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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Da psicose de ação à adição vazia1

 

 

Fabio Herrmann

Da SBPSP, da PUCSP

 

 

No início dos anos oitenta, mais precisamente em 1981, após o atentado contra o papa, comecei a trabalhar num modelo teórico para o que considerava que viria a ser o campo dominante da relação política, que denominei regime do atentado. Designava por tal nome a emersão de um novo sistema internacional, cujos mecanismos operantes fundamentais seriam, direta ou indiretamente, os atos puros — atos de elevada eficácia e pequena deliberação social, em que as razões estão embutidas — ou, como é costume dizer, atentados. Entendia por atentado tanto a ação violenta das grandes potências, quanto a resposta pontual de indivíduos e grupos militantes. Como correlato individual desse novo estado das relações humanas, alcancei distinguir, alguns anos depois, indícios de um quadro, hoje bastante freqüente: a psicose de ação, caracterizada por uma espécie de delírio em forma de ato, pela impossibilidade de representação das emoções, pela tendência à resposta violenta, pela concentração extrema dos processos expressivos etc. A descrição desse quadro e do processo social subjacente pode ser encontrada em meu livro de 1985, Psicanálise do Quotidiano (reeditado pela Ed. Casa do Psicólogo, como Andaimes do Real, Psicanálise do Quotidiano, São Paulo, 2001, 3ª edição, parte III, O mundo em que vivemos).

Nos anos que se seguiram, venho estudando, agora junto com outros colegas da Teoria dos Campos, ramificações individuais e sociais da patologia acima mencionada. Gostaria de destacar duas delas aqui.

Uma condição que se refere mais diretamente à adolescência, tema deste Encontro, espelha perfeitamente o regime do atentado, acompanhando a crise da adolescência na sociedade de massa. Trata-se da forma geral da aquisição da identidade entre os jovens, no mundo contemporâneo. Durante os anos 80, pudemos constatar, em pesquisas com o método psicanalítico realizados no HC-FMUSP e em instituições de ensino, o caminho que seguia a progressiva adaptação da identidade aos valores sociais dominantes. Assim pode ser resumido o processo. Dado um núcleo identitário que deve ser assimilado para a vida adulta, ocorre uma indução social de atitudes de oposição frontal, de aberta desobediência. Espera-se, e consegue-se, que o adolescente oponha-se ao núcleo transmitido, de forma tão radical que as conseqüências de tal oposição, a radicalidade e a violência com que esta se manifesta, levam ao fracasso inexorável do comportamento de oposição, que se choca contra a própria realidade. Como resultado, é o contrário, ou seja, precisamente aquilo a que o jovem se opõe que se firma como pólo de identificação.

Colocada a seqüência nos termos de uma fórmula concisa, chegamos à expressão que, entre nós, ganhou certa notoriedade: des/obede/serás. Entenda-se por obede, um núcleo qualquer de identidade a ser induzido, como, por exemplo, a necessidade imperiosa de conseguir status social ou o respeito à hierarquia. O processo de indução opera, por assim dizer, dialeticamente. É estimulada a oposição ao núcleo — por exemplo, o desrespeito violento ou o repúdio aos símbolos de status —, constituindo isto o des, da fórmula. Como produto do fracasso de tal desobediência, fica consagrado o núcleo identitário contra o qual se deu a oposição — no caso, o apego à hierarquia e o apego às representações de riqueza e poder —, sem possível questionamento posterior. Logo, nossa fórmula identitária afirma algo deveras simples: serás aquilo a que desobedeceres. O aspecto mais interessante deste paradoxal processo de induções de identidade consiste em que o agente educador, seja a família ou a sociedade, age pela lógica do atentado: não aparece, nem sequer sabe que o produz, apenas reconhecendo como atentado o comportamento de oposição, a rebeldia, os atos "anti-sociais". A auto-ocultação do processo indutor reproduz notavelmente o fenômeno político, no qual as potências militares apenas se dão conta do caráter de atentado quando o vêem mimetizado pelos grupos rebeldes.

Dois sólidos trabalhos foram apresentados por Maria Lúcia de Oliveira à PUCSP, em 84 e 92, visando ao seu mestrado e doutorado, verificando a primazia e eficácia desse princípio em alunos do ensino médio. Posteriormente, outros colegas da Teoria dos Campos, como Marion Minerbo e Mônica Amaral, vieram também trabalhando a idéia. Provavelmente, esta fórmula identitária dependente dos sistemas de controle social, acompanha desde o início o nascimento do fenômeno da adolescência rebelde no ocidente; contudo, só foi possível isolá-la quando o regime do atentado estimulou-a ao máximo, transformando o processo surdo de emolduração da adolescência em explosão manifesta da segunda passagem, do violento passo constituído pelo des, o momento do atentado.

A segunda ramificação que nos tem chamado a atenção consiste no substrato das diferentes formas de adição especialmente encontradiças em adolescentes e adultos jovens. Sob a aparência de adição a substâncias específicas, parece dominar uma indeterminada urgência de adição. No estado presente de nossa investigação, pudemos rastrear tal tendência até uma de suas raízes presuntivas: a saber, o excesso de ofertas identificatórias, sob forma de enredos múltiplos oferecidos pelos meios de comunicação e entretenimento, de uma pletora de sugestões de prazeres possíveis e de uma infinidade de símbolos de valor pessoal que ameaçam a identidade individual de fragmentação por excesso. Alguma forma de especialização restritiva torna-se imperativa para o sujeito, como meio de restringir esse excesso identificatório. O objeto poderia em tese ser qualquer um, da droga à bebida, do comer compulsivo às dietas compulsivas — as quais desnaturam o gosto de comer e redundam em quadros de obesidade — da internet à adição ao enriquecimento rapidíssimo.

A vida numa metrópole, a tela de uma televisão, até a simples página do jornal convidam a embarcar em orgias identificatórias, tantos são os enredos oferecidos. Podemos ser tudo ao mesmo tempo. Não há como pensar, julgar, escolher. Numa palavra, a identidade não se consegue organizar e delimitar, por excesso de identificações, e ameaçada de fragmentação, tende, como resposta, a se encolher defensivamente, a se especializar. E aí está a questão, pois um dos instrumentos mais eficazes para a redução identitária é oferecido precisamente pelas drogas. Quem se droga, seja qual for a substância, consegue limitar drasticamente seu mundo à questão da droga, a seu ritmo de ingestão e efeito, ao controle e descontrole, à resistência, à tentação, à rendição.

Não se trata de alucinógenos apenas. Nem só de excitantes, tranqüilizantes ou anti-depressivos, mas da necessidade imperiosa de uma especialização defensiva que resguarde os limites da identidade, ameaçada pela pletora de enredos imaginários que lhe são oferecidos todos os dias. Num tempo relativamente curto, em termos antropológicos pelo menos, nossa sociedade transformou quase qualquer estímulo imaginável em adição. Será preciso encontrar uma nova definição para o objeto da adição. Hoje, o mais difundido, como sabem, é a comida. Todos comem demais e todos fazem dieta. A dieta é provavelmente a principal causa imediata da obesidade, por haver desnaturado o ato de comer. Comer chocolate não engorda, acreditem. O que engorda é ingerir calorias. Se você pensa em calorias, já se condenou ao inferno moral dos gordos. A obesidade, como o alcoolismo, como o tabagismo são especializações, antes de tudo.

Quando se criaram as bases de nossa psicopatologia, a idéia motriz consistia em classificar a doença individual, tendo como pano de fundo uma sociedade que se reputava sadia — isto é, sociologicamente normal, que ninguém era ingênuo. Neurose e psicose foram os modelos fundamentais. Um século de uso dessa concepção deixou como resíduo uma profunda desconfiança com respeito ao critério de normalidade social. Depois de quase nos termos destruído, na crise nuclear dos anos 60 e 70, trazendo ainda vivas as seqüelas do trauma do fim do mundo — sob forma de uma desvairada pressa ontológica em ser tudo o que a nós se oferece, antes que seja tarde —, fica difícil, ou impossível, manter a identidade, por um lado, e o crédito da sociedade, por outro. Uma nova psicopatologia está sendo fermentada pela descrença social, em que a relação entre patologia individual e sociedade já não é de simples oposição prática e contraposição teórica, mas indisfarçavelmente dialética. O doente manifesta uma dimensão social, não uma oposição à sociedade. Neurose e psicose, tais como descritas classicamente, não são mais um paradigma fiável. Daí as novas patologias, antecipação e preliminar de uma nova psicopatologia, e de nova concepção de normalidade. Isso, não se ignora.

Nesse novo modo de ver, ainda em gestação no útero da teoria, as patologias devem filiar-se a campos do real, a matrizes sociais. O campo da adição determina certos modos de relação que independem, em larga medida, da especificidade da droga em jogo. Não que seja o mesmo comer salada compulsivamente ou cheirar cocaína. As diferenças são notórias, mas o campo da adição independe delas.

O substrato da constituição identitária do adolescente e de sua patologia não seria pois alcançado apenas pela análise da história individual, sempre necessária, mas por uma avaliação das condições concretas da sociedade contemporânea, do regime do atentado, herdeira do trauma do fim do mundo. É certo que este gênero de análise não entra na psicopatologia vigente (ou, a propósito, na psicanálise atual) sem produzir abalos. Por conseguinte, nossa sugestão é de ampliá-la, a psicopatologia, descendo até seus fundamentos. Consolamo-nos porém com a idéia de que um tostão de filosofia clínica pode poupar alguns milhões de investimento em pesquisa menos bem fundamentada.

 

 

1 Trabalho apresentado ao I Simpósio Internacional do Adolescente, maio 2005, Faculdade de Educação da USP.