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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

As formas da contestação juvenil, ontem e hoje: onde, quem, como? Três hipóteses para uma pesquisa

 

 

Flávia Schilling

 

 


RESUMO

A análise centrar-se-á na problematização das "formas de contestação juvenil", um dos eixos temáticos desta mesa. Esta problematização percorrerá um eixo histórico, com uma primeira reflexão sobre o lugar "revolucionário" dado/ ocupado pela juventude nos anos 60 e os deslocamentos ocorridos nas décadas seguintes. Trata-se de resgatar a ambigüidade e a ambivalência como categorias centrais para a compreensão das formas resistência/ conformismo, contestação/ reprodução de uma determinada ordem das coisas. Neste marco, é possível perceber práticas de contestação/ reprodução em lugares inusitados, sempre parciais e fragmentadas, nem por isso menos potentes ou portadoras de possibilidades. Alguns lugares da contestação atual, pouco reconhecidos como tal, é o da crítica às segregações múltiplas a que estamos submetidos, da luta pela apropriação do saber e o da recusa ao estatuto da tutela. O eixo central destas formas de contestação está na recusa à fixação dos jovens em identidades construídas pela mídia, pelo discursos acadêmicos, pelas agências de controle social.


 

 

Mesa: Cultura e Arte Popular. As formas de contestação juvenil.

 

A modo de introdução: a perspectiva e o lugar da análise

Gostaria de iniciar este debate, problematizando o lugar de nossas falas, falas peritas, falas de especialistas. Nós, aqui estamos, falando "sobre" um sujeito que não está aqui. Nós o estamos construindo como sujeito, o re-apresentando. Como ele – este sujeito adolescente - aparece, quando olhamos para as discussões dominantes sobre o tema? Como um problema? Os temas que aparecem como dominantes, em muitos encontros, são: violência, infração, pobreza, drogas, gravidez na adolescência (o único lugar das meninas, aparentemente). Pode-se perguntar: quando o adolescente, o jovem é um problema, ou quando se constitui em um problema? É possível perguntar-se se ele (ou ela) é um problema por ser adolescente ou por ser pobre? Estamos aqui discutindo a adolescência ou a pobreza, a falta de políticas de distribuição de renda, de trabalho, de perspectivas de um outro lugar para o país que não o de país exportador de renda?

Talvez, esta é uma hipótese, falamos, o tempo todo, sobre desigualdade social, deslocando-a, transformando-a em uma questão cultural. Este é um deslocamento muito característico de nossos tempos, deslocamento quase dominante nas análises contemporâneas sobre "questões sociais".

Novamente, porque o adolescente seria um problema? Convivo com adolescentes e estes não são problemas. Este movimento a que me refiro – de deslocamentos e de construção de uma questão como um problema social -, acontece, por exemplo, também, em seminários ou simpósios que falam sobre imigrantes: os imigrantes, são um problema ou são uma solução? O mesmo acontece quando falamos sobre diversidade étnica ou racial: porque esta diversidade – marca do Brasil – seria um problema?

Quem fala e de onde se fala, esta é a questão, que faz com que uma situação seja vista como um problema ou uma solução.

Retomando as idéias foucaultianas sobre como nos conformamos como sujeitos em relações de objetivação/ subjetivação, nos constituímos como sujeitos pelos saberes das ciências sobre nós-mesmos, pelas práticas divisoras nas/das instituições com seu jogo constante de classificações e sua correlata produção da ambigüidade, e pelo nosso movimento de adesão – confissão – a estas produções.

Desta forma, uma análise sobre "formas de contestação", ou "práticas de resistência" não pode acontecer sem levar em consideração estas relações de objetivação, de saber/ poder, os jogos de verdade em que estamos inseridos. (Foucault, 1995: 232)

Diz Foucault, ainda no texto em questão, O sujeito e o poder, (1995), que as lutas atuais são contra as formas de poder que nos faz "indivíduos sujeitos": sujeitos a alguém pelo controle e dependência, presos a nossas identidades pela consciência ou auto-conhecimento (ibidem, p. 235). São lutas, desta forma, contra aquilo que nos faz "sujeitos a", que tentam, de alguma forma, nos devolver a condição de "sujeitos de"– uma ação, por definição, livre.

Quais são as características das lutas contemporâneas, no face-a-face com as relações de poder/saber?

São lutas transversais, que percorrem diversos países, em diálogos imprevistos, constituindo redes de lutas específicas; seu objetivo são os efeitos de poder enquanto tal, conformando-se como lutas imediatas (anárquicas) sem um telos, como nas lutas do século XIX ou até a metade do século XX. São lutas, desta forma, que criticam tanto uma idéia de evolução ou destino histórico como seu encaixe em um plano ou projeto societário maior. Seguindo, ainda, Foucault, estas lutas questionam o estatuto do indivíduo. Tanto afirmam o seu direito de ser diferente como atacam tudo o que separa o indivíduo, quebra sua relação com os outros, o liga à própria identidade de modo coercitivo. São lutas que comportam uma oposição aos efeitos de poder relacionados ao saber, à competência. São lutas contra os privilégios do saber, são uma oposição ao segredo. Questionam as relações saber- poder. São lutas que acontecem em torno do estatuto da verdade. Sintetizando, se desenvolvem em torno de uma questão: quem somos nós? São uma recusa às abstrações geradas no estado de violência econômico e ideológico, que ignora quem somos individualmente, e também uma recusa de uma investigação científica ou administrativa que determina quem somos. (ibidem, p. 235)

Estas lutas contemporâneas, centralmente lutas contra a submissão da subjetividade, não podem ser isoladas das lutas contra as formas de dominação (étnica, social, religiosa) ou contra as formas de exploração (econômica).

Estas lutas, que analisamos, acontecem em relações de poder/ saber que, para Foucault são da ordem do governo: governo de si, das famílias, das almas, das coisas. Acontecem em relação de tensão permanente, com resultados precários, misturando aceitação e recusa, conformismo e resistência, de formas peculiares, sem vencidos nem vencedores totais ou previstos. (idem, 244) Porém,

"dizer que não pode existir sociedade sem relação de poder não quer dizer nem que aquelas que são dadas são necessárias, nem que de qualquer outro modo o "poder" constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontornável; mas que a análise, a elaboração, a retomada da questão das relações de poder, e do ‘agonismo’ entre relações de poder e intransitividade da liberdade, é uma tarefa política incessante; e que é exatamente esta a tarefa política inerente a toda existência social". (Foucault, 1995: 246)

Este é um dos lugares possíveis para pensar como este sujeito – adolescente – talvez negue este lugar de "problema social", como contesta as formas dominantes que o ligam como sujeito a determinadas formas de subjetivação, contesta, no face-a-face das relações de poder / saber, formas de sujeição. Cabe, novamente perguntar: o que é contestação? A quê / a quem se contesta? O que seria contestação hoje? Onde estariam os lugares possíveis da contestação juvenil?

 

Contestação: emergência

Contestar- em espanhol - quer dizer responder. Quer dizer responder a alguma pergunta, ou, quem sabe, tentar uma nova resposta à pergunta que se repete em todos os tempos, e de maneira tão central nos tempos modernos: é assim que queremos viver? Esta é a única forma possível de viver? O que é esta sociedade e esta é a única sociedade possível?

O termo "contestação" adquire sua força em 1968. Adquire visibilidade, torna-se parte do léxico comum. É óbvio que sempre existiu a "contestação", a tentativa de construir novas respostas, em todos os tempos. Porém, para que cobrasse o seu sentido atual, as lutas juvenis de 1968 tiveram uma grande importância.

Dizia-se, naquele então: não queremos viver como nossos pais (que foram à guerra). Queremos que a imaginação tome o poder – para pensar outra sociedade. Não queremos ser o futuro da nação (os novos soldados, para as novas guerras): queremos ser o presente da nação, ocupar o presente. 68 mescla, de maneira peculiar o ethos da modernidade e pré-anuncia o que vivemos hoje, em alguma modernidade radical ou pós-modernidade. Lutas transversais, face-a-face com os regimes de verdade e poder, telos revolucionário, projetos coletivos, projetos comunitários e individuais.

Pensando, portanto, na origem das "formas de contestação juvenis", em 68, vemos um momento de "jovens na rua". Não jovens "da rua" – marca da adolescência, da juventude, dos anos 80 a hoje.

Penso em um artigo que escrevi em 98, nos 30 anos de 68, que chamei de "A adolescência sem solidão".1 Relato, neste artigo, um momento de emergência da juventude na cena, não na cena "criminal" – Juventude Transviada - , mas na cena política e pública e, por isso mesmo, posteriormente criminalizada e violentamente reprimida.

Haveria muito a dizer sobre esta emergência – como se dá, de que formas contraditórias acontece, sempre parcial e, simultaneamente, global, como a maioria assiste – sem participar - o entusiasmo da revolução, assiste e não participa, como muito muda e muito permanece, como se prolonga este breve tempo revolucionário no tempo, como são múltiplas as respostas (contestação) às demandas de mudar a vida e mudar a sociedade. A consigna de "mudar a vida", apresenta-se como mais vitoriosa e duradoura; a de "mudar a sociedade", apresenta-se como insuportável e é combatida.

Naquele momento, as duas proclamas andavam juntas, naquele momento de emergência das "formas de contestação juvenis". Tratava-se da politização das formas de viver e da ocupação pública da rua. Sem solidão porquê? Não estou pensando, quando falo da adolescência sem solidão, de uma solidão privada. Ou de uma solidão superada por políticas de identidade. Falo de uma dimensão pouco lembrada dos movimentos juvenis, que continham uma proposta societária geral, para todos, com todos. A briga é pela universalização de direitos. Pouco lembrado hoje, Martin Luther King pode servir como exemplo para esta tendência. As lutas dos estudantes, dos movimentos, diziam de "Terra para todos, pátria para todos". É o momento das lutas pelos direitos civis iguais. Os termos fortes eram: todos e igualdade. Penso, e este é um aspecto pouco falado daquele momento, que a contestação juvenil, quando emerge, é anti-segregacionista, é universalista, igualitarista, significava quebrar os grupos, quebrar as separações: homens e mulheres, brancos e negros, operários e estudantes. Trata-se de um movimento anti-segregacionista. A juventude emerge, mas como uma força aglutinadora de propostas de mudar a vida e a sociedade para todos. Com todos.

A partir daí constrói-se o sujeito juventude – adolescente – como contestador, portador de novas respostas para antigas questões. Este é o imaginário que emerge, acompanhado pela idéia de que é preciso controlar esta força: daí a visão sobre este tempo "juventude" como um problema, como uma questão social. Esta visão, claro, depende de quem fala e qual é o seu lugar na disputa.

 

Contestação, hoje: hipóteses

Hoje há uma grande invisibilidade em torno, não apenas da figura do jovem como contestador, mas da própria possibilidade de contestação. Há um lado interessante nesta invisibilidade: em princípio, não há uma classe, um grupo, uma categoria destinada a salvar ou transformar o mundo. A quem compete salvar o mundo? A todos, novamente, em todo o caso. Ninguém é condenado a ser contestador ou salvador do mundo, transformador, a priori , de uma sociedade ou das formas de viver. Creio que esta invisibilidade, por outra parte, não é fruto da imaginação: há dificuldade em ver qual seria o lugar ou os lugares da contestação atual. Há dúvidas sobre quais seriam as respostas pois, talvez, não existam mais perguntas a serem feitas, não se pergunta mais que sociedade é esta, ou, se poderia ser diferente.

O que temos é uma grande maioria de jovens – silenciosa – que luta para conquistar o seu lugar no trabalho e na vida adulta, assim como nossos pais e avós fizeram. Que querem passar rapidamente por este período de "suspensão" que é a adolescência ou juventude. Isto aparece tanto entre jovens de classes médias como entre jovens de classes populares. Se há os que permanecem fixados nesta "irresponsabilidade social", estes são uma minoria: a maioria, desesperadamente, tenta uma integração – e a questão que se coloca é a de "ser algo na vida": inclusive, se não houver outras alternativas, ser mães. Esta é uma possibilidade para pensarmos o crescente número de meninas que engravidam na adolescência. Hesitaria em chamar esta maioria de "conformista". Aí há luta. Luta árdua Quero recordar que não há possibilidade de pensar em um "pura contestação" ou um lugar da "grande recusa". Há formas ambíguas e ambivalentes, permeadas por resistência e conformismo, lutas e contestações parciais, locais, transitórias.

Ambigüidade não é falha, defeito, carência de um sentido que seria rigoroso se fosse unívoco. Ambigüidade é a forma de existência dos objetos da percepção e da cultura, sendo, elas também, ambíguas, constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas que(...)somente serão alcançadas por uma racionalidade alargada, para além do intelectualismo e do empirismo. (Chauí, 1987:123).

Temos grupos que – em torno de políticas de identidade culturais, raciais ou sexuais – inventam formas de viver. Punks, rappers, pagodeiros, funkeiros, skatistas...em torno de marcas, objetos, estilos. Formam grupos segregados de diferentes formas: grupos masculinos, territoriais. Sempre pergunto: onde estão as meninas? Estudando, conquistando espaços de poder? E os meninos? Brincando? Tentando também, desesperadamente ser alguém na vida, ser visto, ser vistoso. Pois a adolescência – a primeira juventude – é um momento de intensa invisibilidade social. Compondo tessituras que podem ser consideradas, novamente, marcadas pela ambigüidade:

Talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade que o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob dominação.(Chauí, 1987:124)

Não há, hoje, de fato, propostas fixas ou gerais sobre formas de viver e mudança social que possam orientar formas de contestação. Não lamentamos este fato: há invenções constantes e deslocamentos. Partindo da proposta foucaultiana, pode-se afirmar que as formas de contestação juvenil de hoje organizam-se a partir da recusa à fixação nas identidades produzidas pela mídia, pelo nosso discurso acadêmica, pelas instituições que gerem a pobreza e a delinqüência.

Formas de contestação com limites claros por sua condição de prática e lógica em dominação (sob, sobre, dentro da), reveladoras de uma

consciência que opera com paradoxos, porque o real é tecido de paradoxos, e que opera paradoxalmente, porque tecida de saber e de não-saber simultâneos, marca profunda da dominação. A consciência trágica, em seu sentido originário, tal como revelada pela tragédia grega, não é aquela que se debate com um destino inelutável, mas, ao contrário, aquela que descobre a diferença entre o que é e o que poderia ser e que por isso mesmo transgride a ordem estabelecida, mas não chega a constituir uma outra existência social, aprisionada nas malhas do instituído. Diz sim e diz não ao mesmo tempo, adere e resiste ao que pesa com a força da lei, do uso e do costume e que parece, por seu peso, ter a força de um destino (Chauí, 1987:178).

 

Hipótese 1

Se o dominante hoje é a segregação2 – cada um precisa encontrar o seu grupo e se organizar em torno de uma identidade racial, étnica, religiosa, etária – pode-se encontrar formas de contestação juvenil ou, tanto faz, formas de contestação – nas ações que recusam a segregação, que buscam o diálogo entre gerações, entre classes, entre diferentes. A contestação não está em ser diferente: está em saber conviver com o diferente, em aproximar-se, resguardando sua diferença sem anulá-la (nem matá-lo), para encontrar, quem sabe, novas formas de viver em sociedade e mudar a sociedade. O dominante? A vinculação a um grupo e pensar, antes de tudo, como membro de um grupo, como pertencendo a uma comunidade. Este é, segundo Todorov, o fim da política, por conta da "mixofobia" contemporânea.

Trata-se de um complexo movimento, em construção em um "face-a-face" com o mandato dominante que proclama: "segreguem-se". Mandato este que substitui, hoje, o antigo mandato: "agreguem-se", dissolvam-se nos braços da homogeneidade nacional. A recusa à segregação, hoje, não é dissolver-se: é poder estar com um outro, juntos, pensando algum projeto maior. É deixar de ver o outro como fonte de todo mal, o outro como sujeito pleno de um grupo cultural e o outro, como alguém a tolerar. (Duschatzky/ Skliar: 2001).

É, principalmente, recusar a fascinação pelo "nome de um". É recusar, simultaneamente, a fascinação pela fragmentação e pelo isolamento. Existe ainda um caminho possível de ser transitado que parta da fascinação do "nome de um" para o "todos uns"? Esta é a pergunta, central em nossos dias, brilhantemente trabalhada por Lefort:

Pois afirmar que o destino dos homens é de ser não todos unidos, mas todos uns, é trazer a relação social para a comunicação e a expressão recíproca dos agentes, acolher por princípio a diferença um outro, fazer entender que ela só é redutível no imaginário e, no mesmo movimento(...) denunciar a mentira dos governantes que fazem da união de seus súditos ou da dos cidadãos o signo da boa sociedade. (Lefort, 1986:144)

É exercitar a difícil arte da tradução, da tradução do privado em público e vice-versa, da demanda do grupo que me contém e identifica àquelas de algum outro grupo, não mais ameaçador e perigoso, mas capaz de formular projetos comuns.

Esta é a primeira hipótese, sobre um dos lugares possíveis para encontrar a contestação nos dias atuais.

 

Hipótese 2

Se o mandato dominante hoje é: "distraiam-se!", "divirtam-se!", pode-se pensar que as formas atuais da contestação juvenil – e de todos - estão naqueles que se apropriam do conhecimento, que percebem o papel central do conhecimento na sociedade. O seu poder inigualável. Pode ser pensada, em oposição à percepção do mundo como incompreensível, opaco, inapreensível, no esforço para compreender o jogo, e suas regras, como o mundo opera: para operar no mundo (em contraste a ser "operado" por ele) é preciso entender como o mundo opera.(Bauman, 2001: 242)

As formas de contestação, existem, pois não é pensável um mundo onde não se ofereçam novas – ou re-visitadas – respostas às perguntas. Hoje, parecem estar em novos lugares, não naqueles necessariamente incentivados pela mídia ou pelas políticas públicas. Se dão em torno das uniões – imprevistas – e do saber. Bauman, citando Bourdieu, comenta os efeitos destas lutas pelo saber sobre o mundo:

"Tornar-se consciente dos mecanismos que fazem a vida penosa, mesmo impossível de ser vivida, não significa neutralizá-los; trazer à luz as contradições não significa resolvê-las". E, no entanto, por mais céticos que possamos ser quanto à eficácia social da mensagem sociológica, não podemos negar os efeitos de permitir que aqueles que sofrem descubram a possibilidade de relacionar seus sofrimentos a causas sociais; nem podemos descartar os efeitos de tornarem-se conscientes da origem social da infelicidade "em todas as suas causas, inclusive as mais secretas" (Bauman, 2001:245).

Novamente, o desafio é pensar a arte da tradução. A luta acontece, nesta arte da tradução, em definir quem traduz a quem (ou quem representa a quem) e através de quais significados políticos. (Duschatzky/ Skliar, 2001:122). Esta é uma disputa política central, em torno da subjetividade, de recusa à submissão às sujeições. Se a sociologia revela-se, para Bauman, imprescindível por ser auxiliar fundamental na tarefa de entender como o mundo opera e para a tradução do privado para o público, a educação tem um lugar primordial. Talvez sem ordem pré-determinada, sem rumo – alguma vez o teve?- mas cumprindo com sua generosa tarefa de "colocar à disposição". Sem saber, a priori, para onde vão as coisas dispostas. Assumindo-se como tarefa impossível, porém necessária. Sendo um lugar não piedoso, porém amparando: "a chance de sobreviver não está nas boas intenções porém no exercício perseverante da liberdade que consiste, em termos educativos, em oferecer (ensinar) além ou apesar de todo cálculo, contexto, realidade, demanda ou entrevista" (Antelo, 2004).3

 

Hipótese 3

Se o dominante hoje é a "queixa", a contestação estaria na "reivindicação". Indivíduos vitimizados queixam-se: cidadãos reivindicam. A queixa é individual, a reivindicação, coletiva. Se o dominante hoje está no verbo "dar", "dar uma oportunidade", se hoje, o mandato dominante é "sejam tutelados", a contestação está na recusa ao estatuto da tutela.

Todorov (1999) discute este horror à autonomia, em um momento em que fala-se, o tempo todo, em autonomia, em indivíduos autônomos. Nunca a autonomia foi tão proclamada e tão pouco praticada. A autonomia seria, para o autor, a primeira dimensão do cidadão. Autonomia é reclamar o direito de ser responsável pela própria sorte, é reclamar que queremos submetermo-nos às nossas próprias leis. É uma definição política que demanda participar na condução dos negócios públicos. Hoje, aparentemente, exigi-se menos autonomia. Ao não "operar o mundo" e sim sermos "operados por ele", não nos pensamos responsáveis pelo próprio destino e sim como vítimas. Todorov analisa a aspiração contemporânea ao estatuto de vítima, à configuração vitimária da sociedade atual. O outro é o culpado pelo que não fiz, pelo que não pude, pela minha dor, pelo meu desânimo. Neste movimento, de vontade de impotência e de anseio da tutela, há um forte eixo articulador, de negação da igualdade e de impossibilidade de pensar em um projeto societário geral. Parecemos viver em uma sociedade de indivíduos muitos frágeis, que carecem de um estado-babá. A sociedade se torna um terreno de confrontos entre interesses particulares em vez de ser local de busca de um interesse geral. (ibidem, p. 227).

Voltamos, desta forma, à primeira hipótese, e passamos pela segunda: a contestação como recusa à segregação (meu grupo, que não teve uma oportunidade, meu grupo vitimizado, opondo-se ao outro); a contestação como negação desta passividade de ser operado pelo mundo, lutando pelo saber. E chegamos à terceira hipótese, a da recusa do estatuto da tutela (de uma sociedade de vítimas). Superar a vontade de impotência, é um lugar da contestação atual, que recusa as formas de sermos "sujeitos a".

 

Uma última ponderação e um convite para o debate

Chegamos, desta forma, à formulação das três hipóteses, que dialogam estreitamente entre si. Novamente, trata-se da contestação como a possibilidade de um diálogo entre diferenças e que permita traçar um quadro comum que permita a comunicação, a arte da tradução. As três, de diferentes lugares, tratam da igualdade e, na vida social, do reconhecimento da diferença. O desafio é pensar simultaneamente em reconhecimento e redistribuição. (Bauman, 2003)

Recusa da segregação, recusa da distração, recusa da tutela. Recusa dos lugares identitários oferecidos pelo "mercado", pelos regimes de pode/ saber.

São alguns lugares possíveis para pensar a contestação hoje. Acontecendo no face a face com o poder, recusando as representações dominantes. Estou pensando, com isto, lógico, naquelas populações adolescentes e juvenis invisíveis para os nossos olhos, na maioria que está acontecendo, conquistando, recusando segregações. Estou pensando na adolescência e na juventude não mais como uma questão social ou como um problema mas como solução. Não como sujeitos passivos, inertes, pois sabemos (...) que lá, onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo), esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente "no" poder, que dele não se "escapa", que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? Ou que, sendo a história ardil da razão, o poder seria o ardil da história -aquele que sempre ganha? Isso equivaleria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder. (Foucault, 1985:91-92)

Reinventando espaços de liberdade e de recusa:

(...) Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande recusa -alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (...)As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada.(...) Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (Foucault, 1985:91-92)

 

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1 Schiling, Flávia. "La adolescencia sin soledad". Cotidiano Mujer, Montevidéu, n.20/1998.
2 Diz Todorov (19993:230): "o ideal da integração parece substituído pelo da segregação".
3 É interessante marcar a semelhança entre a proposta de Atelo as de Skliar e Duschatzky (2001:137): "será impossível a tarefa de educar na diferença? Felizmente, é impossível educarse acreditamos que isto implica formatar por completo a alteridade, ou regular sem resistência alguma, o pensamento, alíngua e a sensibilidade. Porém parece atraente, pelo menos não para poucos, imaginar o ato de educação como uma colocação à disposição do outro, de tudo aquilo que possibilita de ser distinto do que é, em algum aspecto. Uma educação que aposte transitar porum itinerário plural e criativo, sem regras rígida que definem os horizontes de possibilidade".