1Por que tratamento institucional para adolescentes com transtornos emocionais graves?O spleen na adolescência author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

A clínica institucional da adolescência

 

 

Maria Lúcia de Oliveira

Docente do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadul Paulista -FCL/UNESP/ Araraquara-São Paulo/BR. Rod. Araquarara-Jaú, Km 1 Araraquara-SP, 148000-901, luciaeguimar@netscap.net

 

 

Proponho uma reflexão que é fruto de um estudo sobre a rebeldia na adolescência.

Ressalto três aspectos:

Primeiro o valor de alguns aspectos do método interpretativo da Psicanálise na pesquisa.

Segundo, e como conseqüência do modo de pesquisar, a possibilidade de ressignificação de conceitos cristalizados sobre a adolescência que se difundem como estravazamentos ideológicos de teorias e como preconceitos; principalmente nas instituições educacionais. O terceiro refere-se a crítica à ilusão de homogeneidade de sentido atribuído à conduta adolescente.

____

A Psicanálise é na sociedade ocidental, um instrumento de pesquisa sobre a vida mental, sobre o sentido dos fazeres humanos. É um recurso de ampliação do conhecimento que o sujeito tem de si e da realidade, naquele aspectos que lhe dizem respeito mas que ele não reconhece como seus e sim como de seu vizinho, de seus pais, de seus filhos. A vocação mais forte da Psicanálise talvez seja mesmo como afirma Herrmann a de exibir ao indivíduo e à sociedade, o absurdo que os constitui.

Considerando o método psicanalítico como um processo de ruptura de campo, - entendendo-se este como qualquer relação humana -, que demonstra a organização da consciência e da identidade; a interpretação não tem cunho explicativo mas, ao contrário, trata-se de uma forma peculiar de apreensão do discurso que se deriva de formas expontâneas do diálogo humano.

Valendo-se de aspectos do método interpretativo em situação fora do âmbito clínico convencional, a escuta de relatos de adolescentes, permitiu a constatação da importância que há na rebeldia para a construção da obediência, e relacionar o sentido da rebeldia ao processo (de representação e manutenção da identidade) de submissão ao projeto educacional.

A extensão do método interpretativo para se pensar criticamente o projeto educacional – e no caso as idéias correntes sobre a adolescência, resgata o pensamento freudiano naquilo que ele é em sua essência: descoberta, invenção de um caminho de acesso e de consideração da lógica do inconsciente (enquanto matriz simbólica de emoções) e um modo de desvelar estereótipos.

Os relatos forma tomados "deixando surgir" outros sentidos para além daqueles que o narrador emprenhava-se intencionalmente em transmitir: procurava-se romper o campo oferecido por ele.

A noção de rebeldia deixou de ser mero adjetivo de qualificação de condutas opositoras para ser tomada enquanto experiência significativa de adesão ao projeto educacional, como ensaio de obediência.

Trata-se de ampliar as concepções correntes sobre a adolescência, a partir da consideração da qualidade positiva da rebeldia e da capacidade contestatória como ingredientes essenciais à construção/representação da identidade.

Considero que o processo de moralização e humanização consiste numa redução da multiplicidade dos aspectos do homem, a um caráter essencial, que faz com que o sujeito torne-se responsável por seus atos. Essa unidade conjuga representações centrais e a identidade.

A identidade, refere-se a um sistema relacional coerente, reúne conjunto de identificações. Enfim, a educação de fato exige que o sujeito alcance uma unidade coerente de caráter.

Tomo a proposição de Fábio Herrmann: "des/obede/serás", como ilustração do processo educacional e da vida da construção da identidade humana (Herrmann, 1985, p.134).

O núcleo da fórmula (obede), exprime coação, indica a tendência à construção da subjetividade. Mas o movimento em direção à moralidade requer um esboço de rebeldia, um ensaio de negação de caráter que Herrmann denomina de fuga abortada. É ela que garante ao sujeito sua submissão voluntária: é uma representação de liberdade, uma regra de exceção portanto. A noção de identidade exprime-se através da crença numa coerência única de individualidade. Esta convicção resulta da eliminação de toda exceção que afete a unidade pretendida – encobre contrações. Tanto é assim que levado a dividir os atos entre típicos e marginais, entre próprios e ocasionais, como mostrou Herrmann. Esses últimos são considerados atos de exceção, incoerentes quando postos diante das convicções que alguém tem de si. Assim, toda exceção é concebida não somente como uma incoerência, mas também como desordem. A exceção com efeito não deve ser tomada como algo que conduz ao caos, significando des/ordem; pois se trata apenas de outra regra, a de exceção. Esta regra de exceção deve ser incluída no universo das coerências, embora diga respeito a uma coerência diversa em relação àquela com a qual alguém se representa. Neste sentido, a exceção muito mais do que a desordem é uma regra e uma forma de expressão da ordem porque tornado exceção qualquer ato atesta a vitória da ordem: "do ponto de vista da construção da personagem humana, o mandamento da desobediência cria esse efeito tão nosso conhecido de vitória constantemente reproduzida da ordem; é a integração da revolução no circuito da dominação".

O prefixo "des" da fórmula designa revolta, o questionamento, um movimento de fuga da coação. É importante acrescentar que quando fala em revolta ou renúncia, o autor não está concebendo um ser livre a quem a civilização amputa a liberdade de espírito. A civilização não corta a liberdade de espírito, diz ele, porque espírito mesmo é caráter.

"A ordem que comporta identificação coatora e rebeldia abortada contra o caráter essencial, não reproduzem se pré-formado, mas conforma" – daí o terceiro elemento da fórmula "serás".

"Des/obede/serás" é a ordem da constituição subjetiva. Um imperativo que ordena em direção ao futuro e por ser assim indica a atual incompletude e do sujeito. "Tanto a identificação com o que me represento como a ruptura com tal representação em busca de outra, têm sua vigência completa no futuro". O modo da fórmula indica também que o sujeito falha em negar-se enquanto criatura da ordem.

O processo constitutivo da identidade dá-se então por complicado entrejogo de coação e rebeldia; apontando para uma direção sempre a ser alcançada ainda, aponta para uma idealidade.

 

Algumas histórias

Nas histórias apresentadas a seguir, tenciono expor ao leitor como escutei os relatos dos adolescentes, procurando "deixar surgir" outros sentidos para além daqueles que o narrador empenha-se intencionalmente em transmitir. O estatuto da intersubjetividade na constituição do sujeito e na educação é outro aspecto que adquire importância principalmente se trata de obediência ou rebeldia. Aí surgem os pais figurando como referências construtoras da maneira de ser e de se ver desses jovens.

Trata-se de 2 adolescentes, considerados entre os mais rebeldes de uma escola pública pela direção da escola e pelos professores. Os relatos de Gil (17 anos e meio) o 'eu marionete' ou o 'malandro caricatural' – ilustram uma adesão a uma rebeldia autorizada. Em Dulce – 'o eu errante' ilustra atos de desobediência extrema, como oportunidade corretiva, rumo à obediência, impondo o encontro com o castigo como um modo patológico de representação do eu.

 

Gil – 17 anos e meio 'malandro caricatural' ou 'eu marionete'

Gil é considerado rebelde por ironizar as autoridades. Não estuda mas diz saber, colar. Para ele suas ações são desordeiras mas originais. Define-se como doidão, cuca fresca, "bon vivant". A aparência é suficientemente cuidada para apresentar-se como um malandro. Mas, a apresentação emblemática, através do uso de roupas desbotadas, de cordões e crucifixo enorme adornando o peito à mostra e um pomposo boné preto que cobre parte de seu rosto, abriga também uma timidez desajeitada sugerindo uma malandragem, quase defensiva que se exibe, principalmente, através do gingado.

No contato pessoal, mantém as regras da convivência civilizada mas é lacônico e os relatos são feitos com ausência de ânimo. Parece estar falando de algo exterior à sua própria vida.

O pai, militar aposentado, já esteve preso acusado de ter matado um colega de trabalho; o irmão mais velho por tráfico de drogas e o próprio Gil. O pai é amigo e cúmplice. O exemplo citado com ênfase é que para se livrar das infrações que comete no trânsito e desvencilhar-se da polícia, Gil utiliza-se da "identidade militar" do pai, documento emprestado de bom grado por este.

"Eu tenho tudo, não posso dizer nada, faço de tudo meu pai não regula" (gíria que quer dizer não restringe)

Ao mesmo tempo que diz que a única exigência do pai é com os estudos, conta que o pai troca uma aprovação escolar por um carro ou uma moto.

Almeja ser o melhor na malandragem.

Próximo ao período de provas, tornar-se bem comportado e com isso não atrai para si a atenção vigilante dos professores.

Quando se refere ao relacionamento amoroso, preocupa-se em apresentar-se como esperto e bem sucedido. Fala da separação entre amor e sexo, e divide as mulheres em mulher-namorada e mulher-divertimento. Quanto ao lazer, é visível sua determinação à infrações.

Ao completar dezessete anos ganhou uma moto que dirigia sem habilitação. Seu divertimento preferido? Apostar corrida de madrugada e pichar muros.

Quando é pego pela polícia, a exibição da carteira de militar do pai garante-lhe a liberdade e a possibilidade de repetir infrações. Apesar disso já esteve preso uma vez.

De acordo com o pai, na atualidade quem não é o melhor, tem que chegar primeiro. Mas apesar de sua crença, ao que tudo indica seu empenho não resulta no esperado já que nem força de vontade, nem esperteza parecem caracterizar as relações de Gil com o mundo.

Apesar de apontar a educação como algo muito difícil, faz propaganda de uma realidade de sucesso de sua família. Enfatiza que os filhos nunca deram preocupação; por serem diplomados, espera que saiam-se melhor que ele. Quer os filhos espertos e bem-sucedidos. Sempre quis que os filhos fossem melhor em tudo, não aceitava que perdessem nada.

Refere-se as medalhas de ouro que têm guardadas como prova de que perderam pouco.

"Eu tenho um filho formado no ITA mas Gil é diferente. Ser caçula é porcaria".

Medalhas, troféus e livros são como vitrines que anunciam e expõem conteúdos de pouca credibilidade para o pai. É como se os troféus representassem um sucesso que de fato não existe.

Apesar de Gil ser visto como rebelde, um tanto desordeiro, cabe notar que suas rebeldias não lhe permitem alcançar seus objetivos. Aliás, a indiferença com que parece experimentar a vida, retiram da rebeldia, a força que poderia sustentá-la.

"Para mim todo mundo é igual"; "Eu não ligo para nada" definem a vida para quem não se exige nenhum empenho.

As chamadas rebeldias de Gil sustentam-se sobre uma ampla ingenuidade.

Na família, não faz oposição do pai, de quem recebe todo incentivo para ultrapassá-lo.

Na escola – rebelde -, não obtém sucesso na prática de colar nem de envolver afetivamente seus professores. Ele acaba reprovado por 2 vezes consecutivas.

A tentativa de substituir esforço por esperteza acaba frustrada. A mesma constante pode ser percebida em atividades de lazer. O uso que faz do carro e da moto, mostra-o como obrigado a ser desordeiro. Gil não dispensa a identidade do pai que apresenta como sua todas as vezes em que é flagrado pela polícia em alguma prática irregular.

Ele ressalta o pai como um aliado e refere-se a sua identidade de militar como a garantia de infringir as leis e repetir infrações.

Tudo se passa como se os experimentos de oposição fossem descaracterizados dos componentes da aventura e, portanto, do imprevisível. A desordem praticada parece ter como alvo apenas a exibição de malandragem autorizada com a garantia de proteção. Nesse contexto fica evidente uma "malandragem propagada" onde não há um verdadeiro confronto com as normas.

As regalias são oferecidas pelo pai como um passaporte para uma rebeldia permitida e, principalmente, induzida.

Observe-se que Gil é pouco sensível à diferença entre esperteza e ingenuidade. Parece que não se encontram em campos opostos. Obediência e rebeldia fundem-se e confundem-se porque a conduta rebelde de Gil, por ser induzida, faz com que seja apenas simulação de rebeldia.

Gil é tomado pelo pai como aquele que concretizará seus sonhos jamais realizados: "que o filho se torne um grande homem e um herói em seu lugar", é a esperança do pai. Por sua vez, vai se construindo como aquele que toma para si as fórmulas de viver do pai. Mas tornar-se-á melhor?

Sem dúvida a identificação com o pai é forte e necessária à maneira de se ver.

Nesse sentido pode-se ver que Gil se identifica com o pai, na medida em que vem se tornando e se construindo exatamente como ele, é o que não coincide com o que almeja para o destino do filho. Isso quer dizer que a identificação, (ser igual a...) não está restrita àquilo que se oferece intencionalmente como modelo. O "fazer tudo para que alguém seja de tal modo", não garante resultados almejados, é ineficiente, porque as relações não se esgotam na intenção.

Apesar dos esforços que faz para que o filho o supere, o pai, a cada incentivo parece promover uma barreira contra a autonomia do filho. A ênfase verbal feita pelo pai na valorização do esforço e do trabalho, não supera a valorização que faz da esperteza para superação do esforço. Esse processo educacional mostra o privilégio do modelo em relação ao aconselhamento.

Suas ações de educador, embora na aparência exijam esforço e trabalho, a ordem que contém maior força é a de que chegue primeiro e seja o melhor. Essa valorização alicerça por identificação – a construção da identidade de Gil.

Impossibilitado de ser autor de seu próprio personagem, Gil cria-se tal como o pai, esforçando-se em vão, para que a veste de malandro proteja sua simplicidade e ingenuidade. Mais que vestir-se como o pai, constrói-se vestido por ele, fazendo sua a identidade do pai.

A ordem (obede) cumprida é aquela não expressa. Gil não estuda, e cola mas não obtém êxito.

Na sua ingenuidade, envaidece-se das 'infrações' que comete embora o êxito seja um resultado raro. Gil crê na impotência do esforço.

A importância que o pai atribui aos estudos apesar de ressaltada com veemência no discurso, revela falta de convicção, tem um valor apenas propagandístico.

Todo incentivo material oferecido pelo pai, seja na referência que faz aos livros, seja na compra de presentes, tem por objetivo estimular a realização do que o pai não conseguiu.

O pai não aparece como alguém que deve ser contestado, porque incentiva as infrações e oferece proteção contra as conseqüências punitivas.

A permissividade do pai, faz dele alguém extremamente idealizado na sua superioridade e poder. Há uma permissividade que cobra um preço muito alto a uma tarefa um tanto delicada a um filho, que é a de superar o pai exatamente naquilo que o pai foi mal sucedido.

A tarefa é difícil em se tratando de que os instrumentos de que o pai valoriza para o sucesso, além de inapropriados, representam para Gil mais cobrança do que incentivo ao sucesso.

Além disso, é necessário notar que a autonomia é imposta e por isso resulta dependência, cria mais um autômato do que um autônomo. As malandragens são tão dirigidas que tem como conseqüência um malandro fabricado.

A rebeldia de Gil é apenas aparência de rebeldia. Ela não nasce como desvio ou fuga de ordens, o que produzirá a noção de liberdade, mas é obediência à aquilo que o pai é.

A infração é aparência de infração. A cola é aparência de cola e a malandragem é aparência de malandragem.

Gil fracassa naquilo que poderia superar o pai pois sua autonomia é garantida pela proteção do pai.

Rebeldia é criatura da ordem de ser autônomo e por isso dependente.

A identificação que tem com o pai, parece estar no cerne da impossibilidade de ser bem sucedido.

Isto é, para tornar-se de fato esperto, seria preciso ultrapassar a fonte central de sua identificação que é o pai.

Enquanto isso não ocorre, exibe o estandarte de sua identidade (auto-representação): medalhas, dinheiro, motos, automóveis, sua relação de desprezo com as mulheres, liberdade.

Para incentivar uma educação para um filho bem sucedido, o pai exibe as estratégias utilizadas: medalhas, dinheiro, liberdade. São valores emblema.

Os diversos tipos de rebeldia que faz, são para Gil emblemas de sua identidade. Ele está convicto de ser um desordeiro e esperto.

Nesses flashes da história de Gil, podemos notar o quanto o sentimento de si está enraizado na história das identificações.

Vemos que a reverência marca a relação de Gil com seu pai, que é o mesmo que se proibir de confrontar, pois o respeito mantém uma distância na proximidade.

Por outro lado, a figura de autoridade é ambivalente porque nos coloca num lugar inferior no presente a fim de que possamos nos tornar como ela no futuro e ocupar honrosamente o lugar que ela nos legará por herança.

Nota-se que a liberdade de Gil é proporcional à submissão à superioridade do pai.

Em todo caso, ele acredita nas vantagens que conta e assegura-se dessas representações afastando a ingenuidade do campo de representações sobre si ou melhor da harmonia e coerência dessas representações.

Embora mais parecido com um autômato, diz-se um opositor.

A ordem de que seja autônomo contanto que seja a autonomia mandada pelo pai, faz emergir uma regra que rege a vida de Gil, "ele não pode ultrapassar seu pai".

A liberdade experimentada é diretamente proporcional à sua obediência. A autonomia imposta cria a condição de fragilidade e dependência.

É nos ensaios de aparente rebeldia que afirma-se enquanto criatura da ordem, a de ser autônomo mandado ou autômato. Tudo isso expressa-se nas infrações de trânsito, nos insucessos na escola...

Dessa maneira Gil só pode vier a ser outras versões daquilo que já é, ou seja, mal sucedido, ingênuo e pueril. A maior oposição que faz ao pai é a de surgir em relação a ele como um espelho, onde o pai se vê e se frustra. Ironizando normas, Gil julga-se esperto, manipulador da autoridade, mas essa crença como se vê produz resultados insatisfatórios mais que isso, Gil faz lembrar um marionete, cuja ações se dão através das mãos de outro. As marionetes são bonecos que se almeja parecerem pessoas e o trabalho consiste em manter ocultos os fios que lhes anima pelas mãos de um ator.

Não que Gil seja uma exceção. O que ocorre é que uma conivência espontânea com o cotidiano, exige os 'fios' que nos animam não sejam exibidos tão claramente, sob pena de parecermos marionetes.

A semelhança de uma marionete, animado pelas mãos do pai, Gil deixa à mostra muito de suas contradições.

Com expressão caricatural do pai, denuncia-o e tronar-se o espelho da família, exibindo o equívoco de sua almejada esperteza.

Identificando com o pai, não parece sair –se bem nem pelo esforço nem pela esperteza. Esforça-se para verti-se de malandro, mas a roupa é exígua e deixada de fora sua simplicidade. É a caricatura o pai.

À pergunta: o que você gostaria de mudar? Responde: "Eu não ligo para nada. Pra mim todo mundo é igual", mostra que Gil é pouco sensibilizado à diferenças.

Com isso espertezas e ingenuidade podem ser quase sinônimos. Por isso, espertezas são condutas ingênuas = rebeldia pura sem articulação ou direção programada. É um "inocente-esperto".

As condutas de Gil mostram-se em conformidade com as regras, isto é, representam exceções complementares (des) da regra de obediência (obede). Em outras palavras, a rebeldia de Gil é expressão de sua obediência e, portanto, aparência de rebeldia.

Essa situação é clara com as infrações de trânsito: infringe alguma regra e é autuado, aí recorre à identidade do pai – militar, e dessa maneira isenta-se das conseqüências de problemas criados por ele mesmo.

Mas é certo também que a cada nova infração que comete renova-se a sensação de autonomia e também é bom notar, a de dependência do pai.

A relação com a escola reflete o mesmo esquema, Gil não estuda como também não consegue obter notas suficientes para sua aprovação, o que poderia ter feito através da 'cola'. O resultado é que não é bem sucedido nem pelo esforço, nem pela esperteza, ficando assim demonstrado que mesmo a 'cola' de que tanto faz propaganda é tão somente aparência de cola, em outras palavras, aparência de esperteza. O que supõe-se é que cola mal ou que é surpreendido quando está colando. Tanto na primeira quanto na segunda hipótese conclui-se que Gil é inábil.

O pai insiste:

"Eu não queria ver meus filhos perder nada, a gente dá tudo pra eles mas não adianta ser caçula é porcaria mesmo."

Para salvar o filho do que já está ocorrendo, o pai isenta-se o de responsabilidades. Mas mal sucedido, Gil acaba confirmando a expectativa do pai a de que "ser caçula é porcaria".

Este jovem revela uma forma particular de passagem da infância à idade adulta comum na atualidade nos diversos níveis sociais. Toda rebeldia de Gil, desenha-se como exceção complementar e obrigatório da obediência.

No lugar de instrumentos de luta que se traduzem em esforço, oferece-se ao filho/aluno, recentemente cartões de crédito, celular, ausência completa de acompanhamento, que compõe quase que um ritual de passagem no mundo contemporâneo. No caso de Gil, o uso de dinheiro, carro, moto, aponta a ineficácia do modelo (o pai) que carece de heroísmo.

Chega a ser transparente o modo pelo qual seus desvios de conduta são um ensaio de obediência como uma adesão caricatural a um estilo: o de malandro.

Se 'não ultrapassar o pai', é a ordem maior que rege a vida de Gil, ele fica impedido de tornar-se um intelectual ou bem sucedido, condição que só poderá alcançar no máximo até o limite que o próprio pai chegou.

Pelo menos é o que se pode constatar no presente.

 

 

A 'rebeldia' de Gil é elemento fundamental para compor sua autorepresentação e mais interessante é o quanto essa rebeldia e tão somente uma extensão do modo de ser pai.

Assim os relatos de Gil, contam sua história, sua estória, a história de um jeito de ser e de se ver.

 

Dulce – 17 anos - - Eu errante – ou - Vai, Dulce, vai ser gauche na vida – ou uma 'violência branca'1

Indiferença poderia ser o tema para definir os relatos de Dulce sobre os aspectos de sua vida.

Considerada um "mau elemento" pela direção da escola, nem o diálogo, nem diferentes formas de controle faziam com que acatasse qualquer ordem disciplinar. Abandona a escola, desvia dinheiro que deveria pagar compromissos assumidos, une-se a pessoas desocupadas e dependentes de drogas. Tudo começa quando aos 14 anos descobre a existência de uma amante na vida do pai.

Sua relação com o mundo é subversiva de qualquer regulamento. Mas a indiferença aparece como marca central de ligação com a vida. Toda referência a si e a seu cotidiano recebe semelhante tom afetivo de indiferença. Usa somente roupas velhas que não admite que sejam passadas e não penteia os cabelos. Os relatos sobre sua vida referem-se a conflitos entre seus pais.

Na conversa afirma que se desequilibrou há 2 anos perdendo a capacidade de escolha, de volição, como se tivesse sido desabrigada de si mesma. Apesar de ser tomada por mau elemento pela escola, Dulce define-se como esvaziada emocionalmente e com desinteresse total pelo mundo e por si própria. Desconhece a idade e profissão da mãe. Os movimentos emocionais de Dulce e os lugares que ocupa na vida de relação são mais afeitos à anulação do que a construção de identidade. Há um vazio preenchido sob forma de desobediência extrema - como forma de busca de auto-representação e de limite.

Alguns fatos podem ilustrar essa constatação:

- Foge de casa com amigos para Curitiba. Aí numa delegacia de polícia afirma não ter família. Foi encontrada pelo pai quando o delegado providenciava seu encaminhamento à FEBEM. (Conseqüência da fuga de Casa)

- Foi reprovada na escola 3 vezes consecutivas sendo a terceira por faltas. (conseqüência das faltas e do mau uso da cola)

- Desobedece a tudo e é expulsa de casa pela mãe. (Conseqüência da indiferença às normas de convívio)

- Quando é advertida pela mãe, chora abraçada à ela só diz que "quando ia pensar já tinha feito". Quando advertida pela escola permanece indiferente.

- Apesar de não freqüentar as aulas e utilizar-se do espaço do colégio como ponto de encontro com os colegas e de partida para outros lugares, acreditava na sua aprovação, o que não ocorreria.

Esses fatos narrados por Dulce e referendados pela mãe como fuga, expulsão, o uso de roupas desmedidas, abandono da escola, e as conseqüências derivadas dessas condutas, embora em campos diversos, guardam entre si uma equivalência.

Da história contada, depreende-se a história de desejo errante, de uma predestinação (psíquica) à anular-se. Mas apesar da constatação de tendências anti-sociais à mentira, ao roubo, Dulce mantém a capacidade de ser leal.

As condutas anti-sociais existem mas servem como meio para ela saber quem é.

A maneira como coloca-se em relação ao sistema de normas e regras, define-a muito mais associal do que anti-social. Isto é, ela é incapaz de avaliar bem a realidade, a relação entre presente e futuro. Além disso, ao colocar-se fora da lei, fica exposta aos seus rigores sem controle das conseqüências.

Dessas características associais e de uma afetividade indiferente, pode-se falar de vazio de identidade. Esse vazio impulsiona Dulce a condutas de desobediência completa e extrema que, resulta numa submissão extrema às regras e ordens, - configurando-a como obediente. Pode-se falar numa pedagogia da desobediência. Isto é, na conseqüência de um ato levado ao extremo, que parece garantir desde o início da adolescência uma representação de si, de identidade.

 

Des (é errante) vazio desobedece ao extremo (Des) castigo (eu errante)

Pode-se presumir que os conflitos da adolescência foram elaborados de maneira a estagnar seu desenvolvimento da sexualidade e nela a afetividade, a experiência de singularidade e de criação de ideais.

Dulce se perde nas drogas, no sexo, no descumprimento das obrigações recuperando-se apenas em conseqüência do choque produzido por essas experiências levadas ao extremo. Mas o que seria considerada experiência de prazer, por ser vivida com indiferença a normas e regras e ao extremo, presta-se a impor limites e a provocar os castigos.

Seus relatos mostram uma história de vazios preenchidos pela busca de sinais extremos de reconhecimento de quem é. Nesse percurso, Dulce segue o comando de um regente de destino que cuida para que seja tão "gauche na vida".

Fracasso e vazio combinam-se nos planos das ações e das emoções. No da ação, eles se expressam em conseqüências das mentiras, fugas de casa, irresponsabilidades generalizadas. No plano da emoção, por sentimentos de vazio, indiferença e inutilidade.

 

 

Trata-se de uma história de fracassos. Embora com tantos fatos marcantes, provoca a percepção de uma vida sem história. É que todo acontecimento relatado parece não ter um sujeito, nem experiência e nem significado afetivo. Apesar de cheia de acontecimentos, a vida de Dulce parece combinar vazio e fracasso. No plano da ação se expressam em conseqüência das mentiras, fugas de casa e irresponsabilidades generalizadas. No plano da emoção, sentimento de vazio e de inutilidade.

Outro aspecto marcante é que todo o relato tem como foco a história da família; provocando a percepção de que a vida é tecida exclusivamente como reação ao relacionamento dos pais.

É certo que Dulce tem um comportamento violador de regras e normas. Ignora limites e formas de controle, não cumpre nenhuma atribuição seja da família ou da escola. Um confronto que se mostra pela ação.

A relação de Dulce com a família se estabelece pelo eixo da mentira. Mas, dada sua indiferença à tudo, ela é muito mais criatura de suas próprias mentiras, do que criadora de mentiras – uma mentirosa. Não se pode identificar em seus relatos, a mentira enquanto conseqüência de uma situação previamente articulada e acionada com objetivos de ocultar ou de criar fatos, com os quais possa obter vantagens porque elas carecem de articulação prévia. Em outros termos, suas ações carecem de reflexão, de cálculo, de avaliação, de articulação.

Em Dulce, o ato antecede a reflexão que não representa limite à suas condutas. Geralmente é levada a agir para poder pensar. Como observamos, ela se reconhece no erro, através da mentira flagrada.

Nesse momento, entre a mentira flagrada, a admoestação e o castigo, percebe quem é. Por isso, é criatura de suas mentiras. Pode-se dizer que é o externo que provoca nela a idéia de limite.

Daí sua fala "quando eu ia pensar já tinha feito" equivaler a dizer "depois que eu fazia é que podia 'pensar'", me conhecer ou me ver. Isso porque tudo indica que não há possibilidade de pensamento.

Dulce constrói sua auto-imagem pelos efeitos das mentiras que canta, e das ações (=infrações) sempre extremas. Somente pela radicalização da desobediência e da infração, pode perceber alguma diferença entre regras e alguma consciência descriminadora.

Certa "consciência descriminadora" é construída pelo que poderíamos chamar de "via da posteridade". Ela pode ser considerada uma regra organizadora da relação entre ela e o mundo.

Observo que neste ponto, a mentira alcança status de uma estratégia para mostrar-se muito mais do que uma operação ardilosa para esconder-se. Por isso não há nenhum cuidado para evitar ser pega em mentiras. Nesse contexto, obediência e violação de regras revelam a mesma indiferenciação. Se as regras são ignoradas, não há como falar em desobediência ou mentira. Somente em relação ao afastamento de uma regra anteriormente fixada é que se constrói a dimensão da desobediência. O mentiroso é assim denominado porque reconhece seu afastamento da verdade.

A punição é a conseqüência invariável dos atos de extrema irresponsabilidade e reafirma a identidade de um eu conhecido, primordialmente no registro do 'erro'. Dulce passa a ser como errada, culpada, revelada a si própria como uma repetição de erros, num circuito repetitivo.

As condutas extremas e desmedidas não se restringem à família e à escola, mas também fazem sumir a mulher-Dulce; ao fazer desaparecer seus atributos femininos; a aluna, ao abandonar a escola; e a filha ao ser expulsa da família, de casa.

O desprezo por normas vai se manifestando em autodepreciação. Por um lado, ela se anula como autora de sua própria história. Há muita rebeldia, mas não há confronto nem com a família, nem com a escola. O que se vê é que Dulce reapresenta vivência de conflitos e é indefesa.

Este 'flash' da história de Dulce, mostra a maneira como vive a história de sua família e se cria nele como um apêndice necessário e complementar à existência de seus pais enquanto casal.

Vive numa conflitiva combinatória de pai e mãe. Comporta-se como pai, desvaloriza a mãe e nesse contexto se desvaloriza. Como mulher é igual à mãe ainda que um paradoxo, a desobediência radical é sua forma de obediência e fidelidade ao desejo dos pais. Ocupa um lugar de errante, sempre vazio. Parece sempre submetida à um "suma"! "seja nada". Não é à toa que nega ter família a um representante da lei (ao delegado de polícia), que foge de casa, mente, etc...

A desobediência completa é forma de buscar limite e autorepresentação. A família, embora o cenário de sustentação e de construção do modo de ser de Dulce, é um 'espaço' problemático para a constituição de sua identidade.

A pedagogia está fundada numa base falsa. Não há desejo dos pais em relação a filha. Há indiferença.

A (falsa) independência de Dulce e suas condutas marginais acabam buscando a lei de forma extrema, e atestando o quanto ela é guardiã do desejo.

Há um vazio de identidade que é preenchido por condutas de desobediências extremas e por isso tem a conseqüência é também a submissão a regras e ordens extremas, o que acaba produzindo uma completa obediência.

Nessa pedagogia da desobediência – mentir significa cumprimento da ordem a que está submetida.

Desde o início da adolescência, sob o cenário dos conflitos familiares é pelos atos extremos e pela "via da posteridade" garante uma reapresentação de si - nem que seja a de uma errante.

Se tomarmos o desejo como a matriz que simboliza as emoções, podemos dizer que Dulce deseja o fracasso. É a determinação ao fracasso que sustenta sua maneira de elaborar as relações entre ela e o mundo. Sua identidade, uma invencível repetição de fracassos e punições, que impossibilitam a experiência de autonomia, de criação de ideais marcando a submissões de Dulce a um núcleo de ordens que são ao mesmo tempo enunciadas para sua identificação e que são instituídas por um outro (a mãe).

Como lembra Aulagnier (1979), o que a criança encontra não é a simples objetivação de si mesma como imagem, mas também a designação do olhar do outro indicando-lhe quem é, e esse outro é quem nomeia, ama e reconhece. O que o sujeito reconhece no espelho é a imagem da qual falava o discurso daqueles que lhe falam, um discurso que começa por identificar o sujeito aos enunciados identificatórios e que num segundo momento deverão tornar-se propriedade do EU. A referência do espelho se tornará um ponto de ancoragem à construção do sujeito.

Relatos e descrições de Dulce sobre ela permitem que se diga que ela está fixada numa imagem na qual se reconhece com exclusividade: a de um vazio e que a representação que tem de si é incapaz de se refazer com a experiência. Esse processo mostra o insucesso do processo de auto-representação.

A conduta opositora de Dulce, embora aparentemente inspirada nos hippies, não mostra coerência alguma com as reivindicações desse movimento. Ao contrário, sua conduta é expressão do caos, fruto de desorientação.

A unidade necessária à representação do eu, é assaltada por estados mais primitivos de desenvolvimento psíquico, expresso pelo privilégio da onipotência, inveja, violência, individualidade generalizada e por isso anárquicas de convivência social.

Dulce mostra a desobediência generalizada criando alguém incapaz de usufruir liberdade e pode ser definida como: 'aquela que não é aquilo que no extremo do erro vê com deveria ser'.

A desorientação, indiferença de Dulce, não deixam de expressar um recurso e uma denúncia da impotência da educação.

A vivência de prazeres até seu limite mais extremo resulta em destruição de tal modo que há uma relação paradoxal entre intensidade do viver e promoção de felicidade.

A fuga de casa, a reprovação (enquanto extremos) acabam por oferecer limites que não podem ser administradas a não ser em soluções também de extremos.

Dulce mostra o insucesso de uma auto-representação que é exclusiva e inflexível. Essa inflexibilidade é um obstáculo para alguém aprender com a experiência e viver experiências criativas.

Trata-se de uma vida 'sem limites'; na qual a construção do eu se esboça nos choques com a lei. É conduta "fora da lei" que torna-a exposta aos seus rigores.

Há uma fuga da experiência com o tempo e evidente um congelamento da história e por conseqüência da construção de um eu.

A rebeldia de Dulce deixa-a exposta aos controles externo, as rigores de normas e leis. Indiferente a elas, para ser um mau elemento há muito que aprender...

Enquanto isso vai sendo "gauche na vida".

Os 'flashes' mencionados neste texto permitem por à crítica a visão dominante do caráter opositor da adolescência embasada e limitada ao emprego de critérios sobretudo disciplinares. Inspiram novas apreensões do processo de reestruturação da auto-imagem e da vida de relação na adolescência 0- como experiência significativa de adesão ao projeto educacional. Por último, contribuem para afetar a cegueira que tem dominado o projeto educacional racionalista e psicologista, que tanto tem contribuído para a cristalização de estereótipos.

Destacar a complexidade da construção e manutenção da auto-imagem via rebeldia, permite novas apreensões sobre a adolescência na contemporaneidade e talvez inspire uma preocupação mais com a formação do sujeito.

 

Bibliografia

Aulagnier, P. A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

Freud, S. Obras Completas. Trad. Directa Del Alleman Luis Lopez Ballete – Ros y Torres. Madrid, Ed. Nueva Madrid, 1968.

Herrmann, F. A. Andaimes do Real: o cotidiano. São Paulo: Ed. Vértice, 1985.

Oliveira, M. L. Rebeldia e Identidade: um estudo psicanalítico sobre uma contradição aparente. (Tese de Doutorado) PUC-SP, 1992.

 

 

1 Termo emprestado de Isabel Kahn Marin a quem agradeço a inspiração.