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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Entre sofrimento e violência: a produção social da adolescência

 

 

Jacqueline Barus-Michel

Professora Emérita do Laboratoire de Changement Sociale da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot

 

 

A Invenção da Adolescência

Existe realmente o adulto, que opomos à criança e ao adolescente? Consiste a idade adulta numa etapa da vida que, definindo-se como de crescimento ósseo, caracterizar-se-ia por uma relativa estagnação que, sobrevindo no contexto de um processo de um desenvolvimento acabado e antecedendo uma fase de declínio, perdurará até a morte? É inelutavelmente difícil definir a idade adulta, pois, sejam quais forem os critérios adotados, serão sempre parciais e contraditórios. A juventude de caráter, ou mesmo a imaturidade, compreendida como irresponsabilidade, dependência e persistência de uma posição lúdica, podem ocorrer em pessoas maduras. O contexto social e cultural joga aí um importante papel, tal como o contexto familiar e a constituição fisiológica, que inclui uma dimensão endocrinológica. Jovem ou adolescente são qualificações vagas, arbitrárias e não científicas, correspondendo a representações que uma sociedade elabora, a partir de certas balizas convencionais, para designar aqueles que foram socializados nos primeiros anos de vida, dos quais se espera que venham a se mostrar capazes de autonomia e de participar da vida social, em termos de produção e reprodução. O adolescente é uma invenção recente da cultura ocidental contemporânea. Nesta parece prevalecer um verdadeiro culto da infância, que se acompanha de um movimento de postergação da entrada na fase adulta, seja porque vigora a idéia de aproveitar ao máximo um período supostamente isento de preocupações, veja porque se tem em vista favorecer um desenvolvimento que venha a possibilitar um preparo suficiente para a assunção de tarefas adultas de vida. O jovem adulto encontrar-se-ia numa fase de ensaio vivencial, enquanto a adolescência tenderia, na prática, a se prolongar cada vez mais.

A noção de desenvolvimento fisiológico é também muito recente, ligada aos conhecimentos científicos relativos ao crescimento, por exemplo, do esqueleto. Os conhecimentos psicológicos estão forçosamente ligados à cultura das sociedades em que aparecem. A representação da adolescência suscita comportamentos que afetam processos psicológicos, sem que se possa verdadeiramente saber qual é o ponto de partida, pois o psicológico e o sociológico são dimensões interdependentes. São considerados como adolescentes aqueles indivíduos que se situam entre a infância e a idade adulta.

A infância é, por si mesma, definida socialmente como idade irresponsável, na qual o indivíduo é dependente dos cuidados do meio ambiente que assegura seu crescimento e sua aprendizagem de base, sua educação. O brincar, que é atividade espontânea e gratuita, ocupa um grande espaço entre as atividades motoras e intelectuais, seja pelo prazer, seja pela imitação e aquisição de habilidades. Segundo as épocas e o desenvolvimento econômico, que condiciona o desenvolvimento cultural, a infância suscita maior ou menor ternura, indulgência e proteção, mais isto pode ficar restrito à infância precoce, durante a qual a incapacidade de desempenho de tarefas úteis é manifesta e a dependência é fisiologicamente vital. É assim que crianças pequenas, com cerca de cinco anos de idade, podem ser empregadas em trabalhos pesados em função de situações de miséria ou enviadas para a rua, onde devem não apenas cuidar de si mesmas como também obter subsídios para a sobrevivência familiar e própria. Ao invés de serem protegidas, tornam-se vítimas de agressões que reduzem drasticamente sua esperança de vida. Em sociedades, nas quais vigora grande precariedade econômica, a criança é socialmente abandonada sob o poder dos pais, obtendo cidadania, vale dizer, possibilidade de participação na vida do coletivo, apenas na idade adulta. A criança que trabalha não em direito, nem estatuto legal, equivalendo ao escravo. Em tal situação, a adolescência simplesmente inexiste, é um nada.

A idade adulta é a mais reconhecida, ainda que seu início não seja precisamente estabelecido. É aquela na qual uma sociedade reconhece, em termos de direito e de fato, que o indivíduo tem capacidade de dar conta, por si mesmo, de suas necessidades, independência e autonomia, bem como de assumir papéis, deveres e responsabilidades familiares, profissionais e cívicas. O indivíduo torna-se membro ativo de sua sociedade, sujeito social, cidadão, entrando no sistema de direitos e deveres que a sociedade exige e garante, submetendo-se ao regime da lei comum. A responsabilidade é, simultaneamente, atributo e critério de maturidade, responsabilidade por si e pelos demais.

A adolescência é, pois, um "entre –dois", entre a infância, quando esta é reconhecida, e a idade adulta, na qual o indivíduo é instado a tomar parte da vida social tal como é concebida. A sociedade engendra seus adolescentes. Em sua sociedade dada, os limites do que é concebido como adolescência são flutuantes e diferentes segundo os sexos. As meninas, gozando em geral de estatuto inferior, são freqüentemente consideradas do ponto de vista de sua fisiologia, de sua capacidade reprodutiva. A puberdade, marcada pelas primeiras regras, termina a infância. Sem adolescência verdadeira, tornam-se aptas para o casamento, muitas vezes prometidas que foram antes mesmo da puberdade, e passam da autoridade de seus pais e irmãos para aquela do marido. A puberdade dos meninos é menos manifesta, cabendo-lhes mesmo fazer a prova de sua nova virilidade por meio de atitudes ou comportamentos machistas, bem como pelo enfrentamento de riscos que os diferenciarão das meninas e das crianças pequenas. É preciso mostrar-se forte e independente, o que pode assumir a face de enfrentamento do pai, das normas familiares e da lei, numa linha de desafio narcísico e auto-afirmativo.Os adultos, ambivalentes, esperam que os jovens de sexo masculino venham a se parecer consigo mesmos, encarnando seus ideais, mas que, por outro lado, não lhes tomem seu lugar.

Nas sociedades tradicionais, a passagem da infância à idade adulta, no momento da puberdade, é abrupta e simbolicamente marcada de modo forte e decisivo, de modo que o imaginário do futuro adulto é valorizado. Nas sociedades modernas, trata-se de uma transição lenta, que se estende ao longo de alguns anos, sem marcação simbólica nítida. As etapas e as formas são variáveis, de acordo com as classes e categorias sociais, o imaginário do futuro e do adulto é ambíguo.

 

Adolescência, Problemática Identitária e Representação de Si

O sentimento de identidade nasce da capacidade de se definir por si mesmo, e pelos outros, em sua história, pertencimentos, atividades, características, projetos, de modo a se poder reconhecer na continuidade de uma unidade coerente. A identidade é a construção contínua de uma representação de si por meio da qual se fazer reconhecer. O reconhecimento dos outros, seu olhar, sua escuta, o lugar que designam ao jovem, confirmam a auto-representação.

Em termos psicanalíticos, o ego é construído a partir de identificações com figuras amadas e amantes, suficientemente narcisissantes, ou com modelos susceptíveis de proteger contra o aumento das angústias, oferecendo possibilidades de simbolização, ou seja, de formulação-expressão-compreensão das próprias condutas, apoiadas sobre regras e princípios interiorizados que forjam o superego. O sujeito que tem uma auto-representação assegurada, que se reconhece, numa linha de ego suficientemente forte, pode se controlar, levar em conta a realidade, escolher seus atos, exprimir-se através de condutas aceitáveis, pelas quais garantirá um mínimo de aprovação pelos demais.

Mas o ego, que não é estruturado, não tem valor de continente. Os conflitos tornam-se insustentáveis e não dialetizáveis, sendo projetados para o exterior, que se torna cena persecutória. O ódio insuportável é concebido como uma agressão do exterior para a qual a única resposta possível é a violência vivida como defesa. Caminham em par a violência sofrida e a violência agida. Na ausência de possibilidade de construção identitária, em vista da fragilização devida a fraquezas constitutivas, a um meio patógeno, à ausência de apoio social e de possibilidades de investimentos, o sujeito desorientado se desestrutura ou tenta manifestar-se na passagem ao ato. Privado de modos de representação e de simbolização, age no imediatismo. A violência obriga os demais a vê-lo e suas reações servirão de espelho onde poderá ver-se como existente. Um exemplo chocante deste tipo de fenômeno foi vivido em Nanterre, quando um jovem promoveu uma matança de membros do Conselho Municipal, após ter escrito: "Eu vou mostrar-lhes que existo matando-os!"

Ora, a situação da adolescência provoca uma fragilização identitária. A imagem do corpo, que é um fundamento concreto do sentimento de identidade, desde o estágio do espelho, é teatro de mudanças incontroláveis, de modo que o sujeito vive suas próprias pulsões como desordenadas. O olhar dos demais se modifica, o outro deixa de ser continente e apoio, como foi o pai da infância, para tornar-se rival e predador, em meio a relações conflitivas de poder. O outro, como objeto do desejo sexual, excita e provoca angústia, é vivido como presa e armadilha. Novos sistemas simbólicos de trocas surgem como novos valores, vindo a se impor. O quadro de vida muda, o campo da ação se alarga, ampliam-se as possibilidades, as exigências e os riscos. Trata-se, pois, de rupturas com o que constituía a trama da existência. A perda de referências e o aumento das solicitações geram angústias e ambivalências. As reações às rupturas são desordenadas, tateantes, contraditórias, provocantes.

Alterações identificatórias, escolha de novos modelos, investimentos sexuais e amorosos, segundo modalidades desafiantes e transgressoras, são formas de reconstruir representações tranqüilizantes de si, em um meio ambiente grupal no qual a dificuldade, que é comum, pode ser negada. O adolescente se atira em condutas de risco, brinca com a morte para se sentir viver, para provar que é alguém, que vale algo, para driblar um mal estar aparentado à infelicidade de viver em um universo no qual já não vê sentido. Infligir-se sofrimentos, atacar o corpo – com piercings e tatuagens – é ao mesmo tempo desfazer-se de si próprio e reapropriar-se do corpo, por meio do que pode ser pensado como rituais íntimos de passagem. O adolescente obtém sentimento de existência e de valor pessoal por meio de tais provas.

A falha narcísica gera uma busca de compensação numa mise-em-scène de si mesmo, na qual encena não ter medo de nada, impor-se a todos. A fragilização pode se soldar também pela inibição e pela depressão, pela recusa em investir. O colapso narcísico se traduz como auto-depreciação, como culto do fracasso ou mesmo pela auto-destruição, que pode ser observada, por exemplo, na anorexia e na toxicomania. O meio ambiente social, as solicitações publicitárias, a renovação incessante de tecnologias de comunicação e de objetos de consumo, levam à frustração e hiper-excitação, que distraem de todo questionamento e de toda elaboração de sentido, impedindo o trabalho de construção de si. A sociedade de consumação arma um double bind: o agir e o gozo imediatos são exaltados e ao mesmo tempo reprimidos como manifestações associais, o que suscita uma rejeição do "sistema" e de toda autoridade ou hierarquia que a encarne. As condutas delinqüentes, as solidariedades grupais, as rivalidades agressivas, as demonstrações de força, tudo isso permite escapar à contradição, combinando gozo e existência sobre um modo lúdico e não simbólico, sob os olhares incitantes dos pares.

Em nossas sociedades modernas, sob a pressão econômica, categorias inteiras da população podem ser afetadas pela síndrome da falência identitária. As condições sociais, culturais, econômicas e políticas desqualificam as figuras que deveriam fornecer identificações e modelos – pais e representantes da sociedade. De outra parte, o sistema simbólico não atinge mais sua eficácia, as aprendizagens sociais, que incluem a escola, não tem mais sentido útil perceptível. Tudo o que é proposto como modo de adaptação aparece freqüentemente como uma verdadeira armadilha. A agressão é concebida antes como o feito do outro, da sociedade. Então, não há vida possível a não ser nas margens, não há vias de expressão a não ser na projeção pulsional, não há lei a não ser a do mais forte. E são bem os jovens que estão a tal condição constrangidos. A busca desesperada de identidade passa por tentativas de vinculação a imagens fortes, nas quais a violência se vê condensada sob formas simbólicas simples, tais como sinais, palavras de ordem, slogans, representações elementares do bem e do mal, que oferecem filiações diretas, em substituição a aquelas que são falhas – personagem carismático poderoso e impiedoso, herói da mídia.

 

Sofrimento e Ruptura de Sentido

O sujeito humano é aquele que se enuncia, que diz "eu", pode falar de si, contar-se ao outro, dar sentido à sua vida. É, durante toda a existência, tocado pela questão do "porquê", cujas respostas possíveis, que fornecem explicações e razões ao que se é, ao que se faz, ao que se projeta, são as chaves da identidade e da responsabilidade, permitindo representar-se culpado ou inocente, bom ou mau, assegurando um narcisismo suficiente para se assumir tanto aos olhos do outro como aos seus próprios olhos. Este sentido, o sujeito o constrói ligando seu passado, seu presente e seu futuro, fazendo sua história. Pode toma-lo de versões e ideais que lhe fornecessem as religiões ou as ideologias, mas estes podem vir a faltar em determinadas condições históricas e culturais. Essencialmente, cabe ao próprio sujeito contar sua história, escolher um sentido, conferir-lhe um sentido. Quer dizer que se trata de uma elaboração, de uma construção, pela qual o sujeito confere coerência e unidade à sua história pessoal. Que seja triste ou feliz, poderá dizer "sou eu", poderá constituir-se significativamente. Sem isto estaria abandonado ao transbordamento emocional e pulsional.

O sujeito tem necessidade de que os demais reconheçam sua experiência como coerente, ou seja, que o sentido que confere à sua própria história seja reconhecido pelos outros. O sentido depende do reconhecimento alheio.

O sofrimento nasce quando o sujeito se encontra num estado de incapacidade de ligar os elementos de sua experiência de modo a assegurar compreensão e apropriação. O sofrimento é assimilável a uma perda de sentido, a esta noite do pensamento que cai sobre aquele que já não compreende nada, não sabe mais para onde vai, nem porquê, não sabe mais encontrara respostas, fazer sentido. O sofrimento é uma forma de caos, submissão ao absurdo, implicando desordem e angústia, que pode chegar à dissociação do insensato, pode fazer preferir a morte. A ausência de reconhecimento, o veredicto de incoerência, proferido pelos demais, será também uma fonte de sofrimento: o sujeito se sentirá enviado às trevas. Não apenas o sujeito não se compreende mais, como não é mais compreendido. Inversamente, no sofrimento, busca-se o outro para que este recoloque sentido, seja por fornecê-lo, seja por abrir vias para uma elaboração possível. Pode-se reconhecer aí diferentes processos terapêuticos. Compreender aquilo de que se sofre, poder dar um sentido ao mal estar ou à doença, é um passo em direção à cura ou à obtenção de algum alívio, não porque o sofrimento seja imaginário, mas porque é uma desestruturação simbólica e imaginária, ruptura da capacidade de dar sentido à experiência. Fazer o luto, por exemplo, é uma elaboração da perda, é esforço de integração significante do desaparecimento do objeto investido, que não é mais sofrida como irrupção do absurdo, mas como acontecimento que participa da história do sujeito, com o qual poderá entreter um novo modo de relação memorial. O mal do sentido manifestou-se, no século XIX, nas produções lânguidas dois românticos, o sofrimento se espraiava na literatura. A modernidade consumista e performática permanece ao nível do sintoma, tenta substituir o sentido pela aparência, desvia o sofrimento sobre o corpo, envia o indivíduo ao cirurgião para transformar a aparência, fazendo o sofrimento calar sob a lipoaspiração e o silicone. A violência é outra forma de resposta, que escapa justamente a toda simbolização, sendo simultaneamente sintoma da perda de sentido e aquilo que o recusa.

 

O Adolescente e a Perda de Sentido

As crianças perguntam sempre "por que", cabendo aos pais responder pacientemente. Os adolescentes, por seu turno, devem encontrar, por si mesmos, as respostas às questões que se tornam cada vez mais lancinantes, uma vez que tudo muda neles e ao redor deles. Se lhes foram dados conhecimentos de base, não lhes tem sido ensinado a pensar. Seus comportamentos desordenados refletem esta situação, sendo que seu sofrimento e seus esforços para se seguir uma linha de vida ou encontrar uma forma de coerência, de segurança narcísica, de sentido a compartilhar, freqüentemente só são encontrados na medida em que se opõem ao que percebem como incoerências, que a sociedade parece querer lhes impor. O adolescente das sociedades modernas está em dificuldade, vendo-se, muitas vezes, incapaz de integrar todos os elementos de sua experiência para lhes dar coerência e continuidade temporal. Encontra-se em dupla perda de sentido, tanto em virtude de sua incerteza e fragilidade interna, subjetiva, como pela pobreza ou mesmo incoerência simbólica dos sistemas significantes das sociedades modernas.

As sociedades de consumo, de mercado, do espetáculo, não tem nada a oferecer além dos gozos instantâneos e das proibições. Não há ideal outro além do gasto e do proveito. O acesso ao simbólico é impossível para as camadas jovens da população, que são esmagadas pela publicidade, pela moda, pelos espetáculos, pelas vitrinas, pelo cinema, vendo o trabalho como um meio frágil de nada obter, enquanto o sistema de troca prevalente é econômico e o dinheiro o significante primeiro. Os modelos parentais são desqualificados por uma sociedade impiedosa (miséria, desemprego, repressão, vergonha). O que se quis ensinar ao jovem não serve para nada, não fornece possibilidade de simbolização, de comunicação, de troca, de transmissão. Estão em um imaginário irrealizável, inconvertível. As próprias dificuldades atingem-no por ricochete sob a forma de julgamentos negativos e de rejeição de parte da sociedade que deveria acolhê-lo. Falta-lhes, também, o sentido via reconhecimento alheio. Como e onde encontrar sentido? Nos exageros, nas extravagâncias e seus excessos, no barulho, na cor, tudo o que distinguirá do conforme e do habitual, como se o sentido devesse provir da oposição e da recusa do que o precede. Todas as gerações modernas não passaram por isso, para grande escândalo dos mais velhos? Faltando sentido, faz-se sintoma.

 

O Adolescente da Hiper-modernidade

O homem hiper-moderno é talvez um adolescente que não se encontra em estado verdadeiramente adulto, no qual se sentiria plenamente responsável e autônomo. Tudo é feito de modo a torna-lo dependente, incapaz de subsistir sem utensílios e aparelhos, sem a hiper-informação, que é incapaz de controlar, que o incita ao consumo, prevenindo-o sobre múltiplos perigos, que não sabe se são reais ou imaginários. Contra estes perigos, que não são riscos assumidos, é assegurado, compensado, indenizado. Superinformado, superequipado, super assegurado e cada vez menos responsável: intoxicado, ameaçado e em estado de incerteza constante. É demandado no sentido de se afirmar, de construir sua vida, enquanto está aturdido e infantilizado, reduzido a uma posição lúdica que lhe faz crer que a oportunidade e o prazer são as saídas de uma vida acinzentada sobre a qual tem pouco controle, ameaçado que está pela perda do emprego e das parcerias, pela precariedade das condições de vida.

Como um adolescente, o homem hiper-moderno sofre de mal identitário: sobre bases mutáveis, não sabe como construir a própria identidade, afirmando-se por maneirismos, utilizando a aparência para acreditar em si mesmo, dando livre curso à pulsão, à sexualidade polimorfa, à instabilidade dos laços afetivos, à sociabilidade tribal, às profissões periféricas. Os adultos seguem uma moda "jovem". Ninguém é exatamente assim, mas todos carregam sinais desta hiper-modernidade de uma adolescência perpetuada.

 

A Invenção dos "Jovens"

Nestas sociedades, os "jovens" têm um status diverso do que se encontrava antes, formando uma categoria social. Dizemos "jovens" e não adolescentes, sem dúvida pela consciência de que, malgrado sua idade, muitos não gozam de um tempo intermediário entre a infância e a idade adulta, mas de um modo de exclusão social. Anteriormente considerados simultaneamente como desprovidos de experiência e esperança, hoje em rivalidade e em conflito com os adultos, recusam toda idéia de submissão, de subordinação, de dívida e de iniciação. Os jovens não se sentem em dívida, nem prestam reconhecimento a aqueles que os precederam. Encontram-se fora do simbólico, fora das trocas, fora do contrato, fora da lei. O direito é aquele da pulsão.

Então, produzem seu modo de vida, modo de se vestir, seu modo de estar juntos, entre jovens, na recusa e desprezo das normas adultas. No interior de seu grupo-categoria, existem códigos rudimentares, "respeito" num sentido único, sem reciprocidade. A força prima, geralmente, mas suas similitudes permitem um consenso local do tipo bando, bem como o compartilhamento de certos rituais e de um comércio delituoso, o "tráfico", sobre o qual pesa a severa lei do Talião. Tudo isso se configura como uma forma de agressão em relação aos modos ordinários de troca social.

A violência é banal como o mal, segundo Hannah Arendt. Pode aí haver criatividade, que se expressa, por exemplo, no rap e no hip hop, nos quais o corpo ocupa um lugar especial. A palavra torna-se secundária, sem valor, ocorrendo freqüentemente como capacidade de replicar, de manter um tipo particular de verbalização vazia, que não permite que cada um se possa revelar. O corpo manifesta-se, é certo, mas em termos meramente narcísicos. As atividades, atitudes e expressões são organizadas ao redor de uma defesa narcísica e do desafio, que denotam a fragilidade identitária, abrigada por um ego inflado artificialmente, em ausência de superego.

Certamente há jovens normais e adaptados, que fazem seus estudos, encontram bons empregos, farão bons casamentos e terão belos filhos. Bem entendido, há adolescentes e jovens na legalidade, para os quais o esforço e a ambição de autonomia se inscrevem na responsabilidade. Há aqueles que tem interesses, tais como música ou esporte, que dão caminho à auto-expressão e à singularização, numa linha de caráter sublimatório. De todo o modo, esta está longe de ser a regra geral. Nestes casos, será a segunda geração que entrará em crise. O tipo de jovens descrito acima não representa a totalidade dos jovens, mas uma categoria que apareceu com o modo de vida hiper-moderno, quando as famílias de migrantes ou em dificuldades sociais foram afastadas dos centros urbanos para virem a ocupar zonas e bairros periféricos, onde grassa o desemprego, onde a aculturação é pobre, onde a autoridade paterna está enfraquecida, onde as tradições, que ainda sobrevivem esporadicamente, são afetadas pela sua heterogeneidade, onde as famílias estão desorganizadas pela ausência do pai, restando então a predominância de uma mãe sobrecarregada pela criação dos filhos e ultrapassada por um universo social que lhe é estranho, quando não estrangeiro.

Não existe apenas uma adolescência, existem muitos modos de não ser adulto ou de sê-lo sem ter meios para tal. O mundo hiper-moderno parece suscitar ao menos dois modos de ser jovem. Há aquelas crianças que foram criadas na segunda metade do século XX, no ocidente, sem viver catástrofes sócio-econômicas, sem presenciar a mobilização dos pais em torno de problemas de sobrevivência, que puderam viver como "sua majestade a criança", preservadas e cuidadas. Conheceram um desenvolvimento feliz, constituído como ausência de frustração e de interdições, que foi o objetivo único de suas famílias. Os pais fizeram esforços, em termos de trabalho e de poupança de economias, para organizar uma boa vida, que os filhos encontraram de forma constituída e garantida. A sociedade de consumo amplificou o processo no sentido do gozo e do narcisismo. Os adolescentes, quando querem se emancipar, liberar-se de laços que entravam seus caminhos para o prazer, só concebem mais liberdade e mais gozo. Esta juventude não conhece esforço e privação, e é presa fácil para adições, rave-parties, pequenas delinqüências, marginalidades. Ela aí encontra outra juventude, proveniente de meios desfavorecidos, que conhece a precariedade, o desemprego, formas de exclusão e privação cultural, pelas quais a frustração e a humilhação caminham ao lado de uma luta pela sobrevivência, que inclui violência e delinqüência. A vida tribal e o tráfico reconstituem uma vida social e uma economia à margem da legalidade.

Nas classes sociais a princípio protegidas, a violência se volta mais facilmente contra si mesmo, como fracasso escolar, desencantamento, depressão e recorrência a situações de excitação capaz de liberar freios, como drogas e festas. As moças freqüentemente assumem posturas semelhantes às dos rapazes, em termos de reivindicações. A diferença é que elas são mais centradas sobre suas auto-imagens e corpos, apresentando comportamentos que seriam anteriormente vistos como histéricos, pelos quais é visada a transformação-negação do corpo que leva, não raramente, a um descontrole anárquico ou a um enquistamento narcísico que não impede o naufrágio. Nas classes economicamente desfavorecidas, onde se desenvolve uma cultura da exclusão, as moças são objeto de violência, já que representam simultaneamente a parte fraca da identidade – a desonra, o desprezo – e o objeto de excitação pulsional incontrolável. Estas duas formas ora se ignoram, ora se cotejam e se encontram, uns clientes ou vítimas dos outros. A "grana" é o critério de distinção e de aproximação.

Ser adolescente ou jovem não é, pois, simplesmente uma questão para a psicologia. Trata-se de um problema da sociedade, que deve ser tratado ao nível político, na medida em que o econômico incide sobre o social, e ao nível da instituição educativa, na medida em que estará em jogo o aprender a pensar, o aprender a colocar as questões do "porquê" e do "em nome de que", que são questões de sentido, e o aprender a elaborar as repostas.