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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Uma ilha para Sancho-Pança

 

 

Estas breves considerações são pinçadas de um contexto bastante amplo e complexo, pois envolve aspectos da subjetividade, da cultura, da história, da pedagogia, da desigualdade, da intolerância... Tentarei, com contornos distintos - ético, clínico e político – convidá-los a compartilhar algumas reflexões sobre um trabalho, intenso e instigante, que oscila entre a impotência crua e a onipotência voraz.

A fonte de muita transpiração e alguma inspiração para tal convite é relativa às atividades do Projeto Quixote, vinculado à disciplina de Psiquiatria Social da Universidade Federal de São Paulo e à Associação de Apoio ao Projeto Quixote. O projeto vem atendendo crianças e adolescentes em situação de risco desde 1996 (cerca de 3000), entendendo-se por "risco" as múltiplas situações que se relacionam com a ruptura ou interrupção dos vínculos familiares, a passagem ou permanência nas ruas e também eventuais situações de conflito com a lei. Está estruturado em três setores: ensino, pesquisa e Moinho Quixote (sede do projeto onde ocorrem os atendimentos clínicos e as oficinas). Os ateliês são estruturados a partir de um modelo lúdico e expressivo que facilita a formação de vínculo entre os jovens e entre eles e os educadores e clínicos do projeto. São atividades ligadas à arte (música, máscaras, fotografia, etc), à cultura (hip-hop), à educação ("Vivendo e Aprendendo"), e à saúde.

As oficinas facilitam o aparecimento espontâneo de demandas do menino ou da menina, de uma dor de dente a uma vontade de não voltar a dormir na rua. O vínculo é a legitimação da ajuda, muitas vezes até no sentido de se aumentar as propensões para que o jovem faça a sua escolha pela lata de spray do grafitti e não pelo 38 do tráfico, dado que muitas vezes trata-se de uma questão de oportunidade (pertencer ao movimento hip hop ou ao movimento do crime).  

 

POR UMA ÉTICA -

Somos uma sociedade que produz e reproduz duas aberrações: 1-crianças e jovens que vivem nas ruas das cidades, de aventura em aventura, quixotinhos urbanos, mutilados diariamente a cada coronhada na cabeça ou fissura por mais uma pedra de crack. 2- Jovens aprisionados pela violência e pela adrenalina do crime.

Quando um jovem se cronifica numa dessas duas experiências existenciais há a ausência de uma futuridade possível – é comum encontrarmos afirmações que expressam a certeza que a sua própria morte ocorrerá até os 20 ou 22 anos de idade.(CANDELÁRIA)

A prevalência do consumo de drogas psicoativas entre esses jovens, por exemplo, é altíssima. Buscam uma percepção alterada da realidade e de si-mesmos ou intensificam ao máximo o que a própria vivência das ruas lhes oferece. O mecanismo fissura/consumo é de uma imediatez absoluta. O aqui e agora.

A mente humana é responsável pela elaboração dos acontecimentos da vida e de sua dinâmica transformação. Quando esta mente se torna impotente para conectar-se à realidade de uma forma também dinâmica e fica prisioneira de um comportamento repetitivo, um círculo vicioso, há produção de dor, de sofrimento. É o que acontece em relação ao tema da dependência de drogas.

Crescer como sujeito é aprender a jogar esse jogo de equilíbrio em meio aos ventos que sempre variam de intensidade e de direção. Curar-se da dependência de drogas, como de qualquer outro tipo de dependência, é exatamente voltar a vincular-se à vida de uma forma dinâmica, não cristalizada. A cura, portanto está nesse resgate de liberdade, que diz respeito a libertar-se de um mecanismo de dependência psíquica e não apenas da droga em si. Se não forem tratados os mecanismos que levam à dependência, eles se repetem e corre-se o risco de ver a droga substituída por outras formas de "drogadição".

O jovem que vive nas ruas também consome drogas fortes, mas a sua experiência de privação de liberdade é anterior e mais ampla. É a privação de cidadania e de afeto e necessita de uma rede de interessantes alternativas aos estímulos que o circuito da rua lhe oferece.

Além dos fatores geralmente relacionados à violência que os expulsa de casa, acabam ganhando as ruas, principalmente por dois motivos: 1- as políticas públicas são muito tímidas como geradoras dos sentimentos de pertinência a um grupo e de protagonismo, isto é, o jovem como transformador de sua própria realidade - ambos, sentimentos tão fundamentais ao adolescente; 2 - a existência no repertório da criança abandonada da periferia das cidades de uma cultura de fluxo em direção às praças centrais, muitas vezes o irmão maior já fez esse percurso, ou o vizinho.

Criança tem que brincar e aprender, aprender ao brincar, brincar de aprender... Receber calor no inverno e amor o ano todo. O adolescente é Alice no País das Maravilhas, esticando-se e encolhendo-se, passando através dos espelhos, um movimento frenético na busca de si mesmo, a sua real medida. Adolescer é ousar, experimentar, esse sublime jogo da construção dos próprios limites. O jogo com a lei e sua transgressão faz parte do processo, tanto quanto as espinhas na cara ou as paixões em estado bruto. É fundamental para a estruturação dos seus próprios limites o questionamento dos limites que lhe são impostos "de fora", e isso não tem nada a ver, na imensa maioria das vezes com delinqüência ou psicopatia.

Nas sociedades ditas primitivas a transformação de uma fase à outra da vida é fortemente ritualizada: o menino fica restrito à sombra das ocas até aprender a lutar como um guerreiro, a pescar, a esculpir um remo e manejar o arco e a flecha...Ritos de passagem que o jovem da nossa sociedade não dispõe de maneira tão marcada. O coletivo, o social, não lhe oferece uma rede de suporte que sinalize essa intensa travessia; muito pelo contrário, estamos rodeados de adultos que como modelos de identificação exercem perversa influência, de um político que mente a um traficante que mata .

Ao privarmos nossa infância e adolescência dos direitos fundamentais, privamos em nós mesmos a capacidade de composição e de transformação. Enrijecemo-nos em atitudes estereotipadas e nos decompomos em seres intolerantes, reacionários e violentos.

 

POR UMA CLÍNICA -

O consumo de cola ou crack em São Paulo por crianças e adolescentes em situação de rua traz um elemento muito interessante para a reflexão no campo clínico.

É difícil, hoje, em São Paulo, uma criança que por várias razões teve seus laços familiares interrompidos, rompidos - com toda a complexidade propriamente humana dessa situação - cavalgar seus Rocinantes e sancho-panças imaginários no circuito do centro da cidade e não ter alguma relação de consumo e/ou comércio com drogas ilícitas. O seu consumo e o componente perverso porque escravizante de sua comercialização são circunstâncias muito freqüentes no circuito da miséria e da rua.

A criança que pipa crack na praça da Sé vai largando a "dependência" à pedra conforme vai se inserindo numa outra rede de sociabilidade. Essa rede deve ser um circuito de sociabilidade alternativo às cruéis circunstâncias da rua (drogas, tráfico, violência...) e privilegiar os vínculos afetivos como "legitimadores" de um resgate de si mesmo, de sua subjetividade e cidadania – ACESSIBILIDADE - (recuperação de referências familiares e escolares, acesso à saúde e à consciência e exercício de seus direitos fundamentais).

Ora, e em relação aos jovens aprisionados pela violência e pela adrenalina do crime?

Nos últimos quinze anos venho convivendo diariamente com crianças e jovens privados das condições básicas para a vida com dignidade. Ajudando uns a afirmarem sua criatividade e crescimento, outros a amenizarem sua dor e mutilações, físicas e psíquicas, que os abandonos sucessivos e a vida nas ruas lhes impuseram. Ou ainda, vendo outros serem seduzidos pelas ofertas que o crime lhes faz, vulneráveis que estão por não lhes serem honestamente apresentadas alternativas concretas, interessantes e de qualidade. A adrenalina das "correrias-do-mal" passa a ser a opção, engordando as estatísticas do IML ou da FEBEM.

Que insana sociedade, a nossa, que tem que produzir uma FEBEM em São Paulo para dar conta de mais de 20000 jovens em privação total ou parcial de liberdade!

Meio clínico, meio educador, tenho aprendido e ensinado que as crianças que vivem nas ruas são crianças tristes. Que a tristeza na criança e a violência que a juventude sofre e reproduz são os dois principais sintomas da nossa grave doença social. Delatam a falência de um modelo, de um paradigma, que não se resolverá segundo as leis de mercado e os números dos economistas.

Que nova clínica e que nova pedagogia precisamos reinventar para que a complexidade da situação não seja negada e sim acolhida?

Se reconhecermos que a privação dos Direitos Humanos produz doença e que, inversamente, a promoção desses direitos produz saúde, mesmo que os tempos sejam difíceis para sonhadores da paz, me parece que estaremos bem próximos de um belo recomeço...  

 

POR UMA POLÍTICA -

Desde o início dos anos 90, em São Paulo, vem sendo tecida uma rede de equipamentos governamentais e não governamentais que oferece serviços de qualidade a crianças e adolescentes em situação de rua. Da alfabetização à informática, do atendimento pediátrico ao psicoterápico, de casa onde comer e dormir a referências afetivas consistentes, corporificados na figura do educador. Desde o trabalho inicial de aproximação nas ruas até o acesso à própria rede.

Como corolário desta constatação temos que nos opor à solução, infelizmente, ainda freqüente para se lidar com o consumo de drogas por essa população que habita os coretos das praças centrais: A de medicalizarmos uma questão que é social. A dramaticidade da situação e alguns pensamentos apressados em resolvê-la nos impõe certos riscos. Se nos referirmos aos jovens em situação de sub-humanidade, aprisionados no crack, por exemplo, como sendo toxicômanos, correremos o risco de interná-los - compulsoriamente - em dispositivos institucionais, de altíssimos muros e voraz vigilância, para tratar quem não deseja tratamento, privar de liberdade quem sofre com o crack e com as limitações que a própria miséria impõe, além de fracassar obviamente nos objetivos de tão obtusa intervenção.

Há muitos trabalhos já consagrados pela mídia e tantos outros ainda sem visibilidade que são, evidentemente, alternativas muito mais eficazes e justas no resgate de dignidade e leveza, tão fundamentais à criança e ao adolescente. Das "socio-educativas" às ético-estéticas.

No que diz respeito à estratégia, digamos, clínico-política para lidarmos com as situações dos jovens em conflito com a lei, o projeto sócio-educativo deve ser entendido como uma batalha cultural: restaurar os laços do adolescente com a cultura, produzir e ampliar suas trocas - materiais, afetivas e sociais. Ele deve culminar necessariamente na construção de projetos existenciais para os adolescentes e estes devem encontrar respostas concretas para as suas necessidades. O programa sócio-educativo deve propiciar situações efetivas de encontro, de contato real do jovem com pessoas, grupos e instituições significativas no âmbito da socialização, com quem possa experimentar atividades e possibilidades que ainda não conhece.1

O lugar da educação tem que conter o belo e a autoridade do educador tem que ser afetiva no exercício de modelo de identificação. Quanta responsabilidade nas duas faces dessa relação de mestre/aprendiz!

Educar e gerar saúde são os compromissos fundamentais do educador.

Modular as ações da rede para que seja criativa e a favor do crescimento, sem gerar estigmatização e cronificação do jovem em trânsito pelas ruas e daqueles em conflito com a lei, é o grande desafio que essa tecelagem nos propõe enquanto agentes de uma possível educação para a cidadania.

 

Auro Danny Lescher
Maio de 2005

 

 

1 Lescher, Auro, Grandino, Patricia, Vincentim, Maria Cristina, Teixeira, Maria de Lourdes T., A psicoterapia para adolescentes em Privação de Liberdade: uma análise a partir do estudo de 17 casos da FEBEM/SP. São Paulo, maio 1999. Mimeo.