1Adolescência em transe: afirmação étnica e formas sociais de cogniçãoBranquitude e poder: a questão das cotas para negros author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Apontamentos para uma clínica psicanalítica dos problemas de aprendizagem na adolescência

 

 

Leda Maria Codeço Barone

 

 

I-

Embora presentes, na maior parte da descrição de neurose, referências a certo déficit cognitivo, a psicanálise nunca tratou diretamente dos problemas de aprendizagem. Pelo menos de forma explícita. No entanto transbordam, nos escritos de Freud, diversas referências ao assunto. Veja por exemplo seus textos: "A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão" e "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância" ambos de 1910, ou "Inibição, sintoma e angústia" de 1925, ou ainda "Um distúrbio de memória na Acrópole" de 1936, entre muitos outros, nos quais há ampla referência ao tema. Em diversos momentos, Freud afirma serem os erros de escrita, atos falhos, atos que nos falam a partir de um outro lugar. Também interessa ressaltar a ênfase que dá ao sentido simbólico da escrita: escrever pode representar o coito, como o derramar substância em uma folha branca de papel.

De fato, qualquer descrição de neurose ou de psicose aponta para algum problema cognitivo, seja pela distorção da percepção, seja pela impossibilidade de dar a resposta assertiva, seja pelos erros de julgamento motivados pelo desejo, seja pelos déficits de memória, pela inibição, etc.. Gibello, comentando o pouco interesse que o médico vem dirigindo aos problemas de inteligência, afirma que esta falta de interesse expressa, de alguma maneira, o sofrimento narcísico que tais distúrbios põem a descoberto. Por exemplo, o autor chama a atenção para o uso pejorativo que se faz – nas brigas tanto de adultos como de criança - de termos como débil, imbecil, idiota, cretino, demente, todos derivados da patologia intelectual. De alguma maneira, tratar desse assunto traz, a quem se dispõe a fazê-lo, um sofrimento narcísico importante.

No mesmo texto, Gibello situa a publicação do trabalho de Margaret Mahler, de 1945, intitulado: "Imbecilidade: um manto mágico de invisibilidade", como a primeira observação de tratamento psicanalítico de uma síndrome deficitária intelectual. O autor acredita, ainda, ter sido a perspectiva psicanalítica responsável pela retirada da patologia intelectual de seu gueto, na medida em que os progressos da teoria e da prática psicanalíticas nos levaram a nos interessar cada vez mais pelo pensamento, suas alterações, sua gênese e pelo tratamento de seus distúrbios. Naturalmente que reconhece também que o caminho havia sido preparado pelos psicólogos da inteligência como Binet, Wallon e Piaget e seus seguidores, que permitiram discernir melhor as manifestações da inteligência e identificar suas anomalias, distúrbios e doenças, bem como tentar avaliar seus aspectos característicos.

No entanto, se é fato que diferentes teorias ou escolas psicanalíticas fazem contribuição para o entendimento de certos aspectos dos distúrbios de inteligência, é certo também que nenhuma aponta diretamente para uma clínica dos problemas de aprendizagem.

Por outro lado, o trabalho com pacientes com distúrbios de aprendizagem coloca questões importantes a quem se dispõe a tratá-los. Isto porque, quase sempre, tais pacientes apresentam um quadro de comprometimento que extrapola o campo de ação, específico de diferentes profissionais, envolvendo dificuldades cognitivas, instrumentais e afetivas.

O encaminhamento desses sujeitos para uma análise convencional nem sempre é adequado por motivos inerentes à análise como: a não focalização do sintoma; a dificuldade de levar adiante uma análise, quando não existe por parte do sujeito o desejo de análise e também devido à sua longa duração. Outras vezes, a natureza da dificuldade demanda ação especializada se considerarmos: 1- a hierarquização da aprendizagem; 2- que existe um momento ótimo para certa aprendizagem, e 3- a importância que tem a aprendizagem para a constituição subjetiva. Assim, dependendo da defasagem e do tipo de sintoma apresentado, será necessária também uma reeducação.

Já o encaminhamento para a reeducação dos sintomas pode trazer outros tipos de dificuldades, como freqüentemente observamos: a irredutibilidade, a reincidência ou mesmo a substituição dos sintomas, apesar de repetidas tentativas de reeducação. Isto é o que observa Cahn a partir da consideração de dados extraídos da prática clínica. Este autor defende a opinião de que o enfoque psicanalítico, em sua tríplice dimensão – dinâmica, tópica e econômica – poderá lançar alguma luz à compreensão da patologia da leitura e da escrita, sem contudo, negar a importância de fatores de dotação ou instrumentais relacionados à origem e persistência de tais distúrbios. Ele ainda relaciona algumas noções da psicanálise à aprendizagem da leitura e da escrita: 1- para ele, aprender coisas através da visão tem raízes nas pulsões voyeuristas, articula-se ao desejo de exploração do corpo materno e à curiosidade relativa aos mistérios da sexualidade; 2- o domínio da escrita tem mais ou menos relação com o erotismo motor que se articula aos conflitos da fase anal; 3- a aprendizagem da leitura e da escrita pode ser vivida como importante passo de acesso ao saber e à cultura, articulando-se por isso ao complexo de Édipo. O autor então nos diz: "Aprender a ler dissimula um sentido preciso com relação ao desejo e ao medo de ser igual ao pai, de ser admirado pela mãe, e portanto, de poder ou não se referir e se identificar com uma terceira pessoa além da relação dual com a mãe", (Cahn, 1984, p. 76). E finalmente, comenta que a linguagem escrita é, dentre as diferentes possibilidades de estruturação dos significantes, a que se revela mais abstrata, a mais arbitrária e, portanto, mais afastada das pulsões. Sua aprendizagem pode gerar conflito entre o distanciamento e a aproximação das pulsões, expressas pela linguagem falada e pelo desenho.

Outra contribuição significativa a respeito do papel dos processos inconscientes na aprendizagem da leitura e da escrita é dada por Bettelheim e Zelan, (1984). Estes autores, após observação, levada a efeito por uma equipe escolar, de cerca de 300 crianças, por um período de quatro anos, durante aulas de leitura, propõem que os erros de leitura, além de serem significativos para a pessoa que lê, podem representar uma espécie de mensagem motivada pelo inconsciente e dirigida ao adulto para quem a criança lê.

 

II-

A adolescência – período que separa a infância da idade adulta – se caracteriza por diversos episódios de desequilíbrio e ruptura. A partir de constituição psíquica do adolescente e face às exigências colocadas a ele pela complexidade da cultura na qual está inserido, esse período tornar-se-á mais ou menos turbulento, podendo até constituir-se como verdadeira fase de crise. Pois o adolescente, premido pelo eclodir da maturidade sexual, e perplexo face ao desconhecido da vida adulta, deverá fazer uma série de ajustes capazes de articular o passado ao devir. Assim, é tarefa principal do adolescente a revisão de sua identidade considerada nos aspectos de assunção da sexualidade, de busca de autonomia e de desenvolvimento das competências. Tal tarefa depende essencialmente da possibilidade de viver o luto pela perda da infância assim como de suportar toda sorte de surpresa que o desconhecido lhe traz.

Chamamos de aceitação da sexualidade a possibilidade de realizar identificação com um papel sexual, a consideração da potência sexual e a escolha do objeto. A consideração destes aspectos importantes preparará, pouco a pouco, o adolescente para a vida adulta.

A menina se vê às voltas com as primeiras menstruações, indicação clara do amadurecimento dos órgãos genitais. Assiste a mudanças radicais em seu corpo de menina que lentamente se transforma em corpo de mulher. Há o aparecimento dos seios e de pêlos pubianos, o arredondamento das formas do corpo e mudanças hormonais que precipitam mudanças importantes do desejo sexual.

O menino também sofre importantes modificações. Seu corpo é palco de variadas transformações: crescimento rápido, surgimento de pêlos em diferentes partes do corpo, o engrossamento da voz. Porém as mais radicais referem-se às mudanças dos órgãos genitais nos aspectos de ereção, orgasmo e produção de sêmen.

Naturalmente que, do ponto de vista da psicanálise, tais mudanças corporais, oriundas do amadurecimento biológico, são importantes na medida em que operam como fonte pulsional. E o incremento dessas transformações na puberdade obriga o adolescente a ajustes importantes de sua subjetividade. Entre elas, talvez a mais importante seja como interagir agora com um corpo realmente potente do ponto de vista da sexualidade. Há a necessidade de afastamento dos objetos incestuosos e direcionamento para novos objetos.

Como busca de autonomia nos referimos aos jogos identificatórios do sujeito, especialmente em relação ao movimento de submissão ao desejo do outro e de assunção do desejo próprio. É nesta época que se efetua o mais importante e, ao mesmo tempo, o mais doloroso trabalho psíquico para o adolescente. Trata-se do desligamento da autoridade dos pais. Este trabalho comporta a possibilidade de fazer o luto pela separação dos pais e pela perda da infância, essencial para a possibilidade de substituição dos objetos originais e a busca de ideais.

É principalmente em uma teoria da identificação que, em psicanálise, encontramos elementos para compreender o movimento de uma geração diante da outra e da apropriação por esta segunda dos aspectos da primeira. É através da teoria da identificação, por tratar ao mesmo tempo de um processo psíquico e social, que a psicanálise fornece elementos para a compreensão deste problema.

Lembremos que o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo. A definição que Freud fornece de identificação é uma ordem cuja característica é ser, ao mesmo tempo, um imperativo e uma proibição. Freud afirma que as relações do supereu com o eu não se limitam a dirigir a este o conselho: tu deves ser assim, mas implica também numa proibição: tu não deves ser assim. O que dito de outra forma, não podes fazer tudo aquilo que ele faz, há muitas coisas que são reservadas unicamente ao pai.

E é este o paradoxo com que se depara o adolescente ao buscar um lugar na sociedade. Questão esta conturbada ainda mais por outra faceta paradoxal presente na relação com os pais, pelo fato dela constituir-se, ao mesmo tempo, como algo com o que se deseja apegar e romper. O enriquecimento da identidade dá-se sobretudo na relação com os pais. Entretanto, essa identidade só pode aparecer como própria quando é estabelecida a autonomia em relação aos desejos dos pais. O conflito do adolescente está, assim, na possibilidade de conciliar dois movimentos contraditórios: identificar-se e ter autonomia ao mesmo tempo, ou seja: como conseguir assegurar uma identidade enriquecida pelas trocas com os pais e ao mesmo tempo, autônoma.

É preciso identificar na aparente rebeldia do adolescente, além de um pedido de autonomia, um chamado da presença dos objetos importantes, com os quais poderão ser estabelecidas outras formas de relação.

É de fundamental importância que seja resgatado o modelo de relação entre mestre e aprendiz, na qual o mestre mantém-se disponível como fecundo campo de aprendizagem sem, no entanto, minar os esforços antecipatórios do aprendiz, que posteriormente poderá vir a ocupar o lugar de mestre de uma nova geração.

Consideramos como desenvolvimento das competências a possibilidade do desenvolvimento das atividades sublimatórias: o delineamento de metas para o futuro; a transformação do brincar em trabalho; a possibilidade de utilização da criatividade e o reconhecimento das condições próprias, que promovam escolhas sintonizadas com o sujeito.

O desenvolvimento das competências associa-se sobretudo à instância do ideal do eu, presente na teoria freudiana a respeito do narcisismo. O ideal do eu estabelece-se no momento da desilusão narcísica, anteriormente garantida pelo eu ideal, passando a configura-se como objetivos e metas que se deseja alcançar. Com a desilusão da perfeição narcísica, há o surgimento de outra instância, capaz de acolher sementes de ideais direcionadas ao futuro, sem negligenciar os limites, como tentativa de restabelecer a completude narcísica. A construção de projetos para o futuro é assegurada pelo sentimento de auto-estima, também proveniente do ideal do eu.

A paralisação no processo de estabelecimento de ideais relaciona-se à fixação no eu ideal, ou seja, fixação em um ideal de perfeição, exilado do contexto de possibilidades. O sentimento de onipotência, que não sobrevive ao contato com a realidade, transforma-se em frustração que aniquila a capacidade construtiva.

A competência do sujeito, aliada às capacidades sublimatórias, permite a realização de atividades a partir de um engajamento subjetivo, ou seja, tendo como fonte de inspiração o próprio desejo. A sublimação, tal como conceitua Freud, compreende essa possibilidade da energia sexual dirigir-se a outra finalidade, que não sexual, mas promotora de prazer. O brincar estabelece essa relação, constituindo-se como fonte de prazer. A criatividade também apresenta esse caráter de possibilidade de transformação da realidade, a partir de um desejo próprio.

Algumas atividades do adolescente caracterizam-se como atuação (acting out), ou seja, descarga pulsional, com intuito de diminuir a angústia, sendo esta atividade nula em seu aspecto de enriquecimento subjetivo. Tais atividades se apresentam como repetição sintomática. Em muitos casos, a atividade masturbatória vem ocupar este lugar de descarga pulsional, sem constituir-se como enriquecimento da potência sexual.

É importante estar atento à natureza das tarefas realizadas pelo adolescente e se estas podem se constituir como oportunidades de enriquecimento simbólico, dado o caráter sublimatório a elas atribuído, ou se são atuações. Assim, o trabalho pode vir a substituir o brincar da criança pequena, por manter-se como espaço lúdico. A qualidade do vínculo com a aprendizagem também atravessa essas nuances, principalmente em um momento em que ela está muito relacionada ao estabelecimento de um lugar no mundo adulto, se considerarmos a premente necessidade de uma escolha profissional. Escolha esta que auxilia o adolescente a inserir-se no mundo adulto, como mais um participante legítimo.

 

III-

As dificuldades de aprendizagem surgidas na adolescência relacionam-se com essa tarefa independente de elas serem o recrudescimento ou a emergência de antigos sintomas ou de surgirem como novos. Isto porque, para além da materialidade do sintoma, ele é sempre um dizer do sujeito diante do mundo. Este fato coloca um impasse ao analista que se dispõe a tratá-lo: como fazer frente ao sintoma de aprendizagem e ao mesmo tempo ouvir o desejo?

Penso que a resolução deste impasse exige um refinado reconhecimento daquilo que torna eficaz a ação do analista. Refiro-me aqui ao método psicanalítico, a interpretação, entendida como ruptura de campo. Apenas a segurança metodológica pode sustentar o trabalho do analista que – como na análise de crianças em que se introduz o brincar -, com o adolescente terá que inventar, muitas vezes, sua técnica através da utilização de recursos diversos como a literatura, a realização de tarefas ou mesmo a dramatização.

 

IV-

Observando as diferenças flagrantes entre as diversas escolas psicanalíticas no que dizia respeito a seus postulados, teorias e técnicas, e o efeito mais ou menos semelhante, Herrmann levanta uma hipótese de trabalho que acaba por embasar todo seu pensamento. Tal hipótese era a de que havia um operador comum presente em todas as formas de psicanálise e de psicoterapias. Descobre este operador no método interpretativo, ou seja, a ruptura de campo. O autor assim se justifica:

"Num certo momento da análise, certo paciente orbita em torno de algum tema psíquico que o aprisiona. Ele não pode exprimir diretamente, pois este tema é inconsciente, mas todas as suas idéias, sentimentos e falas parecem indicar uma estrutura geradora que o psicanalista também desconhece, mas suspeita existir. A tal estrutura chamemos campo. Que busca fazer o analista? Romper esse campo, para que suas regras se mostrem. Todavia, ele não sabe o que deve romper e, pior, como esse campo possui efeito transferencial, igualmente o aprisiona na sessão. O recurso usado por todos os analistas – e esta é uma operação comum a todos, sem exceção – consiste em pôr em xeque a capacidade do campo, escutando seu paciente segundo registros diferentes daquele que intencionalmente lhe é proposto. Por exemplo, se o analisando conta uma experiência de sua vida, ele procura entendê-la como se fosse uma metáfora da situação partilhada no momento, se lhe narra um sonho, toma-o como ponto de partida para uma rede associativa etc. Ou seja, descentra-se da zona consensual do campo, mesmo sem saber de que campo inconsciente se trata ainda".

É proposta da Teoria dos Campos o resgate da essência da psicanálise, isto é seu método heurístico, a interpretação entendida como ruptura de campo, capaz de produção de conhecimento e de teorias. Herrmann afirma que a Teoria dos Campos pretende ser instrumento de ligação entre as diferentes escolas ou sistemas psicanalíticos e diferentes disciplinas. Mais que um conjunto de teorias, ela pretende ser o veículo de articulação intra e inter psicanálise. A este respeito, assim se expressa o autor:

"A Teoria dos Campos é antes de tudo um veículo de comunicação conceitual. Serve para comunicar a clínica psicanalítica com a teoria, as teorias entre si, os diferentes sistemas psicanalíticos – que impropriamente se conhecem também por teorias (teoria kleiniana, teoria lacaniana, etc.), sendo porém pacotes fechados que contém temas típicos, teorias sobre eles, estilo clínico particular, técnicas, jargão e instituições de ensino – e a Psicanálise com outras ciências humanas, bem como servindo para comunicá-la com a realidade social. Se você me entende, a Teoria dos Campos não é propriamente um setor da Psicanálise, porém uma forma de utilizá-la por inteira; não só nas áreas que por tradição se consideram psicanalíticas, como também naquelas que não se consideram assim, mas que são objeto de psicanálises possíveis, ainda não existentes".

 

V- Psicanálises possíveis: clínica psicanalítica dos problemas de aprendizagem.

O método psicanalítico oferece-nos as linhas gerais de uma forma de conhecimento cujo correlato é um certo tipo de objeto a que se pode chamar homem psicanalítico. Da mesma forma ocorre com outras ciências: ao método da física corresponde o universo físico, feito de energia, matéria; ao método histórico corresponde a história humana etc. Porém à Psicanálise corresponde a psique humana, ou o homem psicanalítico.

É certo que antes de tudo o conhecemos em nosso consultório, uma espécie de laboratório, presentificado na figura de nosso paciente em análise. Porém, desde Freud, o homem psicanalítico tem sido estudado igualmente em condições que extrapolam os limites do tratamento psicanalítico clássico. Freud tratou da literatura, da cultura de forma mais ampla, por exemplo.

A Teoria dos Campos ao dirigir-se ao mundo humano, o considera como um extenso sistema de campos produtores de relações, cujas regras determinantes estão ocultas em cada um, mas que podem surgir pela ruptura. O campo mais amplo que nos concerne é, sem dúvida o do real humano. Entendemos por real o sistema de regras produtoras que criam o homem em qualquer condição imaginável de sua existência. Real é o mundo humano, a cultura, como conjunto de determinações inconscientes. Quando, porém o homem se destaca de seu mundo – seja na constituição de um indivíduo ou de qualquer outra configuração de sentido como um grupo, uma instituição, uma obra humana -, o real, por assim dizer, dobra-se sobre si mesmo, como o canto dobrado de uma folha de papel ficando uma pequena parte do real seqüestrada do todo e defrontando-se com o resto. A esta porção do real a Teoria dos Campos chama desejo, e o entende como a matriz simbólica que dá forma às nossas emoções e idéias. Embora real e desejo não sejam em si mesmos representáveis, seus produtos o são. À representação do real chamamos realidade, à do desejo identidade, por ser aquilo que faz de alguém – ou de algo humano – uma configuração característica, um ser identificável a seu desejo.

O método psicanalítico é passível de aplicação a qualquer representação, seja de realidade ou de identidade. A clínica psicanalítica é sem dúvida alguma nossa forma principal de pesquisa. Porém o estudo de outros fenômenos culturais é pesquisa psicanalítica também. Freud abriu esse espaço e explorou-o magistralmente.

 

VI

Também a clínica dos problemas de aprendizagem pode ser um interessante campo de trabalho com o método da Psicanálise. A complexidade dos sintomas aí apresentados acrescida da ineficácia dos métodos até então utilizados para saná-los exige o desenvolvimento de outra maneira de tratá-los, que sem reduzi-los à sua materialidade, possa deixar surgir as regras inconscientes de sua organização.

Alguns exemplos da clínica poderão ilustrar o que defendemos aqui.

Uma adolescente refazendo o primeiro colegial pela terceira vez, em entrevista diz "Gostaria que você descobrisse qual é a minha falha", para mais adiante acrescentar: "Gostaria de mudar da cintura para baixo". Quando interrogada sobre o que temia afirmou: "Tenho medo de passar no vestibular" corrigindo-se em seguida quando se dá conta do ato falho, dizendo: "...de não passar no vestibular". É interessante notar que até então esta adolescente vinha progredindo regularmente em sua escolaridade. Não era aluna brilhante mas conseguia sucesso relativo. Porém, a entrada no colegial trouxe questões ligadas a possibilidade de conseguir autonomia e um grande medo de enfrentar as questões da vida adulta. Ter medo de passar no vestibular, de assumir seu crescimento e competência. Para não correr o risco de passar no vestibular ela brecou seu desenvolvimento no primeiro colegial defendendo-se portanto do risco. A falha da cintura para baixo é uma interessante alusão às questões da sexualidade. Seu tratamento foi perpassado por estas questões.

Um outro adolescente, de treze anos, vai muito mal em sua escolaridade. Não se trata propriamente de um caso de problema de aprendizagem, mas de desempenho ruim em decorrência de sua maneira de estar em classe. Apresenta um comportamento tremendamente irritante na sala de aula. Quer chamar a atenção sobre si o tempo todo. Os professores não o agüentam mais e os colegas estão a ponto de expulsá-lo da classe tal é o excessivo de seu comportamento. Só ele quer falar, não escuta os colegas nem os professores, movimenta-se o tempo todo. Empurra um colega, tira o lápis do outro. Mexe nos cadernos de um colega, joga bolinhas de papel em outro. Não se trata de agressividade aberta, mas de pequenos atos que vão tirando a paciência de todos. Só ele não se dá conta de como incomoda. Com isto tudo seu desempenho escolar é muito pobre. Comete muitos erros de escrita e apresenta pouca compreensão daquilo que lê. Recebo-o para um grupo de psicoterapia junto com outros adolescentes que apresentam problemas de aprendizagem.

No grupo este adolescente mantém o mesmo comportamento e embora os colegas reclamem, ele parece não perceber e continua do mesmo jeito. Propus, certo dia, uma atividade que consistia em fazer um ditado de direção em papel quadriculado. Embora o grupo já conhecesse esta atividade propus uma mudança; em vez de eu mesma propor os pontos de referência e o traçado, pedi que cada um do grupo propusesse um ponto numa moldura indicando-o no cruzamento entre as linhas horizontais e verticais. Após marcar o ponto cada um ditaria um percurso, (indicando a direção: alto, baixo, direita e esquerda) indo de um ponto até o seguinte, de maneira a chegar no final ao ponto inicial. Os componentes do grupo tinham uma indicação de seu acerto, pois foi dito que as linhas traçadas, semelhantes a um labirinto, não se cruzariam, não se encostariam e nem sairiam da moldura. Além disso cada traçado saía de um ponto e chegava no consecutivo até o ponto inicial, fechando o percurso. Se uma dessas coisas acontecesse, a pessoa saberia que errou. Mas ela poderia retomar o traçado a partir do ponto seguinte, uma vez que os pontos de chegada e de saída eram indicados a cada etapa. No final podia-se ditar novamente cada percurso para aqueles que quisessem retomar o traçado.

Pois bem, cada adolescente marcou seu ponto dando a localização para os colegas. Por exemplo, ponto 1 na primeira linha com terceiro cruzamento. Foram marcados seis pontos correspondendo ao número de pessoas do grupo. A primeira ditou seu percurso do ponto 1 ao ponto 2. Em seguida outra ditou do 2 ao 3. Chegou a vez do adolescente aqui em questão. Ele fez seu traçado ocupando todo o espaço restante da moldura. Eu não disse nada, aguardei. Quando finalmente ele chegou ao ponto 4, havia usado praticamente todo o espaço da moldura. O colega seguinte foi propor seu percurso e se deu conta de que não podia, não tinha espaço para traçar. O outro também não. Interrompi a atividade e abri espaço para eles falarem do ocorrido. O adolescente ficou transfigurado e disse: Puxa, não deixei lugar para mais ninguém! Ficou deprimido, pediu desculpas ao grupo e demonstrou, pela primeira vez, ter se dado conta desse jeito seu.

A um outro adolescente, de quinze anos, que apresentava uma inibição importante na aprendizagem, pedi que fizesse, antes de copiar um desenho no papel quadriculado, uma moldura que pudesse conter o desenho a ser copiado, deixando uma margem de três quadradinhos acima, abaixo, à direita e à esquerda entre a moldura e o desenho.

Após o traçado da moldura, quando começou a fazer a cópia do desenho, este adolescente se surpreende. A moldura feita era muito pequena, não cabia o desenho dentro. Convidado a falar sobre a atividade, ele expressa sua dificuldade em lidar com o pai, tremendamente autoritário que não lhe permite nenhum movimento. Diz sentir-se muito constrangido e com muita raiva do pai.

Procuramos, com estes exemplos, não propriamente aprofundar a análise de um caso, mas propor uma clínica dos problemas de aprendizagem a partir do método psicanalítico entendendo que a técnica pode e deve mudar nestes casos. Às vezes trabalhamos a partir de textos de literatura. Outros de dramatização e outros ainda utilizando tarefas, (como propõe o método Ramain). O uso dessas diferentes técnicas atende, às vezes, à necessidade de focalizar o problema de aprendizagem, outras, à demanda dos pais e dos adolescentes e outras ainda à impossibilidade ou ineficiência da utilização de uma análise clássica. Mas o ponto que gostaríamos de salientar é que a extensão do método psicanalítico a outros contextos, como no atendimento a adolescentes com problemas de aprendizagem, tem permitido ao adolescente entrar em contato com suas fixações, suas inibições e repetições podendo se colocar de modo diferente na aventura de aprender.