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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
TEXTO PARA I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE
MESA REDONDA XIII - POLÍTICAS DE SAÚDE, SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO PARA ADOLESCÊNCIA: EXPERIÊBCIA NO BRASIL
FEUSP, 05 DE MAIO DE 2005
Repensando o lugar do conhecimento psicológico nas políticas públicas para a adolescência em saúde, saúde mental e educação
Marilene Proença Rebello de SouzaI; Ana Karina Amorim ChecchiaII
IDoutora em Psicologia e docente do Instituto de Psicologia da Universidade de Sâo Paulo
IIMestranda do Programa dew Pós - Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do CNPq pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
As políticas públicas para a adolescência, de maneira geral, refletem o tempo e o momento histórico e social em que estão inseridas. A partir da chamada "redemocratização do Estado brasileiro", no início dos anos 1980 e mais precisamente com a Constituição de 1988, denominada "Constituição Cidadã", verifica-se o incremento de discussões em vários âmbitos sociais na direção da construção de tais políticas, nos desafios que devem ser enfrentados, bem como nas perspectivas a serem projetadas em busca da construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual.
Boa parte dos textos que compreendem as políticas públicas está alicerçada em dados e indicadores sociais de forma a qualificar o debate e possibilitar o conhecimento da macroestrutura social e educacional brasileira, iluminando objetivos, estratégias e metas a serem atingidas com relação a determinados segmentos sociais. Neste sentido, o Brasil tem produzido importantes análises quantitativas e qualitativas que permitem que se tenha, de maneira geral, um quadro bastante amplo da problemática social em diversas faixas etárias, diferentes segmentos sociais por classe, gênero e raça.
Mas, neste debate, gostaríamos de abordar uma outra dimensão das políticas públicas, em geral, pouco presente nas discussões, a saber, determinadas concepções negativas que socialmente se constróem a respeito daqueles que são o público alvo destas políticas, principalmente quando se refere à criança e ao adolescente oriundos das camadas populares. Além disso, temos como objetivo problematizar como tais concepções atravessam os textos oficiais e várias das propostas governamentais vigentes nas últimas décadas.
No caso de políticas voltadas para a criança e para o adolescente, é freqüente encontrarmos em suas justificativas determinadas crenças e considerações a respeito dessa fase de desenvolvimento humano centradas na concepção de que tais políticas são necessárias, pois as crianças beneficiadas são provenientes de famílias carentes, desestruturadas, vivem experiências de violência, apresentam diferentes déficits: neuro-psico-motor, de linguagem, cognitivo e afetivo. Observamos, em grande parte dos textos das políticas sociais, a presença de um discurso da chamada "Teoria da Carência Cultural", ou seja, ideário desenvolvido nos anos 1960 nos Estados Unidos e muito presente no Brasil nos anos da ditadura militar, justificando os déficits e diferenças culturais presentes nas camadas mais pobres da população1. Embora tal concepção tenha sido duramente criticada nos anos 1980 e 1990 no Brasil por pesquisadores tais como Patto (1984, 1989, 1997); Cagliari (1985); Carraher et al. (1982); Moysés e Collares (1992, 1998), Souza at al (1987), dentre outros, explicitando o caráter ideológico presente nas afirmações do ideário da chamada carência cultural, verificamos a dificuldade de enfrentarmos tal ideário quando se trata de pensar políticas para as camadas populares. Um exemplo da forte presença deste ideário, ainda nos dias de hoje, encontra-se em artigo escrito por membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (Penin 2000 citado por Viégas, 2002) , referindo-se à necessidade de implementação da política de "Progressão Continuada", ao afirmar que
"as circunstâncias de vida da população mais sofrida da sociedade: os muito pobres, os de vida cultural restrita e os provenientes de famílias desorganizadas, trazendo consigo todo tipo de problemas de comportamento (indisciplina, desrespeito, pouca higiene, violência, drogas). É sim, o outro lado ou o lado ruim da sociedade que está entrando na escola" (Grifo de Viégas).
Portanto, analisando textos das políticas educacionais brasileiras é possível identificar que há uma série de justificativas para que determinadas ações do Estado sejam implementadas, muitas vezes, carregadas de concepções que desqualificam aqueles que seriam o alvo do alcance de determinadas acões sociais.
E, quando se trata de adolescentes, observamos que algumas das justificativas para a implementação de determinadas políticas públicas refletem concepções preconceituosas e distorcidas dessa faixa etária. É freqüente observarmos documentos oficiais em que o adolescente é apresentado ora como pertencente a uma faixa etária constitucionalmente problemática do ponto de vista psicológico, ligado a atos de violência, formação de gangs, utilização de drogas, dentre outros; ora é identificado como fruto das mazelas da "carência cultural", anteriormente apontadas, ou ainda fruto da relação perversa desses dois elementos. Assim, as concepções a respeito do adolescente, em boa parte dos textos das políticas públicas vigentes, associam-no à violência, à drogadição, ao descontrole social e sexual, enfim a uma série de elementos negativos no interior da malha social.
No caso do adolescente ser identificado como psicologicamente problemático, deve-se também a uma série de interpretações subjetivistas no campo da Psicologia que ao compreender o psiquismo somente do ponto de vista de sua constituição interna, nega o contexto social que produz a subjetividade humana. Assim sendo, os aspectos negativos presentes na representação social que se constrói sobre o adolescente reforça ainda mais sua própria identidade enquanto alguém que a qualquer momento pode cometer um ato de insanidade.
A concepção vigente na Psicologia sobre adolescência tem sido, freqüentemente, marcada por uma visão naturalizante e a-histórica deste momento da vida do homem, estando presentes, em muitos estudos, preconceitos e estereótipos relativos a esta fase. Autores como Aguiar, Bock e Ozella (2001) referem-se a tais aspectos ao contextualizar a visão da Psicologia sobre o adolescente, e apontam a idéia de que desde o início do século XX, predomina-se uma concepção marcada pela universalização e naturalização do adolescente, "produzida e reproduzida pela cultura ocidental, assimilada pelo homem comum e pelos meios de comunicação em massa e reafirmada pela Psicologia tradicional" (Op. cit. p. 164).2
De acordo com esta abordagem, ainda recorrente, desequilíbrios e instabilidades seriam inerentes ao jovem, e consistiriam em alguns dos traços que comporiam uma crise preexistente ao adolescente. Deste modo, negligencia-se sua inserção histórica, ao condicionar a realidade biopsicossocial a fatores intrasubjetivos (Aguiar, Bock e Ozella, 2001. p. 164). Autores adeptos a essa concepção, tal como Debesse, defendem a idéia de que haveria um psiquismo próprio, característico da adolescência, considerando um equívoco pensar que a juventude muda ao longo dos anos. Segundo o autor, "por detrás do aspecto da juventude existe a juventude eterna, notavelmente idêntica a si própria no decurso dos séculos" (Debesse, 1946 apud. Ozella, 2002, p. 16).
Assim, com base em tal perspectiva, a adolescência consistiria em "um período de contradições, confuso e doloroso (...); o momento mais difícil da vida do homem..." (Aberastury, 1980). Inclusive, há referências à "Síndrome Normal da Adolescência", ou "crise essencial da adolescência", em que "o adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades extremas" (Aberastury e Knobel, 1981).
Ou seja, percebe-se em um certo segmento do discurso psicológico uma patologização da adolescência, tida como um período naturalmente caracterizado por crises, inquietações, rebeldia (vista, geralmente, de forma pejorativa), conflitos, vulnerabilidade acentuada, dispersão, irresponsabilidade, instabilidade emocional, etc. Esta visão não apenas permeia a Psicologia (além de estar presente em outras áreas de conhecimento – conforme será apontado a seguir), como também o senso comum. Assim sendo, torna-se um desafio e uma necessidade confrontar tais cristalizações e preconceitos calcados em uma sociedade que os alimenta, tendo a Psicologia como uma das aliadas nesta tendência ideológica.
Para ilustrar as questões que ora apresentamos, recentemente, acompanhamos um projeto de lei na área da psicologia escolar, que se encontra tramitando na Câmara Federal. Trata-se de projeto que visa incluir na estrutura funcional das escolas de ensino básico, o psicólogo e o assistente social para atendimento e orientação de alunos.
Para que o projeto tramite é necessário que seja relevante socialmente e que apresente um conjunto de justificativas de caráter social. Neste projeto, a justificativa apresentada afirma, dentre outras questões, que "A dura realidade de nossa sociedade aponta para o crescimento dos índices de desajuste social manisfestos nos níveis de violência dentro e fora da escola" (....). "Tais manifestações de dificuldade de socialização ou carência apresentadas pelos alunos são, em geral, resultado de situações ou desajustes de ordem emocional e social"; e para justificar o atendimento de profissionais da psicologia e assistência social considera "cada um dos membros da família daquele estudantes atendido será beneficiada pela inserção de um cidadão educado e produtivo, reduzindo a possibilidade de receber um indivíduo pouco escolarizado e com altas chances de se transformar em um desajustado". Ou seja, o tema do desajustamento social e emocional, da violência enquanto o centro do problema da escola, desloca para o aluno e sua família as reais dificuldades hoje vividas pelo sistema educacional brasileiro e tão frequentemente analisada pelos acadêmicos e por aqueles que se debruçam sobre os dados educacionais3.
O discurso ora vigente e identificado neste projeto de lei não se distancia daquele apresentado nos anos 1930 ao se justificar, por ex. , a existência de um Código de Menores no Brasil.4 A temática da deliqüência e do desajuste social eram as tônicas deste documento articulado por juristas que defendiam uma visão conservadora de sociedade. Constatamos, portanto, que o discurso ora vigente não se apropria das discussões mais recentes a respeito da importância da compreensão da escola na sua dimensão social, histórica e política e repete um discurso que culpabiliza o usuário, o beneficiário da escola pelas suas mazelas.
Ao problematizarmos tais concepções a respeito da adolescência, chamamos ao atenção para a necessidade de ruptura com tais vertentes de análise na direção de compreendê-la a partir de um referencial histórico-cultural no campo da Psicologia. Para tanto, chamamos a atenção para a relevância em romper com a naturalização do olhar sobre essa fase da vida, abordando a adolescência enquanto um conceito de constituição social e histórica.
O compromisso e a preocupação em superar tais concepções naturalizantes são apontados por psicólogos que privilegiam uma visão crítica e contextualizada acerca dos fenômenos em questão, tais como os que defendem a Psicologia Sócio-Histórica, concebendo o homem como um ser histórico, "constituído ao longo do tempo, pelas relações sociais, pelas condições sociais e culturais engendradas pela humanidade" (Aguiar, Bock e Ozella, 2001. p. 166).
Ressalta-se, assim, com base em tal perspectiva, a relevância em atentar para as "condições concretas da vida social que geram a construção do fenômeno da adolescência" (Contini, 2002, p.14). Esta não é, pois, considerada uma fase natural do desenvolvimento humano, e sim "um momento significado, interpretado e construído pelos homens", sendo, então, constituída historicamente, nas relações sociais (Aguiar, Bock e Ozella, 2001, p. 168). Defende-se, portanto, a idéia de que o jovem não seria algo "por natureza", mas sim, um parceiro social, cujo modelo para construção pessoal é atravessado pelas relações sociais (op. cit., p. 168).
Tal movimento de superação das concepções naturalizantes pôde ser evidenciado na área de Psicologia Escolar, principalmente, a partir da década de 1980. Segundo Tanamachi, o movimento de crítica na Psicologia Escolar baseia-se na consideração de raízes sócio-históricas dos fenômenos escolares, com uma concepção "materialista histórico-dialética" do indivíduo; trata-se, portanto, de um processo dialético, em que se concebe o homem como um ser constituído e constituinte das relações sociais (Tanamachi, 2000, p. 89).
Assim, este movimento manifestou o intuito de superar as tradicionais concepções adotadas até então, passando a "analisar criticamente a história da Psicologia aplicada à Educação" e compreender os fenômenos escolares a partir dos "pressupostos da análise histórico-crítica como fonte de interpretação da realidade educacional atual" (op. cit., pp.80-1 e 83).
Nessa condição, propomos que se estabeleça uma análise das concpeções presentes nos textos das políticas públicas na direção de revisá-los à luz de perspectivas críticas e condizentes com a direção democrática das ações políticas. Desta forma, será possível romper com uma visão estereotipada e de senso comum a respeito da criança e do adolescente. Ao mesmo tempo ainda é necessário o incremento de pesquisas que visem conhecer os aspectos e a complexidade que envolvem esse fenômeno e que tais aspectos sejam analisados pelos próprios adolescentes, considerando-se os questionamentos e dilemas por eles vividos (Koller, 2002) . Por fim, consideramos fundamental a articulação de ações visando a melhoria da qualidade de vida e de educação para esta faixa etária.
Iniciativas como este Simpósio são fundamentais para criar uma cultura de discussão a respeito da adolescência e de encaminhar ações políticas nessa direção.
Referências
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1 A esse respeito ver Patto (1984, 1997); Souza et col. (1994); Sawaya (2002)
2 O Processo de naturalização do compotamento humano é fruto de concepção de homen e de sociedade, vigentes nos séculos XIX e XX, cuja influência abrange vários campos da Ciência, incluindo a Psicologia. A esse respeito , ver Patto (A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia, 1990).
3 A respeito do tema do fracasso escolar vide Oatto (1990); Sawaya (2002); sobre a discussão dos dados educacionais, vide Ferraro (1985, 2002).
4 A esse respeito ver Moraes, E.(1927). Criminalmente da Infância e da Adolescência. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves