1Ser, crescer e conhecer (Mesa-redonda)A clínica dos transtornos autísticos e psicóticos na adolescência e a perspectiva da inclusão ou da recomposição necessária do mundo author indexsubject indexsearch form
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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Viagem ao Centro da Terra - psicopedagogia e subjetivação

 

 

Teresa Rebelo

Hôpital de Jour pour Adolescents du Cerep-Montsouris, Paris, França. Université Paris Descartes

 

 

Desde o nascimento, a criança é impregnada não só da cultura da sua família, mas também da cultura do grupo e da sociedade à qual ela pertence. Qual é o papel da cultura na constituição psíquica e no amadurecimento relacional do bebe, da criança e a seguir do adolescente?

Como que as crianças vão se aproveitar dos objetos culturais quês estão ao seu alcance e disposição, durante as suas atividades e devaneios? Elas poderão fazer isso, graças aos tempos de jogo, que implicam o corpo na relação ao outro e que permite a transmissão do simbólico. Freud compara o desenvolvimento e o amadurecimento da criança ao mesmo processo da civilização e da cultura. A cultura das crianças, presente na cultura global, poderá ela resistir? Será que ela é um laboratório para a cultura do futuro?

A transmissão cultural é feita no começo pelos pais e pela família, mas também pelos profissionais da infância. Alias, o papel da instituição escolar é apreciado de maneiras muito diversas: será que ela possibilita o acesso à cultura ou ela salienta a distinção e a segregação entre as culturas?

Paralelamente a estes lugares de socialização e de aprendizagem, as mídias têm tomado um lugar importante, que vai do pior ao melhor. Qual é o efeito exercido no psiquismo das crianças e dos adolescentes das imagens violentas, principalmente as imagens divulgadas pela televisão? É preciso censurar ou se abrir à cultura da imagem? E a cibercultura? Se ela abre perspectivas enormes, ela pode também mudar aquilo que conhecemos.

Os adolescentes criam as suas próprias culturas paralelas, às vezes marginais, elas transcendem a sua vivência pessoas. Como é que cada geração vai se diferenciar da precedente inventando e se identificando a novos objetos culturais? Assistimos hoje a uma grande quantidade de micro-culturas, rap ou o hip hop, por exemplo. Os movimentos urbanos criam culturas em volta dos quais grupos de indivíduos se reconhecem entre si.

No meu trabalho clinico, trabalho com adolescentes que não puderam se inscrever, por varias razoes, na cultura de origem ou adquirir uma cultura de referencia, além do qual eles também estão num processo de exclusão escolar. Como lês dar outra vez o gosto do aprendizado, reanimar o desejo de saber que existe em cada um de nos? De que maneira abordar este "malaise dans la culture"? Não esquecendo que a cultura é feita e construída pelos indivíduos e não o contrario e isto num processo de mutação continua.

O uso de mediações culturais no trabalho com os adolescentes tem-se desenvolvido bastante. Será que criar da uma nova energia aos técnicos? Os psicopedagogos serão os novos poetas, no sentido etimológico da palavra (poêsis, em grego designa a ação do tecelão, do artesão e literalmente significa "criar")? Finalmente, talvez seja este o papel da mediação literária.

Que aconteça um estado de desespero, o adolescente que se esconde e se isola para se proteger; encontra-se desligado do mundo. Este desespero acarreta uma série de rupturas: dos laços sociais, dos laços ao outro e das identificações imaginarias subentendidas. Aquele que passa por uma experiência psicótica é um ser singular que não reconhece seus iguais, ele esta sozinho, e a sua solidão crescem sem parar principalmente quando a expressão da sua radicalidade desencoraja as instituições familiares e escolares.

A maioria dos adolescentes que são internados no Cerep, onde eles têm uma escolaridade dada por professores do Ministério da Educação Nacional, passaram por diversos tipos de surto : isolamento, fuga escolar, surto delirante,tentativas de suicídio. Isso acaba por leva-los ao internamento. O mais comum é que durante esse primeiro internamento a equipe de técnicos dos serviços hospitalares onde eles estão, ou então os médicos que os seguem, e levando em conta as capacidades que eles têm, pensam em entrar em contato com o nosso Hospital Dia.

Sendo Psicopedagoga no Cerep, sou constantemente confrontada pelas profundas implicações desses encontros enigmáticos entre o adolescente, a psicopedagoga e o texto literário. Neste contexto partícula que expus, nestas situações de ruptura, a possibilidade de restabelecer um laço com a experiência singular provocada pela literatura me parece ser como uma situação "secretamente" tecida pelos "deuses" e por aquilo que esta profundamente em causa psiquicamente.

A literatura, por essência, é a maneira de trabalhar simbolicamente a experiência humana. Assim sendo, ela participa de uma trama terapêutica universal. Para Julia Kristeva ela é "um tipo de terapia utilizado em vários tipos de sociedade através dos tempos" tendo uma "eficiência real e imaginaria que se aparenta mais a catarsis que à elaboração"1

O acesso a este modo terapêutico universal me parece implícito no caso de jovens com distúrbios psíquicos graves. A especificidade se fazendo na organização em torno da mobilização do registro imaginário do qual a maioria dos jovens esta privada. O texto literário é susceptível de proporcionar uma abertura ou às vezes uma simples brecha, "sob a impulsão de um outro espírito"2 na sala das experiências imaginarias e isto descreve bem o dispositivo psicopedagógico, quando o encontro entre os adolescentes e os textos se faz numa dimensão de dramaturgia interna e intima.

O psicopedagogo trabalha com os objetos culturais. Não é comigo que se fala da estória individual e subjetiva, mesmo se a conheço. No entanto, trabalho presa na teia das conseqüências, às vezes traumáticas, de cada estória individual. E é ai que o espaço transacional poderá se instalar. Um espaço aonde são susceptíveis de aparecerem, sem choque ou destruição entre si, os espaços interiores e exteriores, ou o mundo psíquico interno e externo. Além desse aspecto de suporte projetivo, às vezes sou levada a ter o papel de uma instancia interior falha ou ausente, um tipo de interlocutor imaginário.

No centro do dispositivo esta o objeto texto. Um objeto real e objetivo. Ora, a obrigação da leitura, de pensar, supõe a possibilidade de um dialogo interior, de uma conversa intima que às vezes vira um debate ou mesmo um conflito. Este interlocutor interno não é um simples duplo, ele representa um outro no interior do sujeito. Quando este outro nos mesmos é falho, é extremamente difícil de construir um objeto intelectual que leve em conta as exigências do outro. O psicopedagogo, na realidade, pode ser levado a encarnar este outro interlocutor imaginário graças ao qual o dialogo interior pode ser retomado ou mesmo começado. É nesta proximidade com o interlocutor imaginário que o psicopedagogo solicita o texto e os seus significados e convida o adolescente a entrar neste palco, às vezes, proibido que pode se tornar o mundo imaginário, onde tudo é possível e realizável, à condição que seja no espaço transacional.

E é exatamente porque a literatura propõe representações imaginarias destas experiências –representações cujo porta voz é o psicopedagogo – que ela traz com ela aquilo que é indizível no campo da linguagem. O texto propõe uma figuração simbólica as sensações psíquicas e abre o acesso a uma experiência imaginaria que se inscreve numa dimensão universal e faz com que os leitores entrem num mundo compartilhado. Assim, as emoções, os afetos, as fantasias, os pensamentos, serão reconhecidos, identificados na sua forma literária e a partir dai eles poderão integrar o campo da consciência, de onde eles estavam banidos ou ignorados.

Tais poderão ser os movimentos específicos da literatura. O que explicaria o porquê de textos literários, que seriam objetos pedagógicos, podem passar a ser instrumentos terapêuticos. E isto porque a literatura permite de ser e conciliar com a dimensão imaginaria ligada a todo patrimônio cultural constituído pelos livros. Ela poderá dar a jovens pacientes a possibilidade de conter sismos emocionais, corporais e intelectuais dentro do dispositivo psicopedagógico. A mediação literária poderá assim dar a possibilidade de se reencontrar, na acesso aos livros, nos mitos fundadores da sociedade na qual vivemos.

E como escreve Bernard Penot : "O tratamento de funcionamentos psicóticos questiona as modalidades de uma abordagem múltipla de sujeitos em sofrimento, indivíduos virtuais, prisioneiros indefinidos de alguma "outra cena" familiar ou individual que eles representam sem a viverem, delegando toda a ação a um outro alguém"3.

É um caso deste tipo que vou tentar descrever e analisar, através três anos de seguimento à l’Hôpital de Jour pour Adolescents du Cerep-Montsouris. No entanto, gostaria de prevenir que o meu relato clinico não poderá evitar passar a maior parte do tempo pelo registro do factual e do ambiental, não deixando muito lugar ao discurso que emerge du sujeito próprio, e justamente por causa das dificuldades psíquicas na qual ele se encontrava.

Conheci Pattrick ha um ano antes de começar a trabalhar com ele. Ele fazia parte de uma oficina chamada "Groupe Journal" e o via todos os sábados de manha. Ele era sempre o primeiro a chegar e o primeiro a partir. As 11h, tal qual um relógio suíço, ele chegava, se sentava no lugar que ele tinha escolhido como seu, às 12h30, se levantava, como nos indicando que já tinha chegado a hora. Ele não participava do debato do começo do grupe, como se ele esperasse que lhe disséssemos sobre o que é que era para escrever, depois ele escrevia um texto, sem rascunho. Um texto que eu poderia qualificar de bem comportado. A seguir ele pedia a um dos terapeutas que lesse no seu lugar o texto. E isto tudo sem um só comentário. No começo sequer tinha reparei nele, ele estava la. Mas, um dia, nos trabalhamos sobre "como é que nos imaginávamos que os nossos descendentes nos descreveriam aos seus descendentes" e o texto que ele escreveu foi de perder o fôlego. Um texto extremamente lírico, não só sobre o tempo que passa e da imagem que nos fica nos traços da memória, única imortalidade finalmente possível, mas também muito bem escrito. Ouvindo o texto, lido por um dos terapeutas, lembro-me de ter pensado que ele era mais "vivo" do que aquilo que eu poderia pensar ou achar.

A estória dele é de uma grande banalidade psiquiátrica. Ele chegou no Cerep com 16 anos apos um alerta da escola. Quando ele chegou, ele já tinha repetido a oitava série e as coisas pareciam piorar cada vez mais na escola. Ele não tinha relação nenhuma com os seus colegas com os quais ele mantinha uma posição de bode expiatório. O diagnostico do prontuário indica uma desarmonia psicótica da infância com antecedentes orgânicos. Aos quatro anos ele teve crises epiléticas (tratadas desde então e isto serviria de suporte às fantasias dos pais para explicar as dificuldades do seu filho.

Quando ele chegou, ele apresentava sintomas obsessionais descritos como muito fortes, bastante ritualizados, que o invadiam e o paralisavam completamente. Ele era bastante colado à família e por vezes tirânico com ela. Por exemplo, ele proibia a presença do irmão no mesmo lugar em que ele estivesse. Apos a sua admissão, ele evolui num tipo de misture de renuncia e de adesão, com uma espécie de frieza ostentatoria e bastante distante com relação à instituição. Diziam que ele parecia um grande senhor, um Don, que olhava as pessoas inferiores passarem. Quando o conheci, já faziam dois anos que ele estava no Cerep. Ele tinha aquilo que chamamos a "síndrome do aquecedor". Ou seja, ele ficava coado ao aquecedor da sala de espera, só saindo de la para entrar nas aulas e nas oficinas. O tempo de "nada para fazer" era o tempo do aquecedor. Ele me dava a impressão estar fora do tempo. Todas as vezes que passava pela sala de espera, inúmeras num dia de trabalho, ele estava la. De costas voltadas para o mundo, esperando não se sabe bem o quê.

E, um dia, os seus responsáveis vieram me ver para me perguntar se eu poderia tentar ajudar Patrick a organizar umas férias em Portugal, junto com um antigo colega de escola. Este colega tinha mantido contato pr escrito com Patrick, apesar deste, em um ano, nunca lhe ter respondido. Patrick o tinha mencionado durante um atendimento com os seus responsáveis e eles queriam que eu tentasse fazer com que Patrick pudesse responder pelo menos à carta do colega. Na época, os responsáveis de Patrick trabalhavam para que ele pudesse descolar um pouco da sua família (do seu aquecedor ?). E foi assim que comecei a trabalhar com ele. Na realidade não tinha a menor idéia por onde começar, nem como fazer e sequer o que é que eu iria fazer.

Hora marcada Patrick estava la, na frente da porta. Para mim, a sua extrema pontualidade sempre foi ume espécie de desafio para mim. Ele sempre foi o meu primeiro atendimento da manha e com ele eu poderia ter a certeza que ele estaria la, na frente da porta, me esperando. E, o primeiro atendimento aconteceu. Eu estava impressionada com o seu silêncio. Uma espécie de silêncio contido e eu me disse que ele deveria ter bastante coisas a dizer para ter que se calar assim.

E assim nos começamos a nossa viagem, com um começo por Portugal. Apos varias semanas, o nosso rascunho ficou pronto. Duas semanas mais tarde, ele trouxe um cartão postal e, somente uma semana depois, o endereço. Achei que sonhava quando vi o endereço ! O seu correspondente morava numa cidade, ou aldeia, chamada "Covil dos Lobos"! Não pude deixar de pensar em Freud, achando que talvez fosse uma piada, que talvez não fosse um endereço verdadeiro ... Depois disso, uma vez que o cartão foi escrito e enviado fiquei bastante hesitante com relação ao que viria depois. Não sabia se devia continuar ou parar. Finalmente, foi o próprio Patrick quem tomou a decisão. No sábado seguinte ele estava me esperando, firme, na frente da porta. E assim nos continuamos nossa viagem. O momento das férias estava chegando e ele me contava os seus projetos de férias na região da Auvergne com um organismo de férias para jovens. Seria a primeira vez que ele passaria férias sem a sua família e, além do mais, em grupo. Ele estava bastante apreensivo e quase que, em termos físicos, torcido pela angustia. Ele é um rapaz alto e magro, que flutua um pouco nas suas roupas. Quando ele estava bastante angustiado, tinha a impressão de ver um parafuso humano na minha frente. Ele se dobrava sobre si mesmo, mas olhando pare mim pelo canto do olho. Era Narciso à beira do lago, extremamente absorvido e escutando uma voz que não pode lhe responder. E era o que estava se passando entre nos. Propus então que fizéssemos juntos o percurso antes da sua viagem. E assim partimos para a Auvergne, com um mapa na mão e um livro de contos da Auvergne na outra. Era bastante factual. Seguíamos o itinerário proposto pelo organismo e contávamos estórias. Ao mesmo tempo era mais do que surrealista. não tnha nenhuma idéia de como é que a Auvergne poderia ser e parecia a piada do cego indicando o caminho a um surdo, difícil ! Mas assim fomos chegando às férias, devagarinho, em devaneios. Patrick me parecia ser alguém suspendido no tempo e no espaço, num sofrimento que não poderia ser dito. Pode ser que tenha sido por isso que eu me agarrava aos devaneios. Como diz Virginia Woolf, "A vida é um sonho, é o despertar que nos mata", e eu me sentia que tentava fazê-lo sonhar, quase que contra a sua vontade. Na altura das férias, consideramos que o nosso trabalho tinha terminado. Ele partiria para as férias e eu estava convencida que o trabalho não tinha servido para muita coisa.

Quando nos voltamos a ver no fim as férias, Patrick não quis que voltássemos a nos ver e em seguida não tinha horário para vê-lo. Foi mais ou menos nesse momento que as coisas ficaram bastante complicadas com ele. Eu continuava a vê-lo na Oficina do "Groupe Journal" e, durante a semana ele me chamava freqüentemente quando passava por ele na sala de espera : "Você tem só cinco minutos ?", e os cinco minutos se transformavam em meias horas. Eu me sentia sugada, tratada como um objeto parcial, "só cinco minutos"... E, um dia, assim que cheguei ao Cerep ele me perguntou se a gente podia continuar se vendo como antigamente. Não soube muito bem o que fazer para responder à sua demanda sem que fosse transformado em um acting da minha parte. Acabei por responder que iria falar com os responsáveis dele e que em seguida falaria com ele. Assim, depois que as formalidades "cerepienas" foram seguidas e respeitadas, fizemos uma entrevista, (responsáveis, ele e eu) e o trabalho pode começar de maneira mais formal. Ele começou pour me propor a leitura de Anna Karenine. Quase cai da cadeira quando ouvi. Não entendia o que a Ana Karenine vinha fazer junto com a gente e, além do mais, a única imagem que me vinha era a da Greta Garbo dizendo "I want to be alone" e desaparecendo no meio do nevoeiro com o amante dela. Rapidamente começamos a ter problemas com o texto e com a sua leitura. Tínhamos que recomeçar varias vezes a mesma frase. Ele não entendia o que ele lia e eu não compreendia nada daquilo que estava acontecendo. Ele tinha que voltar atrás o tempo inteiro e para mim era muito difícil de suportar. No fim da terceira sessão na mesma pagina, acabei por propor que déssemos férias à Anna karenine e fossemos ao encontro de outras paisagens literárias. Ele não estava muito entusiasmado com a idéia e percebi claramente que ele não ousou me dizer ano. Mas, no momento de sair, eu disse a ele, em vez de "au revoir, à la semaine prochaine", eu disse "nos vemos na mesma bafora, no mesmo bacanal, para mais bataventuras". Eu não sei porquê a série do Batman, que eu vi durante anos quando chegava da escola, me veio nesse momento à cabeça. No après-coup, acho que Patrick me fazia pensar a esse personagem com uma vida dupla, que só se diverte e se sente vivo quando tem a sua mascara. Uma espécie de mundo onde a batcaverna lhe serve de refugio, onde ele pode ser ele mesmo sem testemunhas. Talvez um retorno ao ventre materno. O que é certo é que na batsemana seguinte ele me propôs "Viagem ao Centro da Terra" de Jules Verne.

Finalmente, talvez não estivéssemos assim tão longe quanto isso da batcaverna.

E assim partimos com Jules Verne para uma viagem exploratória. Esta aventura, que pode ser considerada como uma viagem exploratória, é também uma volta, uma descida às origens, ao arcaico. É uma viagem perigosa, mas somos assegurados pelo fato que a personagem principal é também o narrador. Ele fez a viagem e temos assim a certeza que ele voltou, pois ele é que nos conta o que aconteceu. Esta certeza será bastante importante para enfrentar momentos fortes do livro, quando Patrick se defrontava à sua angustia dizendo: «A única coisa que me tranqüiliza é que é ele que conta a estória". Esta aventura vai provocar nele uma ebulição ao nível do pensamento e dos afetos excepcional, se levarmos em conta a força das inibições que eu conhecia nele. Aos pouquinhos ele começou a se servir das imagens que lhe erma propostas pelo texto para sair do seu isolamento, para se permitir questionamentos e não reprimir de maneira sistemática os seus afetos.

Assim, esta estória nos é contada à primeira pessoa por um adolescente chamado Axel. Ele é órfão de pai e mãe e foi acolhido pelo seu tio, o excêntrico Otto Lindenbrock, professor de geologia. Ele mora em Hambourg com o seu tio, com Marta a empregada e com Graüben, afilhada do tio e namorada de Axel, órfã ela também.

Rapidamente os nossos dois personagens, Axel e o seu tio, se encontram perante uma mensagem escrita e codificada em rúnico, mensagem que eles terão problemas a decifrar. Mas o jovem, culto, pensa descobrir certas palavras do texto traduzindo o texto em latim e Axel consegue descobrir o conteúdo da mensagem. Seriam preciosas indicações que permitiriam alcançar o centro da terra. Indicações dadas por um certo Arne Saknussem que pretende ter feito a viagem. Axel tem medo de fazer a expedição, mas ele se deixa levar, de maneira passiva pelo seu tio. Ele fica ainda mais confuso quando a sua namorada, Graüben o incentiva a tentar a aventura e ele fica com a sensação que ela quer se livrar dele.

«Lutar contra o meu destino me parecia impossível. Subi ao meu quarto e, deixando cair a minha mala pelas escadas, fui procura-la.

O meu tio estava solenemente entregando as chaves da casa a Graüben. Minha linda Virlandesa conservava a sua habitual tranqüilidade. Ela da um beijo a seu padrinho, mas ela não pode conter uma lagrima.

"Graüben!" Gritei.

"Vai, meu querido Axel, me disse, você deixa uma namorada e você encontrara a sua mulher na volta."

Enlacei Graüben nos meus braços e subi na carruagem. Marta e a jovem, na porta, nos deram o seu ultimo adeus. Em seguida, os dois cavalos, incentivados pelo condutor, começaram a galopar pelas ruas de Altona.»

Chegando a este final do oitavo capitulo, Patrick para, suspira e comenta: "Eh bom! Ele tem sorte!" Fiquei bastante surpresa. Até então a leitura era feita sem muitos incidentes. Ele lia bem, estávamos na quarta sessão com o livro e eu me sentia bastante chateada. Nunca tinha gostado muito de Jules Verne que, durante a minha adolescência, tinha achado muito chato, uma literatura "para rapazes", muito técnica, descritiva, com muitos detalhes. E, até então, a chatice da minha adolescência estava bastante presente, uma das vezes quase adormeci lendo. Mas eis que de repente Patrick tinha encontrado algo de emotivo em Jules Verne. E, a partir daí as coisas ficaram mais claras. Não sabia muito bel qual era o meu lugar na estória, mas ele partia com Axel numa espécie viagem iniciatica.

E assim fomos todos à Islândia à procura da montanha de Arne Saknussem. Durante a viagem Axel vai contrariado, ele vai a marcha à ré. Patrick me dizia que Axel era muito ruim, que ele "só tinha que dizer não e voltar para casa". Mas Axel continuava e nos também. Na Islândia, eles encontraram o guia Hans, pessoa hábil, mas que ficara calada durante praticamente a viagem inteira. Aos poucos fui percebendo que estava no lugar do guia. Cada um de nos tinha o seu livro. Patrick lia a voz alta e eu seguia. No começo ainda tentava ler os diálogos a dois. Impossível, Patrick nunca deixou que eu falasse. Assim fiquei muda, seguia o "guia" ao mesmo tempo me sentindo no lugar que este tem na narrativa. É ele que varas vezes salvara o pequeno grupo. Por exemple, Axel e seu tio estão quase mortos de sede, não têm mais reserva e eles não encontraram as fontes que esperavam desde que a descida tinha começado. Assim, nossos heróis vão morrer de sede. Eles serão salvos graças à coragem do guia que encontrara forças para cavar na rocha e fazer jorrar água. Assim, o riacho que se forma será a pista que seguirão até o centro da Terra. Ele será batizado Hans-bach. "Bela metáfora Seu Verne!" Tal foi o comentário de Patrick.

A evolução de Patrick ia acontecendo rapidamente. Às vezes tão depressa que eu até tinha dificuldades em seguir. Nessa época, uma terapia pode começar e ele investia bastante esse trabalho. A questão de continuar ou não o trabalho psicopedagógico foi resolvida com uma decisão pela continuidade, principalmente porque já fazia algum tempo que eu tinha impressão que estávamos em algo lúdico. Era sempre o mesmo jovem angustiado, mas ele se autorizava a fazer comentários sobre trechos do livro e para mim era evidente que a identificação a Axel era claramente e fortemente investida.

Foi então que algo de terrível aconteceu no livro. Desta vez Axel foi a principal vitima. Ele acabou se perdendo, sozinho. Atacado pelo pânico, ele corre desesperadamente sem direção, desce e sobe pelos corredores da gruta, ferido na cara. Ele esta na mais profunda obscuridade, seus gritos desesperados não são ouvidos, a angustia esta no auge.

«Não poderia descrever o meu desespero. Nenhuma palavra da linguagem humana poderia me devolver os meus sentimentos. Estava enterrado vivo, com a perspectiva de morrer na tortura da fome e da sede (...). Tentava encontrar uma saída a este insolúvel problema. Minha situação se resumia a uma só palavra: perdido! (...) eu me sentia esmigalhado!

(...) Eu tentava concentrar os meus pensamentos nas coisas da terra. Com grande dificuldade conseguia me recordar de Hambourg, a casa da Königstrass, minha querida Graüben, todo um mundo do qual me afastava passava nas minhas recordações, na minha memória aterrorizada. (...) Eu me dizia que, na minha situação, se eu guardasse ainda um resto de esperança seria sinal de loucura, e que seria melhor me deixar levar pelo desespero!

Com efeito, qual seria a potencia humana que poderia me levar de volta à superfície do globo terrestre e abrir este enorme teto que se fechava sobre a minha cabeça? Quem poderia me colocar de volta, no caminho que me levaria de encontro aos meus companheiros? (...) As lembranças da minha infância, da minha mãe que pouco tinha conhecido me voltaram à memória.

(...) Foi então que comecei a perder a cabeça. Levantei os braços à minha frente, tentando pelo tato. Comecei a fugir, me precipitando a esmo neste inexplicável labirinto, descendo sempre, correndo através a crosta terrestre, como um morador das profundezas subterrâneas, chamando, gritando, rapidamente ferido pelas rochas, caindo e me levantando ensangüentado, tentando beber o sangue que me inundava a cara e tentando encontrar uma muralha que viesse enfim me quebrar a cabeça!

Aonde me levaria esta corrida sem nexo? O ignorava. Após varias horas; com certeza no final das minhas forças, cai coma uma massa inerte apoiado contra a parede e perdi o sentimento de existir!».

"Vivo isso todas as noites antes de dormir", foi o seu comentário. "O medo que já veio é preferível ao horror imaginário", a frase de Shakespeare me veio imediatamente à cabeça. Estávamos no registra da angustia, que me fazia pensar à angustia de desmoronamento descrita por Winnicott4. Para C. Chabert é um "estado afetivo forte, o desespero pede instantaneamente a imagem, sem duvida para conter o excesso, o risco de transbordar (...) principalmente a que se refere ao estado de impotência do bebe, a que esta ligada a seu estado de dependência total, sobretudo, aquela que acompanha a espera desesperada, esta espera primordial pelo outro e pela ação especifica que poderá acabar com a situação extrema"5. Para Patrick só o tio poderia salvar Axel. Ele sabia que Axel será salvo, mas ele não podia admitir a possibilidade que este talvez não o fosse. Realmente, algumas paginas mais tarde, o nosso Axel é salvo pela voz do tio que ira guia-lo através do labirinto. Para Patrick, a saída era "lógica". Os outros o tinham perdido, então os outros deveriam encontra-lo e salva-lo. Ele me explicou que se os outros tivessem ficado nos lugares deles Axel não os teria perdido de vista e isto tudo não teria acontecido. Ele estava com bastante raiva. Era a primeira vez que o via neste estado. Ele estava furioso: "é inumano deixar alguém se desesperar assim!". Patrick não era mais liso, ele deixava de lado a imagem de jovem sábio, finalmente ele não estava satisfeito, ele estava irritado com alguma coisa!

O que se segue é um tipo de renascimento de Axel, uma recuperação das suas feridas. Patrick me diz que Axel deve deixar que as coisas aconteçam se ele quiser viver. "é um pouco como eu. De uns tempos para cá eu vejo a minha vida colorida." Ele me que explica que ver a vida colorida é como sentir as coisas, ter sentimentos, diz ele com um grande sorriso.

A seguir, os nossos exploradores vão, primeiro encontrar um mar subterrâneo e depois terão que enfrentar um monstro de quatro metros. Uma tempestade ira surpreende-los e eles terão que construir uma jangada para tentar atravessar esse mar. O pânico vai invadi-los. Trovoes e relâmpagos se sucedem e uma enorme bola de fogo gira em torno da jangada, do pé de Axel e da reserva de pólvora. Mais uma vez Axel se encontra confrontado a uma situação de perigo. Mas, algo faz com que para Patrick as coisas sejam diferentes. E, de repente, tenho a impressão que ele se diverte de verdade. No final desta sessão, ele me conta os seus projetos e ele me anuncia que ele não vira na semana seguinte : "vou viajar!" E ele me fala do seu projeto de férias, da sua esperança de encontrar "sua Graüben". E ele conclui dizendo que vai ser difícil de encontra-la descendo as pistas de ski, quais são os seus planos e como ele construiu estratégias de sedução, que ele chama de "armadilhas para Graüben".

Quando ele volta das férias continuamos o trabalho e, desta vez, Axel e o seu tio vão se encontrar com um homem enorme. Ele cuida de uma manada de mamutes. Axel fica terrorizado. É preciso dizer que algum tempo atrás ele tinha encontrado um terreno cheio de ossos pré-históricos entre os quais estavam um esqueleto humano. O gigante, com quem não é necessário tentar comunicar, não quer deixar que eles passem, mas eles encontrarão um jeito de contorna-lo, de enganar o seu poder maléfico. Pela primeira vez uma saída é possível. O professor, graças à sua inteligência, vai conseguir que eles resolvam o problema e enganar este homem rústico que aparece como menos terrível que no começo. Axel e o seu tio foram espertos o suficiente para não enfrentar mais este perigo. Eles se esconderam e puderam continuar o caminho deles. Patrick parece manter uma boa distância da leitura. Ele ri com certas situações e quando Axel faz explodir uma rocha, que acaba fechando a gruta pela qual elas devem passar e provoca um acidente que os faz mergulhar na caverna junto com o mar que eles tinham descoberto e ele "morre de dar risada". Ele lê o texto e interpreta no segundo grau : ele faz piadas, lança suspiros teatrais cada vez que Axel evoca a sua bem amada, ele dramatiza o texto e se transforma num tipo de ator do texto que ele lê.

E, um dia, os nossos exploradores saem do Centro da Terra. Ha uma erupção vulcânica e eles acabam no exterior. Patrick me diz então "foi graças a Graüben que ele conseguiu. Foi ela que o guiou. Foi ela que o ajudou a se transformar num homem e a provar que era possível ir e voltar do Centro da Terra. Foi por amor que ele o fez. Espero que ele vá voltar para ela em Hambourg". Efetivamente ele vai voltar a encontra-la: "Qual não foi a surpresa de Marthe, qual não foi a alegria de Graüben, renuncio a descrevê-la.

Agora que você é um herói, me disse a minha querida Graüben, não será mais preciso que você me deixa nunca mais Axel!

Olhei para ela e eu chorava sorrindo."

Narciso encontrou a sua ninfa. Depois fomos encontrar Dickens a Mudfog e brincamos com a visão de Dickens desta pequena cidade, com os seus personagens tão humanos "tão humanos que é de chorar", como dizia Patrick. Nos somos no mundo dos humanos, narciso não é mais na sua fonte mortífera.

Este trabalho foi uma longa viagem, às vezes perigosa, com momentos de tensão, de cegueira, e de tentativas constantes. Mas pudemos chegar em algum lugar. Patrick continua a sua viagem e para mim novas perguntas apareceram. No entanto creio que com as mediações culturais existe uma possibilidade concreta de retomada da dinâmica psíquica. Que se pode tecer com as identificações, entre a transiocionalidade e a utilização de um objeto transacional, que funciona ele como um objeto de mediação terapêutica. Isto só me parece possível que se for levado em conta a articulação entre o eixo narcisico e o eixo objetal num processo de subjetivação possível.

Mas, outras perguntas apareceram durante o fio do trabalho. Para começar a questão da interpretação. Acho que ela não é possível de ser feita sem correr o risco de cair na violência da interpretação descrita por Piera Aulagnier. Acho que pode se interpretar aquilo que fazem ou pensam as personagens, mas não aquilo que diz o paciente. Isto porque trabalhamos com um discurso que não é ainda subjetivo e que a interpretação pareceria mais com um exercício de trapezista. Mas, ao trabalhar com aquilo que fazem ou pensam os personagens no contexto ao qual eles pertencem podemos trabalhar com a diferenciação entre si e o outro, com a tomada de consciência deste objeto "not me possession" descrito por Winnicott. O que me leva à pergunta seguinte : será que se pode falar verdadeiramente de objeto transacional na adolescência ? É um conceito pertinente ou será que será preciso encontrar outras formas a coisas que já são conhecidas ? será que se pode trabalhar primeiro com a imagem antes de chegar ao verbo ? Porque não fazer o inverso, já que trabalhamos com adolescentes que têm acesso ao Verbo, mas a um Verbo que não tem sentido. Se o sentido é o que nos permite de viver num mondo que podemos fazer nosso, como ajudar estes adolescents à encontrar o lugar deles num mundo cujo sentido lhe escapa. será que as mediações literárias são suficientes para isto ? Que fazer da dinâmica transferencial ? Trabalhamos com a transferência ou na transferência ?

Mas, a pergunta que me parece ser a mais importante é : será que é uma verdadeira redinamizaçao ou algo mais temporário ? será que não é como acender um fogo com papel de jornal e teria que se adicional madeira para poder criar verdadeiras brasas ? Ou seja, será que este tipo de trabalho não seria mais uma entrada na redinamizaçao psíquico num começo de subjetivação que um trabalho que possa ser considerado como uma terapia em si.

A estas perguntas todas não tenho resposta, mas, me parece que a redinamizaçao é possível, mas que sem um trabalho terapêutico em seguida, esta retomada não poderá ser realmente efetiva. Mas, sobre com que tipo de psicopatologia a psicopedagogia poderá ser eficaz continua como um questionamento aberto. Parece-me que com as psicoses infantis e com as patologias com um vertente deficitário este trabalho é frágil e limitado. Mas, será que é um questionamento da psicopatologia ou um trabalho que precisa de uma certa preservação do setor cognitivo?

Pode ser que seja necessário que narciso possa entender as palavras que o vento traz de longe para que ele possa se afastar da imagem mortífera que a fonte lhe devolve ...

 

BIBLIOGRAPHIE

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1 Kristeva J., 1987, Soleil Noir: dépression et mélancolie, Paris, Gallimard.
2 Este «outro espírito», é o espírito do artista. Marcel Proust na "Sur la lecture" descreve "este ato psicológico original" que é a leitura que se faz "sous l'impulsion d'un autre espirit".
3 Penot B., 1987 «Y a-t-il un sujet dans le congélateur?», in Adolescence, 1987, 5, 2, 350.
4 Winnicott, 1975, «La crainte de l' effondrement», in Nouvelle Revue de Psychanalyse, 1975, 11, 35-44
5 Chabert C., 1988, «Introduction. Etats de détresse», in Etats de détresse, Pris, PUF, p.2