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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

TRABALHO PARA SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA ADOLESCÊNCIA
MESA: AS MANIFESTAÇÕES DA SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA NA ADOLESCÊNCIA

 

A clínica dos transtornos autísticos e psicóticos na adolescência e a perspectiva da inclusão ou da recomposição necessária do mundo

 

 

Camila Pedral Sampaio

PUC-SP e SBPSP

 

 

Desejo abordar aqui aspectos de meu trabalho no Projeto Oficinas Terapêuticas para Crianças e Adolescentes com Graves Transtornos Emocionais, destinado ao tratamento de crianças e adolescentes autistas e psicóticos. Na verdade, mais do que conclusões sobre as quais eu possa discorrer ou alternativas que me considere capaz de propor, o que este trabalho me inspira são questões, que atravessam nossa prática e a interrogam permanentemente.

O projeto Oficinas1 constitui-se num conjunto de dispositivos terapêuticos, destinado ao trabalho com crianças e adolescentes com patologias graves da infância e seus familiares. É sediado na Clínica da Faculdade de Psicologia da PUCSP (Clínica Ana Maria Poppovic) e se pauta por uma diversificação significativa de ações e estratégias terapêuticas desenvolvidas junto a esses adolescentes e familiares. O fundamento do trabalho, que tem ensejado a formação de parcerias com outras instituições, no intuito de ampliar o seu alcance em direção à rede socio-familiar desses pacientes, é a idéia da criação e sustentação de redes crescentemente inclusivas pelas quais as crianças, os adolescentes e suas famílias possam movimentar-se, distendendo suas possibilidades de circulação e trocas sociais. Um dos eixos norteadores de nossas ações é, portanto, a inclusão dessas crianças e adolescentes, sempre que minimamente possível, na Rede Pública de Ensino Regular, em salas de aula normais, inclusão que é tomada e pensada como estratégia terapêutica e considerada fundamental. A aposta na criança e em seu desenvolvimento afetivo, cognitivo e social é entendida como tendo o mais poderoso efeito terapêutico. A experiência tem-nos mostrado que esse entendimento é legítimo. Assim é que vemos os esforços no sentido da escolarização dessas crianças como um dos eixos de um trabalho terapêutico que tem como referências, de um lado a Psicanálise e as práticas institucionalistas e, de outro, as chamadas pedagogias da diferença.

O outro eixo é o trabalho clínico que ocorre nas oficinas, grupos de pais e atendimentos individuais ou do grupo familiar. Podemos dizer que as oficinas, propriamente ditas, têm também um fundamento inclusivo, aprofundando o sentido do termo inclusão: trata-se, nelas, de promover enlaces dessas crianças e adolescentes no campo da linguagem. Cada oficina representa a oferta de um suporte material que porta uma significação simbólica e cultural valorizada em nosso mundo. Rádio, música, teatro, computação e expressão tornam-se gramáticas ou regimentos de linguagem, pelos quais as expressões absolutamente singulares desses jovens podem ser apreendidas e enlaçadas num significado intersubjetivo e sócio-cultural. As oficinas significam, portanto, já no suporte material escolhido como tema, uma abertura do espaço clínico ao grande mundo e a suas representações pertencentes ao campo sócio-cultural.

Está presente, então, em ambos os eixos do trabalho, um paradigma no convívio com essas crianças e jovens que é o paradigma da inclusão, do qual mais adiante falaremos um pouco mais. Por ora, o que interessa é assinalar que este paradigma exige que pensemos diferentemente o campo da psicopatologia, lutando contra as perspectivas de isolamento e de discriminação vigentes nas práticas psiquiátricas tradicionais e propondo um olhar para estes distúrbios que vá além de um inventário de disfunções, tal como tendia a fazer a clínica tradicional, segundo Diatkine2, e que rume em direção a um foco na dimensão subjetiva e singular desses jovens. O que se passa é que, ainda segundo comentário deste autor, "tratar um paciente como ser humano, cujas dificuldades não diminuem a sua dignidade, é uma atitude mais fácil de imaginar do que de manter no dia-a-dia"3. No dia-a-dia, muitas vezes o que vemos é o desaparecimento de nossa capacidade de pensar e sonhar, o que, ao esvair-se, pode dar lugar a sentimentos dificilmente confessáveis e a manobras de evitação que restringem a potência terapêutica de nossas atividades. Por isso, a referência de nosso trabalho, a perspectiva a partir da qual refletimos sobre os acontecimentos experienciados e sobre nossas intervenções e sentimentos, nas várias reuniões que costuram nosso cotidiano, é a psicanálise. Por assim dizer, é o digestivo de que dispomos. Apontando nosso fundamental desamparo, a psicanálise nos permite processar aquilo que não alcançamos compreender ou atingir.

Na realidade, é mesmo a vontade de saber, de compreender melhor o que, neste conjunto tão multifacetado de estratégias terapêuticas, opera/ou paralisa mudanças na estrutura subjetiva desses adolescentes, mudanças que são, algumas, reconhecíveis e destacáveis, outras minúsculas e inaparentes, é isso o que me leva a freqüentemente querer discutir e pôr em circulação as nossas idéias e as práticas que vamos descobrindo e inventando no dia-a-dia deste trabalho. É ainda essa mesma esperança que enseja a presente comunicação: a oportunidade de fazer circular idéias e de receber novos olhares, que costumam ter como efeito, como se sabe, permitir a dissolução de pontos eventuais de engessamento de nossa prática, pontos dos quais, no cotidiano e no sofrimento do trabalho, muitas vezes não conseguimos nos dar conta.

Encontrei a especificidade da presente comunicação, no entanto, ao deter-me no título temático desta mesa, 'As manifestações da subjetividade contemporânea na adolescência'. Deste enunciado evidenciaram-se pelo menos três campos de questões, exatamente os relativos aos três termos postos em contato neste título. Em se tratando de adolescentes com transtornos psicóticos, tanto as noções de subjetividade, quanto as de adolescência, e mesmo as idéias que temos sobre aquilo que caracteriza o contemporâneo, passam a portar a marca da interrogação e da inquietação com que essas vidas nos interrogam, às vezes da borda mesma daquilo que podemos reconhecer como humano.

Diz Jorge Volnovich, a propósito da incidência das psicoses ainda na infância, que "a psicose na criança é o fato que permite constatar o fracasso no campo da subjetivação da mesma". Para ressaltar o significado, aqui, da idéia de fato, ele nos diz ainda que, a partir de Freud, fatos devem ser considerados como sintomas e que "por conseqüência, o conjunto denominado psicoses opera como sintoma da não-humanização da criança no seu encontro com o essencialmente cultural: a linguagem.4" O pressuposto aqui é que as pessoas se formam a partir da relação com o outro, intermediada e possibilitada pela linguagem. No caso desses jovens, de modo geral nos casos graves de psicoses e autismos, algo neste vínculo primordial com o outro e com a linguagem falhou. Ora, se a realidade e as noções de eu e não-eu constroem-se nestes vínculos, encontramos problematizada a relação com a realidade e perturbada a noção de eu em sua diferença relativa ao não-eu. Trabalhar com esses jovens é, portanto, algumas vezes, testemunhar o efeito deste fracasso no próprio tempo da constituição subjetiva. Trata-se então de insistir, apostar no sujeito e na possibilidade de enlace subjetivo pela via de um trabalho 'linguageiro', quer dizer, de um trabalho que visa ao horizonte da linguagem em sentido amplo, mesmo quando as respostas parecem evidenciar apenas repetição e assujeitamento.

Pedro, um garoto autista de 17 anos, e Jane, uma menina psicótica da mesma idade, mostram as dificuldades implicadas nesta insistência, neste investimento que fazemos na capacidade significativa dos fragmentos, verdadeiros fiapos, de expressão verbal que eles manifestam. Estes jovens não habitam a palavra, melhor seria dizer que a palavra os habita de uma forma meio estrangeira. A palavra, absoluta, os atravessa, mas não pode ser apropriada por eles. Falam como se outro falasse neles. É difícil apostar no sentido e na importância daquilo que dizem. No caso de Jane, sua fala repetitiva, monótona, insistente, às vezes francamente incompreensível, parece não significar nada. As frases, repetitivas, interrogativas, compulsivas, são soltas, fora de lugar; embora compreensíveis em seus termos, são incompreensíveis em seu sentido. São expressões automáticas que nos convocam o tempo todo, mas não nos acordam, não nos remetem a uma subjetividade: são palavras que nos incitam a nada ouvir, já que ouvi-las é habitar o vazio, onde nada tem significado e a angústia domina. Optamos por resistir à tentação robótica de responder no puro automatismo. Apostamos que alguma resposta possa emergir dessa dolorosa resistência.

Pedro, em seu balanço pendular, situado sempre nas bordas, nas fronteiras da sala, da clínica, da vida, e até da humanidade, poderíamos dizer, parecia, até bem pouco tempo, posicionar-se numa recusa absoluta da linguagem humana e compartilhada. Emitia sons, que mais se assemelhavam a ruídos, ainda que melódicos. Mas... ouvindo melhor... algum de nós presta atenção... é como se um espectro falasse nele... per'aí, um dia alguém ouviu: 'fica aqui comigo'. Uma voz espectral, vinda de um fundo desconhecido e capaz de expressar uma chispa de desejo. Aquilo que parecia à mãe mera imitação de uma banda de rock metálico apreciada pelo irmão, naquela ocasião pôde tornar-se uma expressão no vínculo com um outro. A aposta na possibilidade de compreendê-lo pôde transformar barulho em palavra. Mas isso foi um átimo, num tempo infinito de repetições.

Em ambos os casos, presenciamos esse 'fracasso' no processo mesmo de subjetivação, e o presenciamos na medida exata em que fracassam nossas tentativas de comunicação com eles. Já nos usos que fazem de sua possibilidade/impossibilidade de olhar, esse fracasso se manifesta: Pedro exclui-se do nosso olhar, Jane introduz-se pelo olhar, como que a nos atravessar. Embora sejam manifestações 'subjetivas' muito diferentes, em ambos o olhar fracassa em ser uma janela da alma. Na diversidade de suas expressões, impacta-nos a inquietação reincidente: quem habita esse olhar? Pedro não é ainda uma criança, mas já se parece com um homem. Jane é uma mocinha, desalinhada, por certo; mas a sexualidade que se exala dela é anônima, não apropriada, uma sexualidade 'canina', o que se deve, em parte, ao fato de que sua casa está misturada ao canil da família e, em parte, a este estado-quase das adolescências destes jovens.

Isto permite tomar em consideração o segundo dos eixos propostos no tema de nossa mesa; eu diria que, na singularidade e no polimorfismo5 destas psicoses (e autismos), podemos reconhecer não uma adolescência, mas várias. Esses garotos adolescem de modos tão diferentes entre si, que estar com eles, juntos, pede que nos tornemos múltiplos e que multipliquemos nossas capacidades de inventar mundos. Mundos em que essas adolescências possam transitar, em que essas singularidades possam compor. Nosso saber é assim insistentemente posto em questão, frente à tarefa terapêutica com que nos defrontamos, a de habitar um mundo humano, para o que freqüentemente vemo-nos na posição de ter de reinventar o mundo ali onde ele provoca dano e nada mais. Trata-se de armar o jovem com a potência de expor-se ao mundo, o que pode ser considerado uma forma de desapassivação. Segundo Basile e André, "a desapassivação é a ferramenta apta a desatar nossas mãos diante da rede de danos em que se enredam os pequenos loucos. Rede de danos que passamos a habitar se não arquitetamos as paredes de nossos dispositivos de tratamento com a química precisa para devolver às crianças seu poder de fogo".6 As adolescências, então, trançam-se híbridas, entre um corpo adulto e um poder mínimo de palavra e enunciação, entre a curiosidade pelo mundo e a mínima autonomia, entre a potência de circulação e o medo/terror paralisante. Nossa tarefa subjetivante para esses adolesceres será a de abrir caminhos, romper paralisias, corromper o terreno das repetições e auxiliar na criação de territórios próprios.

Essa tarefa foi, de modo contundente, despertada em nós por um encaminhamento recente feito às Oficinas, de um jovem de 17 anos, em tratamento psiquiátrico, como decorrência de um surto grave de despersonalização e desrealização. Diagnosticado como esquizofrênico, o jovem vem procurar saídas e conta-nos que "tudo começou com uma profunda admiração pelo Che Guevara", admiração que o levou a querer transformar toda a sua vida, ponto por ponto, na direção de um projeto revolucionário. Um dia, entretanto, como resultado da radicalidade assumida no projeto, deixou de reconhecer-se no espelho...

Por variados motivos tenho sido lembrada, ultimamente, do filme: Diários de Motocicleta. Ora uma referência a Walter Salles me faz recordar de sua direção. Ora, uma qualquer menção a Ernesto Guevara é que me faz evocar a impressão de intimidade com o doce revolucionário estimulada no relato cinematográfico da instigante viagem pela América espanhola empreendida pelos personagens, em pleno esplendor daquela juventude. Em todas essas ocasiões, tenho reafirmado para mim mesma, sem muita precisão de sentidos, o quanto gostei desse filme. A mais extravagante dessas lembranças, no entanto, me ocorreu por ocasião desse encaminhamento.

Nós recebemos esse jovem, Danilo, com a proposta de um Acompanhamento Terapêutico que o ajude a tecer novamente as possibilidades de trânsito pelo seu mundo esgarçado. Acompanhamento que poderá constituir-se como uma talvez viagem, aqui restabelecendo circuitos possíveis para o trajeto cidadão de um jovem aspirante a músico. Ao fim e ao cabo, podemos dizer que o filme nos forneceu a metáfora fundamental desse acolhimento. (Sim, porque) Não é ele exatamente um filme sobre o Che Guevara, aquele monumento à ternura da revolução, mas é sobre alguém que só no futuro o seria; tudo se passa e é contado no 'antes das coisas acontecerem'..., em sua gestação de possíveis. Não é também, estritamente, um filme sobre a América, por mais belas e cruas que sejam as paisagens e humanidades ali retratadas. Afinal, de que trata este filme? Respondo: da amizade. Da amizade necessária para que dois homens muito diferentes se acompanhem num trajeto de recomposição e redescoberta do mundo. Isso é o que nos 'co-move' nesta narrativa. Isto é também o que nos infunde esperança no tratamento destes jovens arruinados que nosso ofício dá a conhecer. Aqui a tarefa de abrir caminhos, de auxiliar na criação de territórios onde o mundo seja possível. Mas isso não envolverá também uma necessária mudança do mundo?

Essa questão nos conduz ao terceiro tema posto em foco por esta mesa: o que, neste trabalho, pode significar o contemporâneo? Aqui talvez estejamos um pouco menos desamparados, apesar de tudo. Sim, porque neste mundo, que tem multiplicado vertiginosamente suas formas de crueldade e de exclusão, desenvolvem-se dispositivos, recursos e discursos voltados para novas formas de sociabilidade mais afinadas com uma perspectiva de inclusão do diverso e de oferta de alternativas humanas mais interessantes e menos preconceituosas para essas crianças e adolescentes. Então, com todas as dificuldades que se colocam, encontramos variadas possibilidades de parceria. Essa aposta é nossa forma de sermos contemporâneos.

O paradigma da inclusão tem hoje aproximadamente 15 anos, relaciona-se com os direitos de cidadania de crianças e jovens portadores de necessidades especiais, sendo que o direito à escola pública é um tópico incluído no Estatuto da Criança e do Adolescente. Incluído em tese, quero dizer, pois é a nossa prática e os esforços políticos e sociais neste sentido que irão realizar as transformações necessárias para que uma efetiva inclusão seja possível. Sim, pois, segundo Cristina Vicentim, fundadora do projeto Oficinas, trata-se de criar uma rede de compromissos sociais em torno desses jovens e crianças, de modo que o dano se transforme em alguma forma de potência. No entanto, esse desafio só faz sentido se, nessa convivência, os campos 'normais' são desafiados a construir outros repertórios. Durante muito tempo, estas crianças e estes jovens autistas e psicóticos estiveram confinados em suas casas, ou em escolas especializadas, às vezes verdadeiros depósitos de crianças. O novo paradigma propõe que apostemos na possibilidade de inclusão destas crianças em salas de aula com crianças normais. Embora tenhamos que reconhecer que a inclusão não é fácil, nem para as escolas, nem para as crianças, nem para suas famílias, é inegável que há ganhos em vários sentidos nesta aposta que obriga a lidar com a diversidade. O fato é que, em certos momentos, não há como não reconhecer que ela vale a pena.

Recebemos há poucos dias o encaminhamento de um jovem de 19 anos, com hipótese diagnóstica de Síndrome de Asperger, uma forma amenizada do autismo, na qual os sintomas mais acentuados encontram-se na dificuldade de estabelecer relacionamentos sociais, interpessoais e emocionais; ou por outra, nas enormes dificuldades de compreender, de fato, as regras e os sentimentos que estão implicados no convívio emocional com os outros. A linguagem e o pensamento, entretanto, costumam estar mais preservados nesses casos. Pois bem, esse jovem de 19 anos, tratado apenas por algum tempo em um hospital-dia, passa todos os seus dias em casa, vendo televisão e acompanhado das irmãs e de uma senhora que cuida dele. De seu, tem apenas uma mochila, onde junta latinhas, carregando-as consigo por onde vai. Futuro, nenhum.

Frente à notícia desse encaminhamento, com o seu prontuário em mãos, eu pensei em um dos adolescentes das Oficinas. Giba está conosco desde que tinha 8 anos, tendo chegado com uma hipótese diagnóstica semelhante. Sua história é, no mínimo, intrigante. Com 9 para 10 anos, tendo ido assistir com o pessoal das Oficinas a encenação sobre a 'Declaração dos Direitos das Crianças' ele comentou: 'toda criança tem direito à escola; por que eu não vou à escola?' Esse tempo coincidia com o nosso investimento na escolarização das crianças que estávamos tratando. De alguma forma Giba tomou para si a questão. Algum tempo depois, tivemos a notícia de que ele havia conseguido uma vaga numa escola estadual. Havia ido a uma escola perto de sua casa e, repetindo que toda criança tem direito à escola, conseguiu uma conversa com a diretora. O resultado foi que, no semestre seguinte, ele era um aluno.

Bem, pode-se perguntar, mas qual foi o nosso trabalho? O que nós, enquanto terapeutas, fizemos em relação a isso? Eu diria que pouco, mas algo fundamental. Nós sustentamos essa iniciativa e o protegemos de todas as tentativas da escola de mandá-lo embora. Nós não fomos neutros nessa questão. Ao contrário, manifestamo-nos, brigamos, fomos junto. Além disso, mantivemos e ampliamos seus espaços de trabalho clínico. Algo em tudo isso fez efeito. Hoje ele está no 3° colegial, é um jovem de quem pode-se dizer, pelo menos, que tem um futuro. Lembro-me de uma frase de Piera Aulagnier, em "Violência da Interpretação": ela diz que, se o futuro é sempre ilusório e indistinguível, a garantia de um futuro, no entanto, deve ser oferecida à criança como uma certeza não ilusória.

Penso, e isso é uma convicção: o mundo, desde que com a mínima proteção, é melhor do que a reclusão, seja em casa, seja em asilos. Melhor ainda se pudermos criar no mundo novas possibilidades de trajetos, se pudermos inventar no mundo uma possibilidade de co-existência com essas crianças e adolescentes. Nossa insistência para que esses jovens e suas famílias enfrentem as dificuldades implicadas em sua circulação pelo mundo, nossas tentativas de sustentar e estimular essa circulação têm ajudado a mudar uma pequena parte do destino deles. Mas isso tem feito diferença. Giba também traz consigo uma mochila. Carrega nela, ao invés de latas que não têm sentido para ninguém, livros, sobre os quais conversa com as pessoas com quem entra em contato. São livros de estórias e de História, seu bilhete de passagem para o mundo compartilhado. Talvez nossa aposta na chance de um futuro, dentro do mundo, faça alguma diferença nesses casos.

 

Maio/2005

 

Bibliografia

BASILE, Odelis & ANDRÉ, Simone - Fábrica de mundos: ferramentas conceituais para o tratamento das psicoses infantis. In: VICENTIM, M.C. E VIEIRA, M.C. (orgs.), Tecendo a rede: trajetórias da Saúde Mental em São Paulo 1989-1996. São Paulo, Cortez, 2000.

DIATKINE, René et al. - Psicose e Mudança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993

SAMPAIO, Camila Pedral - Projeto Oficinas Terapêuticas para crianças e adolescentes com graves transtornos emocionais. In: HERRMANN, Fabio & LOWENKRON, Theodor (orgs) Pesquisando com o método Psicanalítico, pp. 157-163, São Paulo, Casa do psicólogo, 2004

VOLNOVICH, Jorge - A psicose na criança. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993

 

 

1 Uma descrição mais detalhada do projeto encontra-se em: Projeto Oficinas Terapêuticas para crianças e adolecentes com graves transtornos emocionais. IN: Herrmann, Fabio & Lowenkron, Theodoro (orgs) Pesquisando com o método Psicanalítico, pp. 157+163, São Paulo, Casa do psicólogo, 2004. Aqui prefiro referir-me só brevemente às Oficinas como dispositivo, para centrar-me nas questões suscitadas pelo trabalho com os adolecentes.
2 Diatkine, Rné et al. (1991). Psicose e Mudança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993, p 51.
3 Ibidem, p. 56.
4 Volnovich, Jorge. A psicose na criança. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993,p.89.
5 Ibidem, p. 93.
6 Basile, O. & André, S. Fábrica de mundos: ferramentas conceituais para o tratamento das psicoses infantis. In: Vicentim, M.C. e Vieira, M.C. (orgs), Tecendo arede: trajetórias da Saúde Mental em São Paulo 1989-1996. São Paulo, Cortez, 2000.