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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Construção de valores sócio-morais na cultura, e suas formas de discriminação da adolescência

 

 

Clary Milnitsky-Sapiro, Ph.D.

Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional -UFRGS

 

 

Venho falar hoje, desde um lugar acadêmico como pedagoga que pesquisa e intervém na área de adolescência e construção de valores há mais de dez anos. E esta "área" de trabalho nos convocou a uma construção interdisciplinar para estudar e analisar as concepções e práticas das Políticas Públicas para a adolescência na atualidade além de obviamente buscar uma melhor compreensão deste processo na cultura contemporânea.

Cabe salientar que o atravessamento da interdisciplinaridade pelo estudo da construção de valores sóciomorais, a descrição etnográfica de cada contexto, e a leitura das singularidades dos adolescentes na cultura –provoca, freqüentemente, considerações (talvez negativas) de que esse espaço de construção de conhecimento não tem um lugar definido e que necessita reafirmar-se constantemente – um pouco como a própria adolescência. O que renova esse espaço é o reconhecimento tácito, mas cada vez mais veemente, da inviabilidade de uma única leitura teórica, e da necessidade de construção de uma linguagem comum que não reduza ou ameace outras perspectivas, mas que sustente as interpretações possíveis das narrativas adolescentes.

A partir então, da definição desse lugar acadêmico "entre espaços determinados" venho discutir a construção de valores sócio-morais na cultura e suas formas de discriminação da adolescência.

Começo sugerindo que se "Viver é afinar um instrumento... de dentro pra fora... de fora pra dentro" (como cantou Walter Franco, em "Serra do Luar"), o processo adolescente caracteriza-se mais do que tudo, pela falta de sintonia e pela busca de afinação.

Muito se tem escrito acerca da banalização da violência e da flagrante incidência de atos violentos na adolescência. O desafio que me propus a aceitar aqui, foi de explicitar as relações subjacentes entre formas de discriminação da a adolescência na contemporaneidade, e formas de violência, analisando essa discriminação não manifesta como "disparadora" de atos violentos pelos adolescentes.

Tomarei a discriminação do adolescente como metáfora e assim, abordarei a questão sob dois prismas: - o primeiro, à luz da exaustivamente analisada apropriação da imagem adolescente como modelo e objeto de consumo indiscriminado, colocando o "ser jovem" em "tudo e todos"; e, portanto, "em lugar algum", e a conseqüente opacidade dessa imagem, que acarretou a perda do espaço simbólico para esse processo de subjetivação.

O outro prisma constitui a discriminação dos adolescentes identificados como "em situação de risco", público-alvo dos Programas de Políticas Públicas. Em relação a esses jovens marginalizados - impedidos de usufruir benefícios mínimos da sociedade – tenho constatado que, embora acolhidos em diferentes Programas de Atenção à Criança e ao Adolescente, eles são rotineiramente discriminados pelo enquadre e alijamento de suas singularidades nas concepções desses programas e suas conseqüentes práticas. Assim, tomo essas duas faces da discriminação social da adolescência para considerar possíveis implicações da produção de conhecimento acerca desse processo, visando problematizar as suas práticas institucionais.

Abordarei essa temática apoiada, principalmente, na minha área de especialização, que é desenvolvimento sociomoral e construção de valores na contemporaneidade, e suas intercessões com a adolescência.

Primeiramente, entendo que esse apagamento dos contornos do processo adolescente na sociedade contemporânea remete a um exemplo adulto de não-alteridade – de exclusão da existência do outro, resultante do desmantelamento de valores antes estruturantes, que agora não podem mais suprir as demandas da condição humana. Esse desmonte deixou um enorme vazio que é insaturávelmente preenchido com a oferta de produtos obsoletos, uma infinidade de marcas, cores e slogans que descomprometem vínculos e idades, incluindo corpos e acessórios.

Assim, contrariamente aos valores instituídos como intrínsecos aos sujeitos; os valores produzidos na cultura retiraram o investimento na arte de "ser no mundo" voltando-se avidamente, para o "estar no mundo" através de objetos de alta rotatividade, como se foram constituintes dos sujeitos.

Procurarei não ser redundante e não me ater às descrições sobre "passagens ao ato" como expressões de inconformidade dos adolescentes frente à opacidade desse processo, e a conseqüente busca de limites seguros diante da ausência da lei; proponho aqui, uma análise da própria evanescência da condição adolescente no social como uma forma de discriminação, e pergunto se não nos cabe uma ação propositiva – dado esse caráter discriminante – para além da análise da descartabilidade na cultura.

Mesmo que se entenda hoje, a adolescência como uma invenção da contemporaneidade, não há como sustentar uma negação de que as mudanças fisiológicas e hormonais proclamadoras da puberdade demarcam características de um tempo (mesmo breve) "entre" um lugar infantil e um lugar no mundo adulto, e que a contemporaneidade tem caracterizado a ausência desse (entre) lugar. Reconhecemos ainda, que o processo adolescente eclode, embora preso e marcado pela história do sujeito no seu contexto social, e pelo momento histórico e cultural que compõem o pano de fundo e palco desse lugar.

Assim, o processo de subjetivação adolescente manifesta um mal-estar denunciando através de um corpo-com-dor que há muito não percebe esse contexto como "pano de fundo", mas como uma grande teia pegajosa, onde, ele, refém desse palco vivo, está prestes a ter sua singularidade sugada e transformada em mais um produto que nutrirá essa teia. Como se, um processo biológico de assimilação e acomodação (ilustrado talvez pela digestão) venha a coloca-lo no "seu devido lugar". Quer seja do "bem" (como adaptado), quer seja do "mal" (como excluído).

Diferentemente da atualidade, as figuras parentais de gerações anteriores sustentavam seus valores conservadores através de ações adultas autoritárias ou punitivas, mas deixavam um espaço simbólico para o processo de identificação quer apoiado no realismo moral – contra a hipocrisia moralista, "do faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", quer no idealismo, pela busca de construir "um mundo mais justo e humano", ou ainda, pelo "simples-não tão simples" desejo de ser diferente dos pais adultos. Mas, nesse tempo, que parece normativamente tão distante, havia alguém com uma cara definida como anteparo, e havia um espaço para a elaboração dessa diferença. Atualmente, essas referências e domínios – por razões bem conhecidas entre nós - evanesceram no ar. E isso, é apenas uma constatação.

Podemos argumentar que esses movimentos de "entre ato" sempre existiram, e o que mudou foi o nível de violência explícita na sociedade e o acesso fácil às drogas e às armas letais. Que foi somente uma questão de "evolução instrumental e geracional" - da pedrada ao tiro, da maconha ao crack, e ao ecstasi. A pergunta difícil a ser feita então, é: Quem se responsabiliza por essa oferta no social e propõe revisões para além da leitura crítica?

A preocupação que busco compartilhar refere-se aos limites da leitura psicanalítica já incorporada e muitas vezes banalizada nos discursos, ou ainda pior, normalizada na mídia, frente ao desafio pedagógico de interface com outras disciplinas, nos comprometendo com perspectivas propositivas, o que conseqüentemente, convoca a todos a uma concepção de sujeito adolescente a partir de um olhar e uma abordagem complexa e interdisciplinar, mas integrada. Entendo que a ausência de uma compreensão integradora do adolescente na cultura e nas práticas institucionais o faz duplamente vulnerável, tanto pelas características inerentes ao seu processo, quanto pelas formas de discriminação que lhe são impostas.

Cabe aqui, lembrar as palavras do Diretor do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Sarajevo, Dino Abazovic1 durante um seminário, para a organização de um livro do qual participamos, acerca da violência perpetrada contra e pelos adolescentes e o que nós, pesquisadores, psicólogos, e educadores, de países diversos, podemos dizer e fazer a respeito. Na ocasião, o Prof. Abazovic manifestou sua preocupação em relação às conseqüências da violência da guerra. Disse ele: "se não nos organizarmos para mudar as escolhas, oferecer outros caminhos no social para além da anestesia das drogas e da falta de referências, em favor dos adolescentes vitimados pelos horrores que enfrentaram no terrível conflito da região dos Bálcãs, - que seja por egoísmo, façamos esse esforço por nós, pela nossa própria sobrevivência enquanto nação, já que estes, constituem a maioria numérica dos sobreviventes, e nosso futuro depende deles".

Certamente, essa convocação, devidamente contextualizada, mobiliza cada um de nós e nos leva a questionar o que significam em nosso tempo presente, as singularidades, a integridade física, o outro como um ser moral, o tempo de "afinar" esse instrumento que é a própria vida, "de dentro pra fora, de fora pra dentro". Não há esse tempo. Violência é o presente, e é um valor a se ostentar. Esse fato irrefutável indica também que os jovens não têm sido vitimizados somente, mas têm reproduzido a violência de que são vítimas, submetendo à mesma condição, um contingente muito amplo da sociedade. Qualquer mídia escancara o fenômeno social da violência adolescente que está afetando múltiplos segmentos do coletivo, onde os atos podem variar desde o vandalismo urbano, a execução de colegas e mestres na instituição escolar, ao parricídio na instituição familiar.

Já se discutiu em outros fóruns o significado dessas ações como busca de visibilidade, acting-out e pedidos de limite; incluo a violência como forma de resistência à discriminação do processo de subjetivação do adolescente pela cultura.

O outro prisma que me propus a discutir refere-se à discriminação do adolescente que sofre uma discriminação anterior àquela que analisada através das lentes do consumo e da descartabilidade. Falo agora, do adolescente identificado como vulnerável, e em situação de risco pelos Programas de Políticas Públicas. Para justificar essa posição é oportuno citar um estudioso na área de Políticas voltadas para a Criança e o Adolescente. Registrou Vicente de Paula Faleiros no capítulo "Infância e Processo Político no Brasil":

"A história das políticas e da infância neste trabalho, é vista na dinâmica própria das relações entre os agentes e forças sociais e políticas que se aglutinaram ou confrontaram em diferentes momentos históricos a partir da proclamação da república. Trata-se em realidade, de um processo contraditório complexo, sem que possa ser reduzido a uma linearidade ou evolução. Destaca-se mais propriamente um embate de questões que vão se configurando de acordo com o contexto sócio-econômico, às idéias e teorias em movimento, às forças políticas em presença, a forma de Estado em vigor".

No meu entender, esse parágrafo, além de expressar uma realidade processual2 e histórica, denota a ausência do sujeito criança ou adolescente enquanto ator, visto que este é posto à margem da sociedade e à margem de si mesmo como objeto à deriva no embate de forças políticas cujas atribuições de responsabilidade estão sempre no "outro" (outro órgão, outro poder, outro profissional), como uma infindável "dança das cadeiras", onde quem perde o lugar é sempre a criança e o adolescente.

Parece então imperativo propor uma revisão do lugar do adolescente nos Programas de Políticas Públicas visando superar a discriminação de sua singularidade e de suas necessidades frente aos conflitos de competências, de atribuições e de interesses daqueles que detém o poder de articulação dessas políticas.

Ao mencionar esses tipos de conflitos característicos dos Programas de Políticas Públicas, cito o Secretário do Meio Ambiente em uma entrevista radiofônica sobre a poluição da água. "Vejam só, - disse ele -quando um rio atravessa mais de um Estado da Federação a responsabilidade é federal, porém, o que ocorre com a qualidade da água dentro de um estado, bem como as medidas tomadas, passa a ser Estatal, e se tem um afluente em um município, a responsabilidade é municipal. Cada instância atua conforme a sua legislação, suas competências e diferentes atribuições. Instâncias essas, ainda intermediadas por contratos e interesses político-partidários. E somos nós, enquanto cidadãos, que tomamos a água"

Exatamente, assim, o adolescente em situação de risco é o depositário do que sobra, isto é, é o excluído que perde seu espaço de sujeito e de cidadão, diante dos conflitos de competências, atribuições e de interesses. Uma vez exposta a situação, volto a recorrer à abordagem interdisciplinar para pensarmos algumas das múltiplas situações de vulnerabilidade do adolescente submetido a essas políticas e pontos importantes para a revisão dessa configuração discriminatória.

Para essa nomeada vulnerabilidade destaco que os Programas de Políticas Públicas ainda não dão conta de um acolhimento que seja transitório sim, mas na medida da necessidade de cada adolescente; e que tenha uma estrutura que o sustente afetivamente para que ele possa estabelecer vínculos, (posto que todo lar é transitório) e se reconciliar com a sociedade (Winnicott, D. W., 1987); que coloque limites de contenção a partir de carências mais veementes mantendo a possibilidade de reparação.

Prosseguindo na análise de fatores não manifestos que podem estar contribuindo para uma falha na elaboração dos processos identitários envolvendo a construção de valores sóciomorais, penso que em parte, esse fracasso se deve justamente à visibilidade do risco potencial que esses adolescentes oferecem para a sociedade. O adolescente identificado como em situação de risco assim o é, antes, para o social, diferentemente do adolescente que tem referências institucionais estáveis (casa, escola, religião, por exemplo). E a sociedade mantém o seu débito com esses jovens "riscados", enquanto estes, cobram o que lhes é de direito através do ato violento, justificando e exacerbando essa discriminação.

Buscando agora concluir, retomo a questão da violência do adolescente em situação de risco como forma de reivindicação de reconhecimento citando Winnicott, em seu livro: "Privação e Delinqüência", cujo teor nos reporta também à fala do colega Dino Abazovic da Universidade de Sarajevo, quando ambos marcam a importância de figuras adultas capazes de gerar as filiações possíveis. Diz Winnicott (1987):

"Só quando a figura paterna segura e forte está em evidência, é que a criança –ou adolescente recupera seus primitivos impulsos amorosos, seu sentimento de culpa e o desejo de adequar-se. Ao menos que caia em dificuldades graves, -que o alertem e o suportem - o delinqüente só poderá sentir-se cada vez mais inibido no amor, e por conseqüência, mais deprimido e despersonalizado, acabando finalmente, por tornar-se incapaz de sentir a realidade das coisas, exceto à realidade da violência".

"A criança anti-social –continua Winnicott em outro capítulo - está meramente olhando um pouco mais longe, para a sociedade, em lugar de sua própria família ou escola, na procura de estabilidade para superar as primeiras as falhas nas fases essenciais da sua vida emocional".

Como os demais autores, vemos aqui, que a violência na adolescência, indica que a esperança de alguma forma ainda se mantém, e que o comportamento anti-social na maior parte das vezes, não passa de um pedido de socorro – para que o jovem receba o acolhimento que lhe foi impossibilitado antes. E que, se não é possível acolhê-lo através de uma figura parental forte, e afetiva, que cada instituição busque essa configuração através do investimento interpessoal.

Superar a discriminação não manifesta desses Programas de Políticas Públicas parece constituir um elemento crucial para possibilitar práticas institucionais mais condizentes às necessidades desses jovens. Diria, que dispomos de material suficiente para estabelecer alguns critérios para concepção e práticas de inclusão de crianças e adolescentes identificados como "em situação de risco" em Programas de Políticas Públicas. O primeiro, seria a constituição da imagem de uma figura de referência adulta através de uma equipe coerente – no sentido de ações interdisciplinares - onde todos integrassem esse "um" da referência simbólica – através do limite, do acolhimento, do cuidado com a saúde, a educação e o lazer, sobretudo, que essa equipe venha a ser capacitada antes –como estágio de formação - orientada para uma interlocução congruente em seus procedimentos, enfoques terapêuticos e educacionais, com base em princípios supradisciplinares mirando o adolescente como um ser inteiro e singular.

Esse lugar institucional que deverá ser suficientemente estável para suportar e conter "os testes" desses adolescentes oferecendo possibilidades de socialização para além dos registros, funções, escalas e rotinas, ou por reuniões para discussão de casos; deve propiciar aos profissionais uma capacitação anterior que sistematize, afine o foco dos diversos olhares, propiciando uma visão rica e complementar, e que, primordialmente potencialize essa função simbólica através de uma mesma conduta e linguagem. Essa função paterna, - que é função na medida em que é simbólica, e implica uma posição de terceiro, de outro, e requer uma linguagem como compartilhamento, ampara o sujeito (na sua subjetividade) e no coletivo.

É sabido que essa atenção às necessidades de saúde, apoio psicológico, educação e lazer tem se fragmentado nas práticas do cotidiano institucional deixando escapar assim, possibilidades ímpares de ações efetivas e, mais gratificantes para todos envolvidos nesses cuidados.

Concluo a minha participação lembrando que, apesar das dificuldades em se levar adiante uma ação verdadeiramente interdisciplinar, a inclusão de novos saberes e perspectivas modifica e enriquece reciprocamente cada disciplina, e, acima de tudo, vem colocar o adolescente como sujeito e protagonista desse processo, propiciando que esse deixe de ser "o público" e "o alvo" – para ser singular, embora pertencente a um grupo discriminado na sociedade. E que não se percam mais os adolescentes vulneráveis nos conflitos de atribuições e de competências, apesar dos bons propósitos de todas as instâncias.

Ainda, se temos tão evidente pelos trabalhos apresentados anteriormente que as manifestações adolescentes sugerem a ausência desse diapasão que lhes possibilitem "afinar" suas vidas buscando uma sintonia entre o "dentro e o fora", cabe a nós, enquanto adultos, prover uma sonoridade possível para que os nossos jovens "em situação de risco" possam estabelecer vínculos e assim compor suas próprias melodias.

 

 

1 Public education and sicial reconstruction in Bosnia-Herzegovina and Sarah Freedman , Dinka Corkalo, Naomi Levy, Dino Abazovic, Bronwyn Leebaw, Dean Ajdukovic, In My Neighbor, My Enemy, Justice and Community in the Aftermath of Mass Atrocity, Ed. Stover, E. University of California, Berkeley
2 "História das Politicas Sociais, Da Legislação e da Assistência à Infância no Brasil" em 1995 por Francisco Pilotti e Irene Rizzini.