto, do amarramento do ser à linguagem. "Fazer do significante outra coisa, algo cuja gênese é problemática, leva-nos ao nível de uma interrogação sobre uma certa relação existencial, que como tal já se situa em referência com a negatividade, o modo sob o qual a negação aparece, sob o qual o significante de uma negatividade efetiva é vivido"(p. 85).

Se a passagem pelo Outro é condição para que o sujeito organize sua pulsionalidade, isto implica que nesta ordem algo escapa, um resto copóreo, matéria prima do gozo. Afirmar que algo escapa à simbolização não é excluir esse material da composição subjetiva. É em Lacan que isso se evidencia explicitamente a partir da década de 1970, mais precisamente nos seminários RSI (1974/75) e aquele dedicado à Joyce (1975/76), onde seu interesse se situa nos aspectos que na clínica escapam às palavras e às significações. Como instrumento teórico para abordar o Real, Lacan fará uso da topologia apresentando a idéia de um enodamento RSI formador do ser. Três dimensões que se encarregam, em seu enodamento, de dar à realidade um caráter psíquico ao mesmo tempo em que impõe ao psiquismo uma realidade. É, portanto, nesta intersecção que se pode "distinguir o organismo como algo de real, a alternância entre os termos como simbólica, e a consistência dos sentidos em que o agente materno interpreta o organismo como imaginária", (Vorcaro, op. Cit.).

Retomando mais intimamente o tema que anima esta reflexão, a interpretação materna contempla, em seu ato, a inscrição de um texto que cifra o lugar que a criança ocupa no mundo do Outro, mensagem que cabe a ela também decifrar. Neste sentido, a criança é efeito de uma escrita que transcreve a relação desta com a alteridade. Apoiando-se no trabalho de Allouch (1995) citado por Vorcaro (op. Cit.), toda interpretação supõe as seguintes operações: tradução, transcrição e transliteração.

Para este autor, tanto a tradução quanto a transcrição revelam uma interpretação sustentada num código e, portanto, num sentido em que se supõe uma correspondência biunívoca entre o que é visto e o que é lido. Os manuais de desenvolvimento revelam farto material que abastecem os pais no sentido de buscarem compreensões exatas sobre as manifestações de sua prole.

Já a transliteração implica em "considerar as manifestações como um texto cujos traços são desconhecidos"(Vorcaro, p.13).

Portanto, a vocação interpretativa da mãe que resulta na confecção do texto subjetivo na criança realiza-se como uma 'leitura às cegas', posto que os traços desconhecidos na criança apenas revelam o desconhecimento do intérprete, lugar de onde sua enunciação atua.

Assim, a opacidade interpretativa ocupa lugar central neste processo de montagem subjetiva, pois graças a ela a criança arma sua tessitura significante com chance de não permanecer cristalizada – enquanto paralizada e também transparente – ao desejo do Outro primordial. A barra que se deposita sobre (A) autoriza que o pequeno ser possa se agarrar a um traço e identificar-se a ele preparando o caminho para a leitura do texto escrito pelas letras – apagadas – do Outro. Operação que outorga à criança também a função de hermeneuta de suas próprias marcas. Isto é, se à mãe cabe a tarefa de ler à medida que escreve o texto significante, ao infans trata-se de "ler um escrito naquilo que está sendo dito"(Kupfer, 2004, p. 74).

Se o ofício da maternidade alterna a relação entre gozo, desejo e saber, supõe contemplar no seu exercício a porção de desconhecimento de si que opera este ato.

O caráter de inacabamento de discussão parece indicar ser este um terreno fértil para a reflexão sobre o caráter constitutivo da experiência de não-sentido na própria construção de sentido. Assim sendo, toda proposta que objetive a compreensão do texto significante sobre o qual se inscreve o sujeito deve considerar furos de saber.

Tarefa que acaba sendo atropelada em tempos de soberania do saber, onde o rasgo que o não-sentido produz torna-se insuportável, pois expõe o sujeito à sua própria vulnerabilidade identitária. Resta à psicanálise e aos que dela se servem, observar dois breves, mas não menos importantes, riscos ao quais está-se sujeito na apreensão do campo, seja ele clínico, acadêmico ou institucional: "o primeiro é não ser suficientemente curioso. Ensina-se às crianças que a curiosidade é um defeito feio, e, em geral, é verdade, não somos curiosos, e não é fácil provocar este sentimento de maneira automática. O segundo é compreender. Compreendemos sempre demais... Na maiorias das vezes nos enganamos"(Lacan, 1954/55, p. 135).

 

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. (1991).Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

CHECCHINATO, D. (coord.)(1988). A clínica da psicose, Campinas, Papirus, pp. 40-41.

DERRIDA, Jacques.(1967). L'Ecriture et la diffèrence. Paris: Editions du Seuil.

FREUD, S. (1900). A Interpretação dos sonhos. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

_________. (1925).Uma nota sobre o 'bloco mágico'. Op. Cit.

GNP. (2003). Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos para a detecção precoce de riscos no desenvolvimento infantil. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VI, 2. São Paulo: Escuta, junho, pp. 7-25.

GRONDIN, J.(1999). Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos.

INFANTE, D. P. (2000). As contribuições do esquema ótico proposto por Lacan. In: Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba: Psicanálise e Clínica de Bebês, nº 4, Associação Psicanalítica de Curitiba. 63.

KUPFER, M. C. (2004). Olhar, escutar, ler: o trabalho do analista. In: Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba: O Psicanalista e o ato, nº 8, Associação Psicanalítica de Curitiba. Curitiba: APC, pp. 71-78.

LACAN, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998. p. 100.

_______.(1954) O seminário livro 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

_______.(1957) A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Op. Cit.

_______. (19961/62) Seminário La Identificacion. Buenos Aires, EFBA, 1986. Circulação Interna.

VORCARO, A (1997). A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Cia. De Freud.

 

 

Endereço Institucional:
Rosa Maria Marini Mariotto
Professora Assistente - Psicologia
Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR
R. Imaculada Conceição, 1155 CEP 80215-901
Curitiba - Paraná