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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

O spleen na adolescência

 

 

José Outeiral

Membro Titular e Didata da SPP

 

 


SUMÁRIO

O autor faz uma abordagem psicanalítica do "Spleen" adolescente, através da poesia "Solidão" de Álvares de Azevedo.


SUMMARY

The author makes an psychoanalytic overview about the adolescent "Spleen" by the poem "Solidão" of Álvares de Azevedo


 

 

Cuidado leitor, ao voltar esta página
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico
Álvares de Azevedo,
Lira dos vinte anos

 

Enunciado

O objetivo deste texto é discutir, num tempo de novíssimas, complexas e sempre atualizadas classificações diagnósticas fenomenológicas, uma condição clínica, o "Spleen", relacionando-o à adolescência". As raízes dessa experiência emocional são encontradas no romantismo do século XIX e início do século XX e, da mesma forma, na adolescência contemporânea.

 

O Spleen

Charles Baudelaire (1821-1867), conhecido poeta francês, publicou em 1851 um conjunto de quatro poemas sob o mesmo título de "Spleen". Ivan Junqueira, tradutor desses poemas, explica que "Spleen" é um vocábulo de origem inglesa que a língua francesa incorporou no século XVIII para designar uma sensação de "tédio sem causa". Para este tradutor "o spleen é a expressão suprema do famoso "tédio baudelairiano", oposto à aspiração do poeta pelo absoluto e o infinito, cujo símbolo é o ideal. É sob essa tensão antitética que se desenvolve toda a primeira parte da coletânea, não sem razão intitulada 'Spleen e o Ideal'. O "spleen", refere Sérgio Alcides, foi uma expressão importante ao "jargão romântico". Palavra inglesa que significa "baço", órgão que os antigos gregos relacionavam aos sintomas da melancolia, o "spleen" caracterizava sentimentos relacionados ao "pessimismo, ceticismo e um irresistível tédio...Era chamado de mal do século – inspiração da corrente que no Brasil ficou conhecida como ultra-romantismo, e que teve em Álvares de Azevedo seu primeiro grande nome" ( Sérgio Alcides, 2004 ). Moacyr Scliar também escreve sobre este tema no livro Saturno nos Trópicos. A Melancolia Européia Chega ao Brasil.

 

O adolescente Álvares de Azevedo

Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) nasceu em São Paulo, na esquina da Rua da Cruz Preta com a Rua da Freira (atuais Quintino Bocaiúva e Senador Feijó), e morre aos 21 anos, no Rio de Janeiro. O atestado médico revela "enterite, com perfuração do intestino". É enterrado no extinto cemitério do Hospício Pedro II, na Praia Vermelha. Uma ressaca destruiu o cemitério e os restos do poeta desaparecidos foram localizados, segundo consta, pelo seu cão, Fiel, o que possibilitou que sua ossada fosse para o túmulo definitivo no Cemitério São João Batista. Um final, sem dúvida, bem ao estilo literário ultra-romântico. O autor de Noites na Taverna começa a escrever recém saído da meninice e aos 17 anos, em 1848, quando se matricula na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, registra em uma carta que envia carta à mãe (Sérgio Alcides, 2004), em 11 de junho de 1848:

".... adeus e viva que não há mais nada digno de contar-me senão que a cidade ainda não deixou de ser São Paulo... o que quer dizer muitas coisas: entre as quais tédio e aborrecimento... ".

Ele escreve da mesma forma que Charles Baudelaire, ambos entediados com suas cidades. Estes dois flaneurs tinham, entretanto, queixas distintas. Álvares de Azevedo queixava-se da falta de progresso e civilização de São Paulo, enquanto Charles Baudelaire queixava-se da modernização e da velocidade de sua Paris. Isso é relevante pois mostra que para o verdadeiro "Spleen" adolescente a realidade externa, como tal, não importa tanto.

No ano seguinte Álvares de Azevedo prosseguia entediado e, a 12 de junho de 1849, escreve novamente à mãe, registrando:

"Nunca vi lugar tão insípido, como hoje está São Paulo. Nunca vi coisa mais tediosa e inspiradora de spleen... a vida aqui é um bocejar infindo".

Álvares de Azevedo escreve em Lira dos Vinte Anos uma série de versos aos quais ele dá o título de Spleen e Charutos, onde sua, digamos, filiação ao "Spleen" fica mais uma vez caracterizada. Não querendo tirar do leitor o prazer de procurar ele mesmo a leitura das obras de Álvares de Azevedo, quero trazer um dos poemas da série Spleen e Charutos, e comentá-lo, na medida do possível, sob o olhar da psicanálise..

 

Solidão

Nas nuvens de cor cinza do horizonte
A luz amarela a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se, vem da noite a vagabunda
Sem chale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes;
É doida por amor da noite a filha

As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório;
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam-se na praia
Qual de uma fada os mágicos retiros...
Oacute; lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas moças no lençol de prata?

Minh'alma tenebrosa se entristece,
E muda como sala mortuária...
Deito-me só e triste, sem ter fome
Vejo na mesa a ceia solitária

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo, Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo!

 

Um adolescente "desmotivado"

Alfredo tem dezesseis anos e não apresenta "maiores problemas". Concorda com a sugestão dos pais, que o acham "desmotivado", para que procure uma ajuda psicológica. A entrevista com os pais, e as subseqüentes com o jovem, não revelam nenhuma condição particular que justifique sua dificuldade, "desânimo", como ele diz Não é exatamente uma "tristeza" ou algo que configure uma depressão, no sentido psicopatológico. Durante a infância não apresentava esses sintomas e brincava e se relacionava com facilidade. Era uma criança alegre e disposta. O sentimento que é agora referido começou há cerca de dois anos. Quase nada o agrada e se queixa de tudo, dizem os pais e ele concorda. Na verdade, conta com enfado, "acho tudo um saco". Um fator que me pareceu positivo foi a queixa dos pais de que ele passava muitas horas, com revistas, "lendo" no banheiro. Nas sessões Alfredo provoca uma certa sonolência no analista e não é fácil seguir seu relato que parece monocórdico e monótono. Mostra, aos poucos, uma moralidade exagerada e crítica. As mulheres, em suas associações, ou são virginais ou vagabundas e vulgares, sendo que hoje a maioria delas, diz ele, são pouco confiáveis. Repete o mesmo tema e o analista tem de tomar cuidado para não se contaminar com o "spleen"; este "spleen", agora com causa, sentido pelo analista.através da identificação projetiva e percebido na contratransferência.

Alfredo mostra uma dissociação entre "ideais" de integridade e moralidade e a percepção crescente da sexualidade que produz o desejo, nem sempre reconhecido e, mesmo, negado. Coloca esperanças em um amor "verdadeiro e sincero" que espera um dia encontrar, o que considera que é muito difícil de se realizar. Há uma tensão que se percebe entre as novas demandas pulsionais e as aspirações e exigências que se relacionam a fortes ideais de atitude e comportamento. A latência é, agora, "uma página virada" e "dissipa-se o mundo visionário e platônico", como escreveu Álvares de Azevedo nos versos que servem de epígrafe a este texto. O que pede passagem de forma vigorosa, agora, é a "turbulência" adolescente. A re-edição, nas etapas inicias da adolescência, de experiências emocionais da infância, leva, dentre vários outros elementos, a novos arranjos no "Ideal de Ego", Surgem altas exigências que se chocam com as novas demandas puberais. É nessa tensão antitética, no vazio que se cria, que emerge o "spleen", no que concordo perfeitamente com o poeta Charles Baudelaire, quando ele descreve este estado emocional como "...a aspiração do poeta pelo absoluto e o infinito cujo símbolo é o Ideal...".

 

A adolescente que pensava em ser freira

Os pais de uma adolescente de 13 anos me procuram, em busca de orientação, pois estão muito preocupados com sua filha. Ela diz achar o mundo "sem sentido" e que a religiosidade é o caminho que irá buscar. Nada a interessa e passa o dia "entediada". Cumpre suas tarefas escolares, é gentil com as pessoas e não parece estar deprimida. Não é possível encontrar eventos que possam estar relacionados com o que ela sente. Apenas acha "tudo uma droga!". Como comentou com os pais de que estava pensando em entrar para "uma vida religiosa" eles ficaram deveras preocupados. Eles relatam, entretanto, um fato paradoxal: ela tem em seu arquivo escolar fotos de atores. A adolescente é uma "chata", dizem os pais, em contraste com a criança alegre e criativa que ela fora. Sugeri aos pais que aguardassem e me procurassem dentro de seis meses, ou antes se considerassem necessário. Cerca de um ano depois eles me procuram dizendo que a preocupação era outra: a "entediada e desinteressada", agora queria sair todas as noites e só pensava em namoros. A sugestão de Donald Winnicott de que o tempo é um fenômeno curativo na adolescência me pareceu ser verdadeira e a "página.fora virada", como escreveu o jovem poeta Álvares de Azevedo

 

O Spleen na adolescência

A adolescência é caracterizada, como sabemos, por inúmeros elementos, dos quais quero referir alguns: (1) a perda do corpo infantil, dos pais da infância e da identidade infantil; (2) da passagem do mundo endogâmico ao universo exogâmico; (3) da construção de novas identificações assim como das imprescendíveis desidentificações; (4) da resignificação das "narrativas" de self; (5) da reelaboração do narcisismo; (6) da reorganização de novas estruturas e estados de mente; (7) da aquisição de novos níveis operacionais de pensamento (do concreto ao abstrato); (8) da apropriação do novo corpo; (9) do recrudescimento das fantasias edípicas; (10) da vivência de uma nova etapa do processo de separação-individuação; (11) da construção de novos vínculos com os pais, caracterizados por menor dependência e idealização; (12) da primazia da zona erótica genital; (13) da busca de um objeto amoroso; (14) da definição da escolha profissional; (15) do predomínio do ideal de ego sobre o ego ideal; enfim, de muitos outros aspectos que seria possível seguir citando, mas, em síntese, da organização da identidade em seus aspectos espaciais, temporais e sociais. Em vários outros textos enfoquei diferentes facetas desse momento evolutivo de uma maneira mais detalhada. As transformações da adolescência, por outro lado, ocasionam flutuações que se caracterizam por momentos progressivos – nos quais predomina, entre outros aspectos, o processo secundário, o pensamento abstrato e simbólico e a comunicação verbal - e momentos regressivos – com a emergência do processo primário, da concretização defensiva do pensamento e a retomada de níveis não verbais de comunicação.

Os aspectos fundamentais para a compreensão da adolescência, sob o ponto de vista da psicanálise, nos foram dados pelo próprio Sigmund Freud, que foi um grande "psicanalista de adolescentes". O caso Dora, o caso de Katharina, o relato da "mulher homossexual", todas elas "jovens de dezoito anos", assim como o estudo sobre Gradiva e inúmeras vinhetas clínicas de pacientes nessa etapa evolutiva, que encontramos ao longo de sua obra, nos permitem fazer essa afirmação sobre a criador da psicanálise.

Neste texto quero, entretanto, enfocar uma das manifestações sintomáticas que caracterizam a adolescência, o "Spleen": pessimismo, ceticismo e um irresistível tédio. Aparentemente sem causa , sem algo da realidade que verdadeiramente os atormente, pois como vimos os jovens Charles Baudelaire e Álvares de Azevedo se queixavam de suas cidades, de progresso de mais ou de progresso de menos. Rebeldes sem causa, isto é, sem causa aparente. Na verdade, as transformações deste período originam modificações que atingem a personalidade, provocando tristeza pela identidade infantil que vai sendo perdida e um temor pelo mundo adulto e suas representações que vão se avizinhando ( o tão temido e desejado mundo adulto ...). René Passeron, como nos recorda Edson Souza, considera que toda a obra de arte é um "curativo do vazio". O "Spleen" se insere, a meu ver, por essas vias. Minha intenção é, apenas, reavivar a memória e ativar as associações, fornecendo elementos para reflexão. Álvares de Azevedo é o nosso exemplo de adolescente sofrendo de "Spleen", condição que todos reconhecemos nos adolescentes que estão á nossa volta e no adolescente que, espero, nós fomos, somos e seremos.

 

Uma compreensão psicodinâmica sobre o "Spleen"

A adolescência é, como explicitei antes, um período de importante modificações psíquicas. W. Bion, em seu texto sobre a condição borderline, nos fala dessa etapa como um momento de "turbulências". A finalização da latência e a eclosão puberal, além de vários outros elementos que são postos em movimento ao final do período de latência, criam uma porosidade consciente e inconsciente e a possibilidade de que um novo conjunto de identificações se realize, assim como uma forte operação de desidentificações (resultado, dentro outros aspectos, das inevitáveis desilusões que fazem parte da vida de todos nós). O ego, como descreve Anna Freud, tem de lidar com novas condições tanto no Superego e no Id (novas demandas instintivas), como na realidade externa. Essa "turbulência" interna, os movimentos psíquicos que se incrementam, as reedições de elementos primitivos que eclodem, determinam a busca, através da projeção no mundo externo ou real, dessas tensões, no intuito de tentar restabelecer a homeostase psíquica. A questão não é ,como foi para Charles Baudelaire, que reclamava das rápidas transformações de Paris, ou de Álvares de Azevedo, que se queixava da monotonia de sua provinciana São Paulo, o externo. O "Spleen", esse "pessimismo, ceticismo e tédio sem causa" é determinado no mundo interno pelas transformações, determinadas pelas perdas e pelas novas aquisições, desejadas e temidas. O poema de Álvares de Azevedo, da série Spleen e os charutos, denominado, significativamente, de Solidão, é eloqüente. A mulher "...vagabunda, sem chale, sem camisa e sem mantilha, nua...", sensual, que anda pela noite produzindo desejo, surpresa e medo, no adolescente. As figuras dos frades, nas nuvens a tudo observando numa representação de um superego rígido e crítico com a sexualidade, atormentam nosso jovem poeta. Ele pede uma donzela pura, não a vagabunda, que o tire de sua solidão. Atormentado por questões da mesma natureza, o jovem arqueólogo Norbert Hanold sofreu com seus delírios e sonhos envolvendo Gradiva e Zoe Bertgang, como sabemos.

Uma outro ângulo que nos permite compreender o "Spleen" é a compreensão de Donald Winnicott sobre

Quero apenas fazer os meus rabiscos, convidando o leitor a fazer os seus.

 

Bibliografia

AZEVEDO, Álvares. Obra Completa. Editora Nova Aguilar. Rio de Janeiro. 2000

BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris. Imago. Rio de Janeiro. 1995

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1985

ALCIDES, Sérgio. Uma capital Ultra-romântica. In: Nossa História. Biblioteca Nacional. I: 3, Janeiro de 2004