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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Reflexões sobre a construção do espaço do feminino e do pudor na adolescência de hoje: uma experiência de atendimento terapêutico em um centro de referência de atenção à criança e ao adolescente (PMSP)

 

 

Mônica do Amaral

Docente da Graduação e Pós - Graduação da Faculdade de Educação da USP, Membro da SBPSP. monicagta@usp.br

 

 

Introdução:

Em artigo publicado sob o título "A adolescência na contemporaneidade – reflexões sobre a vida danificada" (2003), eu afirmava que o grande sintoma do mundo atual é que se havia levantado obstáculos efetivos à subjetivação, cujas conseqüências danosas se faziam sentir não apenas entre aqueles que se encontram marginalizados do sistema, mas sobretudo entre os jovens - independentemente da classe social a que pertenciam - cujos contornos apareciam cada vez mais tênues por falta absoluta de um lugar social, em que pudessem se sentir partícipes de um projeto, o que não se restringia de modo algum ao âmbito familiar, visto que o mesmo encontrava-se na dependência de um projeto global de modernidade. O indivíduo seria lançado na ciranda da mundialização da cultura e do avanço desenfreado tecnológico, o que, se de um lado, lhe abriam inúmeras possibilidades virtuais de subjetivação, estas assentavam-se, entretanto, de outro, sobre o que Herrmann (1994) denominou de a "perda de substancialidade" da comunidade sobre a qual se assentaria toda ação social.

Uma visão que me pareceu (Amaral, 2000) muito próxima da que sustentara o filósofo Walter Benjamin, contemporâneo de Adorno, que em seu artigo "Experiência e Pobreza" (1989), ou ainda, em "O narrador" (1980) salienta a particular dialética que se verifica no mundo contemporâneo entre a redução da experiência coletiva (Erfahrung) e o empobrecimento da arte de narrar como conseqüência do esvaziamento da própria dimensão privada da experiência (Erlebnis) (cf.Amaral, 2003, p.198). Uma idéia semelhante é defendida por Adorno acerca da dimensão narcísica das tendências regressivas da modernidade, sustentando que quanto mais o indivíduo se torna independente da experiência social acaba sendo, no final, incapaz de experimentar sua especificidade, o que resultaria no mais completo processo de indiferenciação subjetiva".

Se acompanharmos as idéias sustentadas por um filósofo da atualidade, Lipovetsky, em L’Ère du vide (1983), identificamos a passagem do individualismo limitado ao individualismo ilimitado, dando lugar ao narcisismo pós-moderno, pautado por uma sociedade que desliza sem vínculos sólidos, nem possui tampouco bases emocionais estáveis. Com o processo de personalização e de superinvestimento subjetivo, induz - se os indivíduos a reduzir o investimento emocional sobre o espaço público ( o que é diferente de uma mera despolitização), dando lugar muito mais a agrupamentos de interesse miniaturizados ( como, por ex., grupo de viúvas, grupo de mulheres separadas, grupo de pais homossexuais, de mães lésbicas, de pais de jovens bulímicas e anoréxicas). Na verdade, reproduzindo ad infinitum a fragmentação social, seguindo o critério de interesses particulares.

E, o pior, dando lugar a relações em que prevalece a "fragilização dos limites" – entre o domínio privado e o público,entre as gerações, o dentro e o fora, enfim, entre o eu e o outro. Ao mesmo tempo, como salienta Jeammet (2001), esse enfraquecimento dos limites, particularmente no interior da dinâmica familiar, se dá concomitantemente ao enfraquecimento das interdições e em benefício do aumento das exigências narcísicas. O amor responsável entre pais e filhos dá lugar à exigência de competência e de resultados, e, se olharmos com uma lupa para o interior do vínculo entre os mesmos, o que prevalece é a relação de controle sobre a mente e o corpo da jovem geração, demonstrando a incapacidade atual das gerações mais velhas de fazer o luto da separação de seus filhos, tão necessária para a construção de sua autonomia.

Como psicanalista e docente que contribui para a formação dos professores de 1º e 2º graus, preocupo-me particularmente com as possibilidades de subjetivação/dessubjetivação do adolescente no mundo de hoje – em que participam a expressão alternada do desejo pelo outro e o retorno sobre sua própria intimidade, um movimento que não se faz sem percalços, uma vez que se vê interrompido, quando não limitado pela fragmentação e descontinuidade das relações. Na tentativa de obter algum esclarecimento sobre a complexidade do universo social e da dinâmica psíquica do adolescente, parece-me imprescindível encaminhar a reflexão no contrapelo da história, conforme um dia sugerira Walter Benjamin em sua crítica ao historicismo evolucionista. Em uma época em que prevalece a solidão absoluta, e em contrapartida uma complacência ao exibicionismo e ao voyerismo, parece-me fundamental recuperar a noção de pudor, tanto para as meninas, como para os meninos, como forma de resguardar, no campo teórico-clínico, a intimidade do sujeito psíquico em formação, que na adolescência fica mais exposta diante da explosão da sexualidade. Particularmente no mundo de hoje, o chamado ao erotismo cool atinge em cheio o adolescente, de tal maneira que em nada contribui para delinear seu campo de desejo, uma vez que se substitui a qualidade das relações por técnicas de como se deve cuidar do corpo (como se este fosse algo alheio ao sujeito). São modos de relação com o corpo que se impõem ao jovem de tal maneira que hoje se admite haver contribuído para a antecipação da menarca e das manifestações da puberdade, sem que o seu surgimento se veja acompanhado de qualquer elaboração psíquica.

Movida por tais preocupações, além das questões que venho levantando com relação aos limites da psicanálise na contemporaneidade e a necessidade premente de provocar-lhe profundas transformações, no que tenho encontrado fortes inspirações, seja nas reflexões de Herrmann acerca do método psicanalítico, seja nos estudos realizados por algumas correntes da psicanálise francesa a propósito da clínica psicanalítica dos estados-limite (paciente-fronteiriço), comecei uma pesquisa há cerca de 5 anos, envolvendo o atendimento terapêutico de jovens com sérios problemas na construção de sua subjetividade, inicialmente junto ao Departamento de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Escola Paulista de Medicina, depois no Serviço de Liberdade Assistida oferecido em Araraquara para menores infratores (que visava o estabelecimento de uma política integrada de saúde e educação para o adolescente na cidade de Araraquara, em convênio com a UNESP), e , mais recentemente, há um ano, no Caps da Lapa, como parte de minha pesquisa desenvolvida nesta Universidade.

Neste último desdobramento de minha pesquisa, propus-me a refletir sobre uma política de saúde mental para o adolescente, apoiando-me nos resultados deste trabalho, que envolve, além do atendimento terapêutico de alguns jovens junto ao Centro de Atenção Psico-social da Infância e da Adolescência (CAPES da Lapa) e em uma escola da região, considerando-se os limites e possibilidades da técnica psicanalítica na contemporaneidade, uma vez que se tem verificado a presença, cada vez mais freqüente, de "patologias do agir" na adolescência (cf. designação do Prof. Philippe Jeammet), e a necessidade, como veremos, da articulação de práticas terapêuticas com a realidade externa, combinando-se uma série de intervenções sócio-educativas que dêem suporte à ação terapêutica.

A idéia é que o conhecimento da dinâmica emocional desses jovens pudesse oferecer elementos para pensar não apenas sobre as áreas críticas que os está afetando psicologicamente e, desse modo, dificultando sua inserção social, mas que também pudesse elucidar os pontos nevrálgicos em que se deveria atuar na escola e na família.

Nesta exposição, entretanto, vou me ater a pensar sobre o impacto do "apagar do pai" (expressão que eu tomo de empréstimo da colega Vânia Ghirello, em tradução de um dos artigos da coletânea L’oubli du Père, 2004) na dinâmica emocional de alguns adolescentes que estão em estado permanente de sofrimento psíquico- alguns pedindo ajuda, outros, negando-se a qualquer intercâmbio com o mundo adulto, o que dificulta o próprio processo terapêutico.

 

I) A propósito do atendimento de duas adolescentes que clamam por serem ouvidas...

No primeiro semestre do ano passado passei a atender com regularidade alguns jovens, de 15 a 19 anos que já vinham realizando acompanhamento psiquiátrico no Caps da Lapa.

Comecei a atender quatro adolescentes, com muitos percalços no meio do caminho, pois se tratava de casos que, na sua maioria, envolvia uma relação familiar muito fechada, abrindo espaço para uma vivência incestuosa, quando não restrita a uma vivência simbiótica – prefiro falar de um emaranhado de emoções mal definidas e pouco distinguidas – sobretudo entre mãe e filha, da qual as jovens não estavam conseguindo se desvencilhar. Em alguns casos, isso acabou incidindo sobre o atendimento, dificultando que o vinculo terapêutico se estabelecesse. Tivemos uma reunião clínica com a equipe, em que eu pude expor as questões fundamentais de cada caso, encontrando o suporte necessário da equipe para o prosseguimento dos atendimentos.

Passarei a uma discussão de duas adolescentes que recorreram à atuação como forma de se liberarem do ‘grampo’ materno. Gostaria aqui de diferenciar as saídas encontradas por cada jovem, cujas soluções me pareceram bastante distintas do ponto de vista da saúde mental de cada uma delas: a primeira, embora às custas de uma tentativa de suicídio, encontrou nos poucos encontros que tivemos a necessidade de "providenciar" sua autonomia e felicidade imediatas! E assim o fez! A segunda, mais novinha, embora desejasse o mesmo não conseguiu uma solução imediata, a não ser abandonado o espaço terapêutico que fora invadido e investido negativamente pela mãe e, depois, por ela mesma...

 

Pais demissionários e mães controladoras: duas saídas dolorosas para a autonomia do adolescente

Quero minha liberdade e autonomia já!

Uma das primeiras pacientes encaminhadas a mim pela equipe foi T. Miúda, com traços delicados, cabelos curtos, chamou-me a atenção particularmente o tamanho do buraco feito em sua orelha. Ornado com uma argola enorme em sua volta, como ditam alguns costumes indígenas, disse-me logo que estava ali porque era portadora de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo). Isso porque costumava fechar a porta duas vezes, a geladeira e o fogão, precisando, invariavelmente, certificar-se se estava tudo fechado. Relatou-me, ainda, que sua mãe a torturava com sua mania de limpeza... que lhe exigia uma lista de coisas a serem feitas na casa, todos os dias. E, caso, não as fizesse, apanhava ou ficava de castigo durante um mês, sem sair com os amigos e sem atender telefone. Além de considerar tais atitudes da mãe absolutamente arbitrárias, considerava tudo aquilo humilhante, uma vez que já estava crescida, com seus 17 anos.

Aos poucos, mesmo reconhecendo a "amizade" estreita que mantinha com a mãe noutras ocasiões – o que atribuía ao fato de sua mãe ter aceito muito bem sua homossexualidade - foi se dando conta que todas as exigências que aquela lhe impunha como tarefa doméstica era no fundo uma forma de retê-la em casa, perto de si, sob o seu controle. Disse que odiava a mãe e faria tudo para se livrar dela. Reconheci com ela a premência de um trabalho com a mãe para, no mínimo, tentar lhe oferecer um ambiente em casa em que ela pudesse ser mais feliz e sentir-se menos "sob a mira da mãe". Em seguida, percebendo a necessidade de resgatar nela um espaço de felicidade que estivesse sob o seu controle, disse-lhe: - Mas, não é possível que vc não tenha conquistado seus próprios momentos de felicidade?!

Muito timidamente começou a falar de seu melhor amigo que era homossexual, de como tinha nele o irmão que nunca teve: contava-lhe tudo, um dava força para o outro, inclusive para enfrentar o preconceito, mas havia também entre eles aquela cumplicidade amorosa, o apoio para enfrentar os desafios da conquista, assim como os seus embaraços...

Um dia conversando sobre a mãe e o ódio que nutria por ela a cada vez que vinha com seus castigos arbitrários, lembrou-se que o TOC começou quando tinha 14 anos, época em que pode assumir claramente sua opção homossexual. Ficou assustada com isso! Disse-lhe que as relações não eram tão diretas assim, tinha também essa relação complicada com a mãe...o ódio contido que ela estava podendo expressar ali comigo...

Tarde demais...Eu imaginava estar diante de uma urgência...de liberdade, sobretudo...e não deu tempo...embora estivéssemos agilizando o grupo de mães, antes que o iniciássemos, a garota, logo após um desentendimento com a mãe, tentou o suicídio, ingerindo uma dose considerada alta dos remédios psiquiátricos que tomava para o TOC.

Do ponto de vista da saúde física da garota, não houve danos maiores. Mas esse ato psíquico de desespero e como última tentativa de lutar com seus próprios recursos, levando-a ao limite entre a vida e a morte, provocou uma alteração súbita no entorno familiar. A mãe, muito assustada, aceitou conversar com Guida, diretora do Caps, que estava formando o grupo de mães. Nesses encontros, pode se dar conta como estava reproduzindo com a filha, a relação arbitrária, de controle e de poder, que sua própria mãe manteve com ela em sua infância. Guida pode trabalhar com ela o quão difícil era para ela encontrar a medida certa para educar a filha, uma vez que sua própria mãe batia nela até sair sangue exigindo dela muito mais do que podia dar conta. E que talvez, por medo de perder a filha, retinha-a para si de tal modo que estava sufocando a menina, o que produzia um efeito contrário ao que pretendia - ou seja, o afastamento de sua filha.

E, realmente, a partir de então, T., que já havia resgatado seu pai na rua - ela o encontrou por "acaso" na rua e a partir de então voltou a se encontrar com ele – passou a trabalhar à tarde como cabeleireira (profissão à qual seu pai estava ligado), sendo que, de manhã, estudava e, à noite, ainda fazia curso de aperfeiçoamento de cabeleireiro. Enfim, livrara-se das exigências absurdas de sua mãe!

Veio ainda conversar uma vez comigo. Disse que não pretendia se matar, pois havia lido a bula, para saber dos efeitos...Queria somente fazer com que sua mãe a escutasse, a deixasse em paz, que lhe permitisse ter sua vida independentemente dela! Ao longo da entrevista foi se dando conta que o controle chegava a ponto de atingir sua mente e a expressão livre de sua sexualidade, embora por algum tempo tenha acreditado na amizade com sua mãe e na mutualidade da relação, uma vez que havia momentos em que a mãe confiava-lhe seus casos amorosos e ela os dela.

Foi o nosso último encontro...soubemos que sua mãe andava chorosa pelo fato de agora não ter mais contato com a filha. E a garota precisou experimentar o limite, entre a vida e a morte, para dar uma virada na cena familiar e conquistar um caminho para a sua autonomia...Lembro-me, antes do episódio dos remédios, da conversa séria que tivemos sobre a importância de um espaço de felicidade para ela, mas que ela condicionou firmemente à mudança das circunstâncias de sua vida, das atitudes de sua mãe ...e que não dava para esperar!

 

Como me livrar do olhar materno sobre tudo aquilo que me pertence?

K. veio me ver algumas vezes e, embora se atrapalhasse com o horário (nunca sabia exatamente quando era nosso próximo encontro), quando vinha, era com gosto. Entrava na sala cheia de vida, embora invariavelmente trouxesse a queixa de que a mãe dava tudo para o irmão e nada para ela, que nunca a deixava sair, enquanto que o irmão podia, porque era mais velho e era homem (ele tinha 17 anos e ela 15)!

Aos poucos foi se desfilando diante de mim o cenário onde se desenrolava sua profunda dor, ou a falta que sentia...sem saber exatamente do que... o poço sem fundo que a arrastava em alguns momentos. Esteve internada no HC havia um ano atrás, por ter caído em uma profunda depressão. Foi logo após um episódio aparentemente de pouca importância. Ela fora junto com uma sra japonesa a um parque aquático. Sem saber exatamente o que lhe tocou tão intensamente, disse-me que entrou no parque e ficou aturdida com tudo o que via, teve vontade de escutar axé, de ir no tobogan, e....tinha que olhar o menino (a sra japonesa havia lhe confiado os cuidados de seu neto de 6 anos). Mas ela o perdeu e foi duramente repreendida por isto. Ainda no parque, passou mal e desde que voltou para casa, não se levantou mais da cama. Um episódio que culminou com sua internação.

Vendo-a tão cheia de vida mal podia crer que tivesse passado por tudo isso. Mas nesse episódio doloroso, só pudemos tocar, depois de alguns encontros, porque ela não se lembrava de muita coisa...Lembrei-me que o psiquiatra dizia que ela sofria de ausências. Atendo-nos aos conflitos atuais, foi ficando claro que havia em casa um ambiente depressivo trazido pelo estado da avó (com mania de doença), o tio que bebia muito e a mãe que só cobrava dela para ficar em casa, enquanto ‘batia pernas com as amigas".

Era natural que não quisesse ficar em casa. Além do fato de querer estar com as amigas de sua idade, havia os garotos, pelos quais começava a ter interesse. Como veremos a seguir, a japonesa era alguém com condições de levá-la passear para fora, afastando-a daquele ambiente nada animador para uma garota de 15 anos.

Ela reconheceu que tinha muito ciúmes do irmão, sobretudo pelo fato deste ter um pai que cuidava dele e lhe dava presentes. Enquanto que ela nunca vira o seu próprio pai, somente por meio de fotos. Dizia que a mãe era tudo para ela, que sem ela não viveria, mas que odiava o fato de não deixá-la sair, como o irmão o fazia com muito maior liberdade! Um dia lhe perguntei: - Mas, e a japonesa? Para ter lhe causado tamanho impacto a reprimenda que ela lhe fez, era alguém muito importante para você, não?. Ao que ela respondeu: - Claro! Pois desde pequena, era ela quem me levava passear! - Era ,então, como uma avó para você? Ao que ela respondeu: - Sim, mais do que isso!

Deu a entender que a japonesa era uma sra mais rica do que a mãe, para quem a mãe trabalhava, e que ela a "adotara", como se fosse alguém mais poderosa do que sua família que a protegesse...parecia uma compensação pela falta do pai...de recursos em casa, não apenas materiais...Mas, diante do episódio do parque percebeu que tudo não passava de uma ilusão...só tinha a sua mãe mesmo, que vivia criticando-a, e até mesmo depreciando-a (e com que virulência! Cuja intensidade ficou clara em uma entrevista que tive com as duas juntas, mãe e filha). Queria fugir daquele ambiente de casa meio decadente, agravado pelo fato do irmão ter exatamente o que ela mais queria – um pai! E a mãe não percebia que por isso mesmo ela precisava ser supercompensada e não depreciada, sobretudo em relação ao irmão.

No dia que tivemos a reunião com ela e sua mãe, foi um verdadeiro desastre, pois não consegui interromper o discurso da mãe, em que surgia uma verdadeira saraivada de palavras depreciativas em relação à filha. Uma das queixas que me fizera a mãe relacionava-se com o fato da menina não ter higiene, e não ter senso de pudor, pois chegava em casa e já ia arrancando a blusa sem se importar com a presença do irmão. E isso deixava a mãe muito incomodada. Fiquei me perguntando como era possível para essa garota desenvolver o senso de pudor, se sua mãe era capaz de arrombar seu diário e ameaçar usa-lo contra ela, caso necessário. Vivia ameaçando a filha de interná-la em alguma instituição, caso sentisse que estava perdendo o controle sobre a filha! No final dessa entrevista, amenina se levantou subitamente,e desligou, pegou um pincel atômico e desenhou uma série de coraçõezinhos...tentando nos mostrar,talvez, do que é que estava precisando...de paz e amor...O tema da juventude dos anos 60 retorna não mais como expressão de um movimento coletivo, mas como uma necessidade individual imprescindíve!

Em uma reunião com a equipe em que discutimos o caso de K., observamos que a mãe disputava o espaço terapêutico de Karina, passo a passo (com o psiquiatra e com o psicólogo). Fez com a análise da filha o que costumava fazer com toda tentativa da garota de construção de um universo próprio: arrombou o espaço de análise da filha do mesmo modo que fizera com seu diário (que estava fechado com cadeado), proferindo mil palavras depreciativas a todo instante. Foi o que ela fez em nosso último encontro, depois do qual a menina se recusou a voltar a falar comigo. A mãe expôs a intimidade da menina de uma maneira tão escancarada diante de mim e da garota, que acabou nos deixando em uma situação bastante constrangedora. E isso eu deixei claro para a mãe e a filha,dizendo-lhes que não era necessário que me expusesse em detalhes a vida da menina. Depois, em reunião com a equipe, salientei que até então meu contato com a garota tinha sido muito bom, e que estava claro porque a menina não parava mais em casa, uma vez que se sentia sufocada pelo ambiente em casa, pela falta de compreensão e de cumplicidade maternas. Discutimos sobre a necessidade de encaminhar a mãe para o grupo de pais. Mesmo assim, ficou do psiquiatra insistir para que Karina retomasse o tratamento terapêutico comigo. Iriam entrar em contato com a escola para reforçar a necessidade de introduzi-la em alguma atividade na escola, com a qual ela se envolvesse, pois era uma menina com muita vitalidade, sem encontrar, entretanto, ecos em casa para os seus reclamos. Enfim, urgia-lhe um espaço onde pudesse dar vazão a esta vitalidade.

 

II) Em busca de uma teorização clínico-social:

Uma discussão a propósito da homossexualidade psíquica: uma saída possível diante das incertezas da sociedade pós-individualista e...sem pai

Philippe Jeammet, em seu artigo "Libertés internes et libertés externes, importance et spécificité de leur articulation à l’adolescence" (1989), sustenta que o paradoxo inelutável do adolescente – que consiste no fato de se ver pressionado, de um lado, pela necessidade do objeto para concluir seu processo de identificação (necessário à sua autonomia) e de outro, do receio de ver ameaçada essa mesma autonomia - na atualidade, tende a exacerbar-se, conduzindo-o muitas vezes à atuação, em grande medida devido à transformação profunda do quadro social, em que se faz presente o aumento de exigências - sobretudo de performance, mais do que de competência - ao mesmo tempo que se liberalizam os costumes. Junto com essa liberalização, dos costumes, haveria uma possibilidade de satisfação pulsional de natureza sexual e agressiva muito maior do que noutras épocas. Para o adolescente, há aparentemente mais chances e maior liberdade, podendo, inclusive, dar vazão às suas "realizações pulsionais", mas são essa mesmas realizações que se tornam fonte de angústia. Ao mesmo tempo, devido a essas exigências exacerbadas de responsabilidade e competência, ficam muito mais inseguros quanto a suas capacidades.

Sustentei noutra ocasião (palestra p/ o III Encontro da Teoria dos Campos, 2003), que tais hipóteses levantadas pelo autor e alimentadas por sua experiência no atendimento de adolescentes "difíceis" encontravam plena ressonância nas idéias sustentadas por Lipovetsky, em seu livro Le crépuscule du devoir (2000), em que aponta para duas lógicas contraditórias regulando o Estado e a cultura pós-individualista: de um lado, uma postura leve, capaz de dialogar, tentando promover a construção gradual de limites; de outro, erigem-se lógicas binárias, com uma argumentação doutrinária, ligada mais à repressão do que à prevenção (algo nesse sentido, ficou claro na relação de T. com sua mãe que aceita a homossexualidade da filha, mas exige dela a competência de uma mulher adulta nos afazeres domésticos, além de aplicar castigos arbitrários).

Ora, a questão, para mim, era saber em que medida tal projeto neo-individualista, com suas lógicas e práticas antitéticas, incidiria sobre o campo psíquico do adolescente, de modo extremamente desorganizador, exigindo dele o recurso a medidas extremas, muitas vezes, indo às raias da loucura, como forma-limite de se constituírem com sujeitos.

Acompanhemos o raciocínio de Jeammet de que a adolescência põe em questão o conjunto dos pontos de apoio que asseguram a autonomia do sujeito: ou seja, suas bases narcísicas, assim como o caráter diferenciado das estruturas internas e imagos parentais. E de que tudo isso reforçaria o antagonismo entre o narcisismo (o amor de si) e a relação objetal ( de amor ao outro).Ora, mas diante de exigências tão contraditórias que se impõem na atualidade ao jovem, é preciso ver que tal antagonismo tende a se exacerbar.

O Prof Jeammet menciona duas formas possíveis, dentre as inúmeras existentes, que o jovem encontra para fazer face ao incremento da oposição entre o amor do eu e o amor pelo outro (ou eu ou o outro!). Existem as condutas negativistas, se opondo a todo e qualquer intercâmbio com o mundo adulto, a ponto de implicar em um verdadeiro movimento anti-introjetivo, que atinge não somente as identificações, que aguardam uma espécie de acabamento a ser feito na adolescência, como pode chegar a um verdadeiro apagamento dos traços dos vínculos mantidos com as figuras parentais. E, o mais grave, para tanto o jovem pode recorrer à violência do auto-estimulo, levando-o à perda do investimento terno. Uma violência que pode se traduzir tanto pela busca de sensações substitutivas do vínculo com o objeto de amor, como pela violência dos ataques ao próprio corpo.

Já a homossexualidade psíquica seria uma saída no sentido da retomada dos "movimentos introjetivos estruturantes" (cf. Jeammet,1994). Trata-se do que usualmente se concebe como uma resolução negativa do Édipo. Uma resolução que pode propiciar um verdadeiro conforto em suas bases narcísicas que é obtido graças a uma identificação parental bem sucedida com a figura parental do mesmo sexo. O que pode acontecer tranqüilamente na primeira infância e se complicar na adolescência diante da recusa do jovem (ou da jovem) em ser literalmente absorvido (a) narcisicamente pelo progenitor que não admite que seu filho (a) seja algo diferente de seu próprio espelho. Mas, esse processo pode se complicar desde cedo, no caso da introjeção tornar-se insuportável pelo grau de excitação que ela comporta. Os fracassos na introjeção são traduzidos seja por relações de antipatia, seja pelo assédio - em todo caso sempre com tonalidade sado-masoquista – a começar da figura parental do mesmo sexo, e depois com seus substitutos ou representantes, que lhes deveriam dar suporte social e ideológico (estou me referindo aqui sobretudo aos educadores).

No caso das garotas mencionadas, ambas estavam em busca do acabamento de suas identificações femininas, num movimento duplo de estruturação narcísica em novas bases, ao mesmo tempo que de sua autonomia. A primeira, embora tenha encontrado um caminho pela via da homossexualidade, esta só pode ser construída por meio da recusa do próprio processo que a levou a esta escolha - a resolução negativa do Complexo de Édipo.A construção dessa escolha não se fez sem intensa ambivalência dos sentimentos, de amor e ódio, nutridos pela mãe, que ela mantinha abafada sob toda uma sintomatologia que foi designada por TOC. A tentativa da mãe de "grampeá-la" de volta para si, a afastou ainda mais, ao mesmo tempo que a lançou em uma busca de autonomia...na trilha paterna...(não se pode esquecer que o ramo de atividade do pai era ligado à sua escolha de trabalho como cabeleireira). A segunda, na falta absoluta que sentia da figura paterna, ora apoiava-se no irmão, de quem tinha muito ciúmes, mas a quem era muito ligada, ora em figuras exteriores à família, como foi o caso da japonesa e depois no Capes, sobretudo no psiquiatra, com quem estabelecera um vínculo paternal. A única forma "encontrada" por ela, da qual, aliás, não teve escapatória, para se libertar do excesso de controle materno, foi o "desligamento" (as ausências) e as fugas com as amigas em meio às baladas, afastando-se, assim, do "grampo" materno. A tentativa da equipe fora no sentido de, pela via da escola, reconstruir um ambiente facilitador (espaço transicional de Winnicott), onde pudesse retomar o que Jeammet considera fundamental na adolescência, ou seja, os "movimentos introjetivos estruturantes".

 

O apagar do Pai ...na clínica dos casos limite na adolescência

Se pensarmos, com a autora, Catherine Cyssau (2004), no artigo "La construction du père dans la clinique des cas limites", que se torna impossível esquecer o esquecimento do pai, a não ser sepultando-o, seja ele faltoso - porque desapareceu, morreu ou sumiu - seja traumático – por ser violento, incestuoso ou perverso. Nestes casos, o assassinato do pai como solução fantasmática da simbolização edipiana se torna impossível. A questão levantada pela autora é de como podem ser elaboradas as diversas ausências reais do pai. E, mais do que isso, como é possível negativizar a positividade de uma ausência, quando esta se torna presente em demasia.O trabalho terapêutico passa, segundo a autora, necessariamente pela oportunidade de sepultá-lo. Um "conceito criado por Fedida, para distingui-lo do recalque e do trabalho do luto", e que " consiste em abrir a imagem da representação, de maneira a entregar o morto à matéria de suas figuras – sombras, aparências – à " sua falta de existir, que convém à reminiscência dos mortos" (2004, p.71).

Pois este me parece ser o caso de K., cuja dor insuportável se faz sentir na rivalidade que sente pelo irmão - privilegiado a seus olhos, por ter pai e ela não.Pelo fato dele mesmo presentificar a imagem do pai faltoso a cada vez que tenta ser paternal com ela.Como fica o desejo de ser objeto do desejo do pai e de sua transferência a outras figuras da série paterna, quando a ausência se faz tão presente? E tão mais intensa quando falta na relação com a mãe a mediação de um terceiro.

Mais de um autor já mencionou a inacessibilidade do objeto nos casos –limite, que incita o campo sensório, tanto quanto tumultua o self, situando-se à semelhança do objeto primário, entre o interno e o externo (cf Bollas, 1996). Caso que ocorre sobretudo quando o objeto primário (materno) dificulta a introjeção bem sucedida, seja por ser muito intrusivo, seja, ao contrário, por ser extremamente ausente.

Em um artigo interessante, André Green (2000) faz algumas ponderações sobre os pontos de intersecção entre a histeria e os casos-limite. Afirma que se o eu da histérica apresenta uma tendência temporária à fragmentação, os casos-limite manifestam mais abertamente uma propensão à despersonalização, a sucumbir a sentimentos persecutórios e à depressão, podendo desenvolver regressões importantes com relação aos fenômenos da dependência (produzindo descompensações transitórias, exigindo, muitas vezes, hospitalizações de curta duração). O avanço no tratamento se faz em zig-zag, é longo, difícil, alternando regressões e pequenos progressos. Uma das vantagens do tratamento dos casos-limite é o gradual desprendimento do sujeito de suas imagos parentais, sobretudo materna. Sustenta a hipótese de uma bi-triangulação em que os três personagens do conflito edipiano mascaram, na verdade, uma relação binária com um só objeto, dividido em suas frações boas e más.

Uma discussão que talvez nos auxilie na compreensão desses dois casos, considerando-se a súbita solução encontrada pela primeira paciente, T., que pareceu construir sua autonomia graças à sua capacidade de desprender-se não apenas da mãe, concretamente falando, como da Imago materna. Já a segunda, K., parecia estar em busca de uma saída dessa bi-triangulação restrita à figura materna, como condição de acesso ao terceiro, que no seu caso se presentificava em demasia pela ausência.

Não se pode esquecer que a questão do pudor e das estratégias de sua preservação a despeito do "grampo materno", encontrava-se mais preservado na primeira paciente, do que na segunda. Há toda uma discussão complexa a esse respeito que eu desenvolvo noutro artigo (no prelo), a respeito da qual seria interessante salientar ao menos que o pudor cumpre uma função protetora do narcisismo. Sua tarefa é, como salienta Cinq-Mars (2002), modelar a pulsão escópica (responsável na criança pelo prazer de ver e de se exibir) de modo que não faça transbordar o Eu, fazendo-o resistir a tudo o que possa haver de excessivo das exigências do SE ou das exortações do Ideal de Ego. Mas, se considerarmos que estamos diante de dois casos em que o pai se encontra ausente para mediar a relação entre mãe e filha, o que abre espaço para uma verdadeira relação invasiva da mãe com a menina, em que prevalece um grau excessivo exatamente de exigências de conduta moral, em detrimento da qualidade do vínculo afetivo entre as mesmas, como fica a reconstrução por que passa todo adolescente desse espaço do pudor, de tal modo que lhe permita a alternância sadia entre o desejo pelo outro e o retorno sobre sua intimidade?

Para tanto, é preciso que a mãe saiba respeitar o espaço de segredo e de intimidade de sua filha desde muito cedo, o que vem se tornando cada vez mais raro nas relações particularmente entre mães e filhas. E o pior, motivo de suspeita, sobretudo se pensarmos que estamos vivendo em uma era em que prevalece a visibilidade como valor e a desconfiança de tudo e de todos, que permaneça oculto e distante do olhar alheio. A tendência à flutuação de princípios e à dessocialização radical que acompanha o hiper-individualismo de nossos tempos, salienta Lipovetsky, tem apenas acirrado as dificuldades nas relações entre as gerações, não apenas entre pais e filhos, mas também entre educadores e alunos.

 

Bibliografia:

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