1Jovens "indisciplinados" na escola: quem são? Como agem?Apontamentos para uma clínica psicanalítica dos problemas de aprendizagem na adolescência índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Adolescência em transe: afirmação étnica e formas sociais de cognição

 

 

Bairrão, José Francisco Miguel Henriques

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia São Paulo

 

 


RESUMO

Dada a sua dependência de variáveis como etnia, memórias sociais e práticas culturais, para estudar a adolescência necessita-se uma psicanálise próxima a uma psicologia cultural e social, avessa à política dos diagnósticos e das terapias e à retórica das deficiências e das carências. Enfoques restritos à clínica (psicológica, mesmo que psicanalítica) são insuficientes para dar conta desse processo, na medida em que ignorem que uma gramática da pessoa transcende o psíquico.
Nesta comunicação, a partir de observações realizadas no âmbito de uma pesquisa em andamento (FAPESP 04/03463-2), examinam-se vivências contemporâneas da adolescência que se vinculam, tanto como forma de contestação como enquanto meio de auto-afirmação e de reconhecimento, a setores cultural e etnicamente discriminados. Vai ser discutida, numa perspectiva social e psicanalítica, a adesão a religiões populares mediúnicas por parte de um largo contingente de adolescentes da periferia urbana da Grande São Paulo, a qual se supõe que ilustre uma tendência e seja representativa de um fenômeno social que possa encontrar-se por todo o país.
Neste contexto, ainda que necessariamente nisso não se esgote o fenômeno, o transe pode ser compreendido como processo de circulação social de significantes inter-geracionais, inscritíveis em performances, em gestos (rituais), em estéticas e no corpo, que permite o reencontro de insígnias do ancestral e a sua re-encarnação no lugar do eu, graças a recursos possibilitados por uma gramática cultural brasileira, tributária de tradições indígenas e africanas que se preservam como marcas de origem para larga parcela dos adolescentes nacionais.
Adolescer implica o "sacrifício" de ascendentes, ou, mais precisamente, de signos, valores, sintaxes e estilos que lhes sejam associados, de maneira tal que possam ser apropriados, remodelados, e transformados em traços de identificação e marcas de pertencimento. É um processo descontínuo e conflituoso que implica a assunção do lugar de outrem, sem se confundir nem se distinguir a ponto de ser impossível lá se reconhecer. É uma equação traumática entre afiliar-se e preparar-se para substituir a quem se ama e de quem se depende para poder aceder a uma identidade pessoal e social.
O Pai, investido no lugar do "morto", deve ser admirado e comemorado, o que nem sempre está dado ou é imediato num contexto social e político que discrimina e humilha contingentes sociais de migrantes e componentes étnicos não brancos (índios e negros). A valorização e recriação de práticas e crenças dos antigos, neste contexto, é uma forma de auto-afirmação e de contestação social.


 

 

Introdução

A adolescência não é uma etapa do desenvolvimento nem se prende a uma idade, embora culturalmente se assinale a algumas. Não corresponde a nada de positivamente dado, mas antes é um estado de liminaridade entre o infantil e o adulto. Trata-se muito mais de um processo social, que implica uma passagem do sujeito de uma posição na ordem cultural de criança para a de adulto, dependente de operações simbólicas que transcendem o psiquismo individual, do que de um momento ontogenético do desenvolvimento humano.

O âmbito da ontogênese, intrinsecamente tributário da noção de um desenvolvimento e da correlata psicologia, é pobre para dar conta da estrutura da pessoa, étnica, social e culturalmente variável, a qual é irredutível àquilo que uma psicanálise fiel à terminologia das suas origens denomina de "aparelho psíquico".

Pelo menos é nessa direção que avança a reflexão lacaniana, a qual parece útil para refletir questões como esta, numa perspectiva interessante tanto para um refinamento da escuta clínica, como integradora do contexto histórico-social à experiência do sujeito e capaz de conceber a psicanálise como um dispositivo não redutível a um entendimento de pessoa datável e datado ao apogeu da mentalidade individualista burguesa e restrito a uma interioridade privada.

Segundo Lacan, a psicologia moderna em geral e a do desenvolvimento em particular ignorariam a incidência da alteridade e dos seus efeitos, confundindo operações simbólicas embasadas em matrizes culturais que transcendem os indivíduos particulares com coisas naturais relativas a uma pretensa realidade dita psíquica. Ou seja, projetariam a descontinuidade entre um homem adulto e uma criança, por exemplo, numa suposta objetividade empírica, confundindo significantes com as suas sombras imaginárias.

Desta forma, configura-se o enorme risco de a psicanálise desandar em psicologia – converter-se numa prática normativa de como os sujeitos deveriam ser se "crescessem" corretamente, caso se desenvolvessem "naturalmente" – ou seja, a psicanálise postula-se como uma ciência natural. Mas efetivamente, por se referir a uma naturalidade do humano historicamente circunscrita e determinada por interesses e relações de poder, deste modo a psicanálise se degrada num exercício de subserviência, de cunho ortopédico, destinado a disciplinar os homens, "retificando" os desejos.

Não obstante a abundância de referências lacanianas contrárias a tal coisa e os efetivos subsídios teóricos que o autor proporcionou para evitar esse descalabro, é incrível que ainda hoje em dia, e isso parece estar longe de acabar, haja por uma larga parte dos "soit disant" lacanianos uma predisposição ao avesso da psicanálise, mesmo ou principalmente proveniente de quadrantes que não poderiam alegar inocência quanto ao desconhecimento das restrições éticas e epistemológicas do psicanalista à psicologização do inconsciente.

E quando isso acontece, a adolescência, em vez de uma travessia simbólica, rito de passagem, investidura simbólica, passa a ser entendida como uma etapa da vida, uma propriedade de um tempo da vida, e não como um estado de liminaridade, um entre dois lugares consubstanciado numa equação mais propriamente sócio-cultural do que biopsicológica, que opera uma transformação do ser infantil em homem adulto.

Alheia a isso, a retórica da psicopatologia invade a tudo e a todos, inclusive processos educacionais e até escolares. A iniciação à vida adulta passa a ser vista como tempo de vida natural e empírico e eventuais protestos ou negociações por parte dos que se iniciam passam a ser explicados em termos de saúde e doença, desempenho esperado ou atraso. É uma pena, e uma demissão.

 

O adolescer

O adolescer é um momento de investidura numa posição subjetiva de adulto, que segue parâmetros estruturais e inconscientes, custando a crer que tantas psicologias, muitas inclusive marcadas pela psicanálise, se entretenham em falar do adolescente como se de um estágio do desenvolvimento se tratasse, que não mero adjetivo que se refere a ritos de passagem, que, mal equacionados, podem durar anos e perdurar subjetivamente e deixar seqüelas para o resto da vida.

É fato que correlativamente à adolescência se costumam apontar uma faixa etária e mudanças objetivas do corpo, como o amadurecimento da capacidade reprodutiva, e certamente tais mudanças da forma corporal e do funcionamento hormonal incidem sobre os sujeitos. Não são, porém, elas as causas do processo do adolescer, nem o explicam, sob pena da adolescência se conceber como um capítulo da biologia e se desconhecer o surgimento da infância e do adolescer como construções culturais. O papel do corpo, também nesta circunstância, aponta possibilidades de destinos marcadas anatomicamente, mas, por si só, não determina o sujeito, a não ser que haja a prevenção de o reduzir à esfera biopsíquica, fazendo corresponder imediatamente transformações somáticas a tempos do "desenvolvimento" psíquico.

Mas, de fato, o sujeito não se desenvolve, na acepção de que não resulta naturalmente de um processo linear e biológico. Esta é uma concepção afeita ao biologismo evolucionista, que supõe uma naturalidade da noção de personalidade como a jóia da coroa da construção de um eu liberal burguês, célula atômica e homogênea do homem ocidental, cercado de pressões e conflitos por todos os lados.

Desse modelo de pessoa, que culmina e se organiza em torno da possessão privada dos conteúdos da mente, são sintomáticas as chamadas neurociências (o sujeito seria um agregado de consciência e cérebro cercado de terminais de captura de estímulos e de apêndices somáticos inervados por todos os lados).

O mesmo "modelo" traduz-se tecnologicamente no âmbito da Educação na forma dos treinamentos construtivistas, que reduzem a transmissão cultural ao ministrar os estímulos certos nas horas certas... A criança passa a ser vista como uma espécie de terminal de computador. Ensina-se música, por exemplo, não por ela mesma, mas porque ajuda a desenvolver o raciocínio matemático. Não é preciso lidar com as coisas, mas com amostras que proporcionem as doses de estimulação adequadas ao "desenvolvimento"!...

Tal concepção, redutora da pessoa ao cognitivo, subordinadora do sujeito a regras formuladas como etapas naturais próprias de cada fase do desenvolvimento, vincula-se ao presente histórico, nada garantindo que sobreviva além das circunstancias sócio-econômicas que lhe deram azo. Pressupõe uma simplicidade ou pelo menos unidade do eu regularmente desmentida pela ocorrência de crises. Ignora o atravessamento da identidade pelos outros, pela história, pela sociedade, e mesmo pelo próprio do self, irredutível ao processamento cognitivo de representações.

Além disso, também promove uma sistemática confusão do lócus dos traços identitários (significantes) com as formas ditas naturais do mundo, mal entendido que só sobrevive às custas de uma hipertrofia da categoria de patológico, à qual se subsumem inúmeras circunstâncias habituais da condição humana.

 

Adolescência e finitude

O adolescer denuncia a inaturalidade do desenvolvimento. O que está em pauta é a organização e reestruturação da vida social em torno da admissão, não cognitiva, da finitude.

A reivindicação de imortalidade, ou melhor, a denegação da finitude, uma vez que no velho e na agonia se enxerga o próprio destino, faz com que os sujeitos adolescentes, ao se inserirem no mundo adulto que encontram ocupado pelos que os precederam, estruturalmente signifiquem a substituição a que se destinam como um empenho em destituir, matar, os seus amados progenitores. O herdeiro, implicitamente, é percebido como assassino, parricida.

E isso tanto do lado de quem adolesce, como do lado de quem cuida, de quem inicia o adolescente, embora se trate de uma ilusão de ótica, necessária para desviar os olhos do real da morte.

Os homens morrem e por isso, para se reporem, se reproduzem. A princípio nisso não se distinguem de todas as outras formas de vida, mas a historicidade humana e a capacidade de antecipação do futuro fazem com que as incidências desta condição de mortal atinjam a organização social e sejam determinantes para a constituição psíquica.

Cada nova geração precisa ser iniciada à vida adulta, educada pela anterior, por estar destinada a ser substituída. Em certo período da vida, co-habitam os iniciandos com os seus iniciadores, todos marcados para morrer, mas em tempos diversos (com diferentes expectativas de vida). Isso introduz uma crise estrutural, em dupla chave: por um lado, o que se revela ao novo, na sua condição de herdeiro e potencial substituto, é a sua própria finitude, na medida em que se lhe assinala o destino de vir a ocupar uma posição de um ascendente, com o qual se identifica e do qual recebe – ou mais exatamente, deve subjetivar – todas as prerrogativas, inclusive a revelação da finitude de ambos. Por outro lado, ambas as gerações ainda estão vivas, e o lugar a que se destina o jovem não está vazio, ou, mais precisamente, durante um tempo mais ou menos longo, continuará ocupado pela geração precedente. É isso que propicia a ilusão de que o que se disfarça em processo natural de desenvolvimento em verdade e na realidade é uma determinação cultural, uma imposição do outro, a qual pode revelar-se para o sujeito como uma intencionalidade homicida.

Essa ilusão de ótica é reforçada pela necessidade de fantasiar, controlar o próprio destino (não é que o outro morra e logo "eu" também seja mortal, em realidade ao ocupar o seu lugar sou "eu" que o mato), mas agudiza o conflito entre os laços amorosos do sujeito para com o núcleo familiar e a comunidade a que deve o próprio ser e a ritualização antecipatória da inevitabilidade de uma ruptura e perda desses vínculos, que é propriamente a adolescência, essencialmente uma iniciação ao reconhecimento da própria morte.

De certa forma, os ritos do adolescer, ou melhor dizendo, esse processo, reproduz a lógica magistralmente delineada por Freud em "Totem e Tabu". Há obrigatoriamente uma ritualização da luta e do conflito, em que se unem numa oposição irredutível os que mais se amam.

O adolescente, no fundo, sabe que não pode obedecer ao apelo de tomar o lugar dos pais, sob pena de literalmente erradicá-los da vida. Amoroso, conflita e desobedece. Os pais, a sociedade, o sistema educacional, deveriam entender esta desobediência como um ato de ternura e de cuidado para com os mais velhos e de respeito para com os ancestrais.

Matar e recriar, a ilusão de ótica que faz o adolescente parecer um terrorista iconoclasta, responde à necessidade de reivindicação de autoria, como reconfortante ilusão de controle sobre o real da morte. A morte e a destruição intrínseca ao tempo passam a confortadoramente se interpretarem como acidentais, decisões pessoais, e não um fim irrevogável.

Os sujeitos adolescentes nada podem fazer para evitar serem os herdeiros, os sucessores, nos bens e na vida, dos seus pais. Essa é uma realidade cultural embasada na condição de finitude que motiva o desejo da sua vinda à existência, pois de certa forma neles os pais enxergam a única possibilidade, diferida, de perpetuação na existência.

Essencialmente humanos, os sujeitos adolescentes precisam "comer", introjetar palavras pensamentos e obras, pondo-se na posição autoral perante elas, de continuadores e substitutos, mas também podem ser potencialmente engolidos pelo desejo de pais e educadores de os reduzirem a cópias fiéis, quase clones, deles próprios.

Uma tarefa difícil é decidir que parte de si vai ser concedida à sobrevivência de um monumento ao outro – a carreira profissional? Casar e por sua vez proporcionar-lhes netos? A realização transferida de uma ambição frustrada? – e em que medida se deve preservar uma distância, uma diferença, que evite a anulação no outro.

Nasce-se e se reproduz, porque se morre, mas em nome da reivindicação de uma certa imortalidade para os velhos, manifesta-se a ilusão de que é preciso afastá-los, matá-los, para se identificar, tomar-lhes o lugar, na forma da assunção de insígnias do outro, da apropriação do que o simboliza, mas sem se lhe identificar totalmente – mantendo uma nesga de diferença.

Acima de tudo, o adolescer não é uma entidade psíquica definida, mas uma difícil equação, na qual o sujeito de um lado recebe as máscaras e insígnias que passarão a ser matrizes de um rosto social que o aguarda (responsabilidades, filiações, profissões, funções), mas de outro precisa atacar os seus representantes para revelar-se o destino de apossar-se do seu lugar. É uma operação difícil, ou traumática, na qual qualquer fuga ou desvio confirma a efetiva vocação (isto é, os seus percalços deixam geralmente a nu do que se trata).

Nem sempre as famílias e principalmente as instituições conseguem agir equilibradamente nestas circunstâncias, deixando de reconhecer na contestação juvenil um voto de obediência e a fidelidade às regras do jogo.

Em suma, é preciso suceder aos pais e genericamente às gerações anteriores, habilitando-se a por sua vez ser sucedido pelas seguintes, mas há que fazê-lo mantendo uma diferença, um desvão, que permita a convivência com semelhantes humanos da geração anterior, e queridos.

Não há nada de "natural" na crise da adolescência, nem ela procede de pretensas promessas de gozo aos jovens, não cumpridas por parte dos adultos. Tudo isso é acessório, e muito mais da ordem da racionalização do que da explicação. Se a permanência e co-habitação dos nem mais tão jovens nos núcleos familiares de origem hoje em dia se delongam e a adolescência prossegue em faixas etárias mais tardias, é porque uma relativa abundância permite aos mamíferos humanos não expulsar as crias logo que a idade o permita. Recorde-se que de uma perspectiva interespécies, pensando nos nossos parentes biológicos, são mais as crias que se mantêm ligadas às famílias de origem, do que estas que as prendem a si.  

 

Adolescência em transe

O cunho estruturalmente parricida da adolescência não pode diluir-se em naturalidade, ou justificar-se em vãs promessas aos jovens. Nada poderia apaziguar esta tensão. Por trás do adulto, Pai, está a sombra do ancestral e, subjacente a este, o morto que prefigura a morte, a notícia da mortalidade do próprio sujeito, em si mesmo (não é casualmente que efetivos óbitos paternos ou a sobrevinda de doenças graves dos pais no período do adolescer possam desencadear culpas e terríveis recriminações, auto e alter dirigidas).

Um tanto paradoxalmente, remanescem traços, memórias, significantes, que circulam socialmente e são os pontos de apoio para a configuração humana das novas gerações, mas sempre trajados pela morte. Concomitantemente, o adolescente depara-se com um encontro marcado e inevitável com o mais arcaico e antigo, mas também é sua missão, além de perpetuá-lo, rejuvenescê-lo, recriar a tradição.

É claro que esses traços, memórias, significantes, vão ter contornos culturais e elaborar-se conforme sintaxes específicas em contextos culturais particulares.

Esta contribuição a este Simpósio visa chamar a atenção para um modo especial de como isso se passa numa região social brasileira que é a dos jovens da periferia, contrastante com o do núcleo politicamente dominante da identidade social e cultural européia do país, real ou forjada.

Principalmente nesse meio cultural, ou mais precisamente, entre os setores da brasilidade mais fiéis às suas raízes paternas não européias, há um importante recurso cultural para estruturar a pertença e elaborar a identidade: o transe mediúnico praticado em vertentes de tradições religiosas brasileiras de origem africana e ameríndia, já sincréticas, quais mosaicos culturais reflexivos do processo de miscigenação étnica do qual provêm na sua quase totalidade os habitantes da periferia.

A pessoa não é a personalidade e, graças à concepção lacaniana de significante, semiótica, não reduzida ao verbal, podem-se conceber processos de transmissão e recriação cultural, circulação de identidades, que muitas vezes são mais um "jeito de corpo" do que se consubstanciam em representações. No transe, recurso de construção discursiva disponibilizado por uma gramática cultural brasileira, que esta tem em comum com as suas raízes não européias, tais significantes ganham corpo, tomam a forma do corpo e dão vida ao recalcado, ao ancestral, na medida em que as suas práticas religiosas se concebem como formas literais de dar ouvidos ao "morto".

Embora a isso não se possa reduzir a complexidade e profundidade desses fenômenos religiosos, sem dúvida um dos seus importantes papéis é permitir o reencontro de insígnias "paternas" e a sua re-encarnação no corpo dos jovens, facilitada por uma gramática cultural africana e ameríndia que inclui uma sintaxe da pessoa que engloba aspectos não redutíveis à interioridade psíquica, encarnáveis em relações sociais complexas e comunitárias.

No transe os corpos vivos dão vida ao morto, ao Outro, à ordem simbólica, na forma da homenagem a tipos populares representativos de segmentos sociais historicamente dominados, mas aos quais se filiam e dos quais genealogicamente, ou pelo menos ritualmente, se supõem descender os seus "filhos" contemporâneos que lhes emprestam os seus corpos para que se denegue a sua morte e a sua voz se faça ouvir. Desta forma, homenageia-se, se resgata do esquecimento, e se contradizem, os significados dominantes atribuídos a uma legião enorme de vidas anônimas, que se definem em tipos heróicos, prototípicos de existências populares (índios, mulheres "da vida", boiadeiros, escravos, cangaceiros, trombadinhas, marinheiros, curandeiros indígenas, malandros mais ou menos urbanos, etc.).

O panteão desses cultos restitui dignidade a uma legião de espíritos e vidas comuns a ancestrais. Os jovens recriam-nos à medida necessária à sua afirmação e com os seus corpos tomam o seu lugar para fazer valer os seus direitos, tanto dos mortos humilhados, como, e nisso aparece o seu cunho contestatório, o direito de serem seus filhos e de se honrarem de o ser.

Desta forma, a operação central do adolescer que consiste em indicar e estabelecer as vias segundo as quais os filhos se fazem adultos e substituem os pais, depende neste âmbito popular de uma segunda faceta, aparentemente inversa: para alcançar aquele propósito, devem previamente os pais (ritualmente simbolizados no transe) ocupar simbolicamente o lugar dos filhos no papel de agentes possuidores dos seus corpos, para que possa retificar-se a desvalia e resgatar da morte alternativas identitárias que permitam desviar-se da incidência do olhar do poder patriarcal "branco", que perfilha mas não filia, condenando esses sujeitos a posições periféricas relativamente ao usufruto dos bens simbólicos e econômicos, perspectivando destinos marginais ou de exclusão.

Na contramão da "modernidade", em ruptura com o suposto desencantamento do mundo, resistindo à pressão da mídia, à opressão da evangelização e ao massacre da escolarização, sobrevivem e se praticam técnicas de êxtase e performances corporais que recriam, resgatam, restituem, re-animam, modos da função paterna que contestam uma subjugação social e fornecem alternativas identitárias a partir de referências de filiação histórica socialmente reprimidas e recalcadas.

De fato, contrariando uma série de pressões sociais descritas pela literatura pertinente como "modernizadoras", pressões religiosas que satanizam a possessão, e a ascensão de modelos de pureza africana prestigiados pela literatura acadêmica, contrários ao culto aos mortos, surpreendentemente proliferam e subsistem em pequenas comunidades práticas rituais e formas de vida relacionadas ao que pejorativamente se denominou de "baixo espiritismo". Uma das coisas que mais chamam a atenção nesses cultos, por vezes discretos, caseiros (invisíveis para o IBGE), é o enorme contingente de adeptos adolescentes.

Em vez de fiéis idosos, remanescentes do século passado, retirantes do século XIX, sobreviventes de ex-escravos ou de populações sertanejas migrantes mal adaptadas à vida urbana, os terreiros são ocupados majoritariamente por hordas de jovens já urbanos e adultos jovens, bem adaptados à sobrevivência na periferia e que não têm outro lugar para ir que não os bairros que os viram nascer.

O que explicaria a sua atração para esses jovens e que papel podem ter esses cultos na vida deles?

 

Afirmação étnica e formas sociais de cognição

As narrativas do transe podem ser faróis e lentes de aumento de detalhes fundamentais e de lacunas da realidade real, pelo menos da perspectivas do Outro.

Em transe conjugam-se partes do corpo com partes do mundo. Essa interface é importante e apesar de parecer infantil ou ingênua (comprometida com o suposto primarismo da analogia) é precisamente essa sua insuficiência – de um ponto de vista de uma cognição validável cientificamente, a sua "irracionalidade" – que torna as narrativas do transe aptas a expressar uma afirmação da própria subjetividade em moldes que escapam ao controle discursivo e à manipulação retórica pretensamente impessoais e desinteressadas, instituintes da "normalidade", da "objetividade" e da "saúde" (mental).

Prática eminentemente familiar e comunitária, intrinsecamente social e socializante, o transe re-enuncia tradições e constitui-se num recurso para o estabelecimento de uma rede de comunicação social e de preservação de memórias comuns em que também se formulam coletivamente interpretações (inconscientes) acerca de si e da realidade (social), as quais em conjunto se constituem numa autêntica forma de cognição social – ou mais precisamente (para evitar mal entendidos), numa forma social de cognição – evidenciadora de uma permeabilidade sutil ao Outro, criativa e eficiente, em planos que não se resumem ao córtex nem à linguagem verbal.

No transe o corpo ressoa um Outro que faz ressoar o sujeito em si mesmo. Uma vizinhança do âmago de si, não metafísica, transparece no corpo, no movimento. Meditar é dançar, entranhar-se em si. Talentosos pais de santo integram desvios em sinais, um imprevisto na seqüência ritual passa a ser a invasão comunicativa de algo que transmite uma mensagem a todos e transforma o elemento perturbador em antena do grupo. O ritual desdobra-se numa forma social de cognição.

É espantoso o quase total desconhecimento, pela cultura psicológica do país, de um tal fenômeno. O negro (e o índio) passam em branco.

Talvez uma das razões para não se haver prestado atenção adequada a esse fenômeno social sejam injunções políticas que tornam "invisíveis" os sujeitos populares que não se modelem subjetivamente segundo categorias sociológicas abstratas como a "classe operária", os "trabalhadores", os "camponeses sem terra" e outros tantos. Mas outras razões podem ser o nível de complexidade teórica que o tema requer e a abordagem interdisciplinar que ele exige.

Não obstante, a psicanálise lacaniana e a antropologia da performance podem constituir-se num ponto de partida interessante para a sua investigação. É importante resgatar o cunho precioso da obra maltratada de Victor Turner, a sua idéia de performance, elaborada de permeio a referências ao Brasil, a sua maravilhosa intuição de que o significante é sensível (ou seja, que os meios da pulsão afetam o conteúdo da imagem) e que a arbitrariedade do signo é relativa, não do ponto de vista semântico, mas pela dimensão material (corporal) que o constitui: não é indiferente ao significante que seja cheiro, cor, forma, movimento, forma e movimento (gesto), etc.

A letra pressupõe recortes sensoriais. Não se compreende apenas com os olhos, mas como determinação corpórea do espaço de visão. A palavra "água" não substitui a presença significante da água, o significado de flor não se resume a significados catalogáveis, inclui experiências sensíveis. Nisso reside uma das importantes contribuições de Turner a respeito da performance, alertando para um dado mal interpretado pela escolástica lacaniana.

Em suma, o desencarnamento lógico-formal do significante, reduzido ao verbal, é pouco útil para a investigação psicanalítica e social, pelo menos para o estudo do transe. Não basta desistir de conceber o sujeito e o inconsciente em termos psíquicos, se depois se reduzir o semiótico em que se articulam a representações verbais, psiquicamente ancoradas. É fundamental admitir a remissão do significante ao sensorial e admitir as linguagens não verbais e o corpo em transe como instância enunciativa.

Com esses instrumentos é possível ouvir o que esses adolescentes enunciam ao resgatarem para a vida os mortos que são os pais que escolheram, ou melhor dizendo, ao resgatarem como virtude a marca de marginalidade a que os seus maiores se viram histórica e politicamente reduzidos.

Afinal, embora isso provavelmente não o esgote, o transe, enquanto um modo de enunciação do Outro marcadamente étnico e de circulação do significante não estritamente verbal, veicula uma memória inter-individual, social e íntima, que se processa em línguas "bárbaras", "estrangeiras", mas sussurradas na intimidade da brasilidade, e que vez por outra eclodem em gritos (os ilás rituais).

Como, em substituição aos pais do seu desejo, instituições escolares e políticas públicas persistem no paternalismo de diagnosticar carências, atrasos e deficiências num universo que fala Outra linguagem, é bem possível que esteja em trânsito uma interpelação aparentemente silenciosa, onde apenas se percebe mutismo…

Um papel possível para o psicanalista, fora das paredes do consultório e das fronteiras do individualismo burguês, pode ser dar ouvidos e pôr-se a serviço dessas comunicações, em vez de delas se servir para mostrar serviço aos olhos dos poderes interessados em "garantir" a "modernidade", o "desenvolvimento", a "saúde" e a "educação".

 

Bibliografia Principal

Augras (1995). Alteridade e Dominação no Brasil: Cultura e Psicologia. Rio de Janeiro: Nau

Augras (1983) O Duplo e a Metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô. Petrópolis: Vozes

Bairrão (2005) Águas e Labaredas. In Valdemar Angerami-Camon (org.) Psicologia e Religião. SP: Thomson (no prelo)

Bairrão (2003). Caboclas de Aruanda: a construção narrativa do transe. Imaginário 9:285-322.

Bairrão (2003) O Impossível Sujeito vol. 1. SP: Rosari

Bairrão (2005) O Impossível Sujeito vol. 2. SP: Rosari

Bairrão (2003) Raízes da Jurema. Psicologia USP 14 (1), 157-184.

Bairrrão (2004). Sublimidade do Mal e Sublimação da Crueldade: Criança, Sagrado e Rua. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 61-73.

Bairrão e Leme (2003). Mestres Bantos da Alta Mogiana: Tradição e Memória da Umbanda em Ribeirão Preto. Memorandum: Memória e História em Psicologia 4: 5-32

Freud (1969) Totem e tabu: Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos Selvagens e dos Neuróticos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago Editora. Originalmente Publicado em 1913

Lacan (2003) Autres Écrits. Paris: Seuil

Lacan (1966) Écrits. Paris: Seuil

Turner, V. (1987). The Anthropology of Performance. New York: Paj Publications.

Turner, V. (1969). The ritual process. London: Cornell Press.

Van Gennep (1978) Ritos de passagem: Estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, ordenação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Petrópolis: Editora Vozes.

 

 

Auxílio FAPESP 04/03463-2