1Repensando o lugar do conhecimento psicológico nas políticas públicas para a adolescência em saúde, saúde mental e educaçãoSofrimento e adolescência no mundo contemporâneo sob a perspectiva da psicologia social clínica índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

MESA REDONDA IX
O TRABALHO CLÍNICO E EDUCACIONAL COM A POPULAÇÃO INDÍGENA

 

O encontro com o jovem em São Gabriel da Cachoeira - em busca de uma clínica diferenciada

 

 

Professora Associada Leila Cury Tardivo

 

 


RESUMO

Este artigo é baseado em parte de um trabalho desenvolvido (Tardivo; 2004), onde a proposta inicial foi a de estudar e procurar compreender o complexo fenômeno referente aos crescentes índices de violência e de mortes violentas (suicídio e homicídio) entre adolescentes indígenas aculturados que vivem em São Gabriel da Cachoeira (AM) .Relatarei encontros em grupo com esses jovens onde empreguei o Procedimento de Desenhos com Tema (Vaisberg, 1997): "Desenhe um Jovem em São Gabriel da Cachoeira nos dias de hoje", seguido de associações escritas .Serão apresentados e discutidos os materiais inéditos de 10 jovens, sendo que as reflexões serão feitas em função do grupo como um todo, a partir das manifestações individuais. Depois de concluída a atividade, os jovens eram convidados a falar e mostrar, se quisessem, a produção. Ao final do encontro todos entregaram seus desenhos, mostrando terem se sentido bem de haver alguém que se interessasse em conhecer o que se passava com eles, com sua vida e o que eles pensavam a respeito. Nesta apresentação mostro que a partir de uma clínica diferenciada foi possível discutir as dificuldades, os intensos conflitos entre eles e com os familiares , considerando a situação social em que estão inseridos, os aspectos culturais e antropológicos, de uma cultura que se perde a se deteriora a cada dia.


 

 

Introdução

O trabalho foi desenvolvido em São Gabriel da Cachoeira , um município com 112.000 km e atuais trinta mil habitantes, situado no extremo Noroeste do Estado do Amazonas. Separada Manaus por 860 quilômetros de densa floresta tropical, na fronteira com a Colômbia e Venezuela. Foi fundado em 1891 e declarado Área de Segurança Nacional em 1968.

A população desse município forma a maior concentração indígena da Amazônia, sendo distribuída em 750 povoados, de 23 etnias distintas, ao longo das margens do Rio Negro e seus afluentes. . A principal atividade do município ainda é a agricultura de subsistência. Planta-se mandioca, abacaxi, abacate, banana, limão e batata-doce. A alimentação é complementada com a cada vez menos abundante caçae pesca.

A mais importante fonte de renda na cidade é o Exército, que emprega cerca de 1 500 homens e paga uma folha de soldos seis vezes maior que a do funcionalismo público. É muito baixo o índice de analfabetismo., mas o município de São Gabriel apresenta sérios problemas de saúde pública, sendo um dos campeões brasileiros em tuberculose e uma desnutrição, outras moléstias também ocorrem em grande número, como: helmintíase e malária.

A população de São Gabriel da Cachoeira, constituída em sua quase totalidade de índios (95%), sofreu um rápido processo de aculturação nas últimas décadas modificando valores, tradições, usos e costumes sócio-culturais. Mais do que a modificação, esse processo distanciou - e até mesmo aniquilou - raízes culturais até então cultivadas e transmitidas durante centenas de anos pela ancestralidade A área urbana é mínima, congregando uma população de forasteiros de aproximadamente 8 000 pessoas. , a energia é gerada por uma Usina Termoelétrica, que consome 300 000 litros/dia de óleo diesel, levados em barcaças vindas de Manaus. Observei antenas parabólicas e pelo menos um aparelho de TV ligado em todas as casas e estabelecimentos.

O fluxo migratório das aldeias para a periferia da cidade evidencia a busca por novos valores. Não exclusivo dessa população, sabe-se que processos semelhantes vem ocorrendo em outras regiões do Brasil, onde se observa a pouca capacidade de resistência das populações indígenas, a qual se refere também aos aspectos sociais, sendo muito difícil resistir à perda e à invasão

 

O ENCONTRO COM OS JOVENS

É no contexto mencionado de forma muito resumida acima, que se refere o trabalho. Busquei refletir a respeito dos jovens moradores na região, de sua conduta , a qual refere-se em especial à violência provocada pelos jovens, uns contra os outros, havendo um número significativo de suicídios e tentativas de suicídios entre os jovens dessa cidade.

Tive alguns encontros com grupos maiores e, em todos eles, empreguei a Técnica do Desenho temático como instrumento mediador no contato, e realizei o que vimos denominando (Vaisberg e Tardivo, 2002) consultas terapêuticas grupais.

A partir de contatos individuais com diversos jovens, em especial, cinco que haviam tentado suicídio, pude realizar algumas reflexões, cujos resultados foram apresentados em outras ocasiões, onde empreguei outras técnicas projetivas e entrevistas (Tardivo e cols. 2003).

Nos encontros em grupo, empreguei o procedimento com a instrução: Desenhe o "O Jovem em São Gabriel da Cachoeira nos dias de Hoje" e em seguida solicitava aos jovens que escrevessem associações no verso da folha, apenas identificando sexo e a idade.

O Procedimento de Desenhos Temáticos foi elaborado por Vaisberg (1997) como derivado do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) proposto por Trinca (1972, 1997) , e com o qual venho trabalhando há muito tempo. E pude notar o valor e relevância do D-E como forma de estabelecer contato, muito além de ser uma técnica auxiliar no Diagnóstico Psicológico.

 

APRESENTAÇÃO DO MATERIALCLÍNICO : DESENHOS E ASSOCIAÇÕES

O encontro com os jovens ocorreu num Centro Juvenil, na cidade, ao qual os jovens foram convidados a participar. Para este dia vieram aproximadamente 60 jovens no período da manhã e um grupo menor (doze) no período da tarde, de ambos os sexos. Após a realização dos desenhos foi feita a discussão. Muitos jovens amassavam e escondiam nas roupas os desenhos (refletindo angústia e até mal-estar), e, convidados a entregá-los, dispuseram-se a fazê-lo.

Vou iniciar a apresentação do material, inserindo os desenhos, as associações escritas por eles, identificando-os com nomes fictícios. Vale mencionar que nenhum jovem tem , de fato, nome indígena.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFLEXÕES

Iniciei a reunião já com a proposta de discutir a situação da vida deles, a partir do emprego do Procedimento do Desenho-Temático: "Desenhe o Jovem em São Gabriel da Cachoeira nos dias de Hoje". Fomos apresentados pelo psicólogo da cidade e por um coordenador do Centro Comunitário onde a reunião estava acontecendo.

Fui observando enquanto desenhavam e notamos que repetiam sempre os mesmos temas: a destruição do jovem em São Gabriel; desenhavam bebidas, drogas, cenas de violência., figuras humanas muitas vezes grotescas, e acompanhadas de armas, garrafas, cenas de briga , como se pode notar nos desenhos de quase todos eles, referências à morte: desenhos de caixões e cemitérios.

A princípio mais tímidos, ao longo da reunião foram se sentindo mais à vontade e falaram de forma espontânea. Ao final do encontro todos entregaram seus desenhos, alguns chegaram bem amassados, mas notei que eles queriam que eu ficasse com a produção deles.

Pareceu terem se sentido bem de haver alguém que se interessasse em conhecer o que se passava com eles, com a vida deles e o que eles pensavam a respeito.

Muitos jovens falam da escolha de dois caminhos: do bem e do mal, desenham encruzilhadas,

Notei que alguns jovens falavam o que parecia ser aquilo que eles acreditavam que esperávamos ouvir, ou seja, falavam o que era "certo"; um discurso carregado de críticas, de valores, uma fala superegóica. Como se estivesse falando desde fora: sobre estes "jovens" de São Gabriel, sem se implicarem nas situações. Havia comentários assim: "Os jovens estão perdidos, isto não deve ser feito; não é certo".

Busquei trazer para a experiência deles, salientando que na verdade se tratava da vida deles o que estávamos conversando, não de um "outro"; algo abstrato. Eram eles os jovens de São Gabriel. Eles admitiram que gostavam se divertir, contaram m que depois de uma certa hora nas "festas" (que ocorrem em casas noturnas da cidade) ocorriam brigas entre grupos diferentes.

Algumas meninas admitem fugir à noite para ir às festas, contra a vontade das mães (como se pode ver no caso de Carla). É comum as mães trancarem as portas das casas e as meninas "fugirem pelas janelas". Contam das galeras, grupos da cidade que têm uma rivalidade muito grande, e a única situação que os diferencia é o bairro onde vivem: na praia, no Dabaru ou no Centro.

Fomos podendo conversar a respeito das dificuldades deles, dos desejos de sair e se divertir, da falta de opção. Surgiram com intensidade conflitos e problemas familiares. Muitos foram mencionando o uso da bebida pelos pais. Contam de pais que agrediram as mães, outros mencionaram que os pais já abandonaram o lar, foram para outras cidades, para Manaus (como Carla).

Alguns pedem ajuda, dizendo que os pais têm muita dificuldade e eles também (Daniela).

Na fala após os desenhos sempre predominaram a temática das dificuldades e a ênfase nas bebidas e drogas, como se pode ver claramente em seus desenhos.

Fui tentando me aproximar deles nesses encontros, validar o desejo de se divertirem, e outros que expressavam. Procurei falar sobre os problemas de suas famílias, de seus pais. Procurei ver as possibilidades de dar algum apoio em relação à questão do alcoolismo na cidade, e os recursos locais para essas intervenções. (Tive encontros com pais, e esses temas foram conversados muito detidamente com eles; fiz também atendimentos familiares e individuais).

Também pude dizer que tentava compreender como deveria ser difícil viver muitas vezes sem saber o que iriam ser, e procurei pensar com eles em alternativas, numa tentativa de tentar ver com eles uma esperança para essas situações.

Tentamos pensar em opções: alguns falam que precisam sair da cidade, que não vêem saída lá. Outros trazem idéias: aumentar o número de Centros Juvenis como aquele, aproveitar melhor os espaços dos colégios e das cidades, desenvolver oficinas, serem mais preparados, haver mais espaços para se divertirem, como teatros e cinema, enfim algumas tentativas surgiram; idéias deles mesmos. Embora não fossem todos os que falaram de esperança, houve também um espaço para esse sentimento nesses encontros.

"Toda conduta tem um sentido" (Bleger, 1975),a partir daí , é possível apreender qual o sentido de adolescentes de estarem vivendo assim, de manifestarem condutas tão repletas de destrutividade voltadas contra eles mesmos ou contra os outros.

É preciso considerar aí a questão da adolescência, da situação social em que estão inseridos, incluindo os aspectos culturais e antropológicos. Pode-se ver também um sofrimento intenso, difuso, generalizado em todo o grupo, provavelmente eles são a expressão da experiência emocional de toda a coletividade em que vivem.

Alguns desenhos impressionam pela dor que está impregnada neles. Nunca vi em quase 30 anos de trabalho um desenho de uma pessoa como o de Patrick (o último que está inserido). Como já afirmei, não é esse o nome do jovem. Resolvi chamá-lo assim, por ser um dos nomes de um jovem com o qual tive contato na minha primeira viagem à região, tentando ajuda-lo, e que cometeu o suicídio, mais de um ano depois de havê-lo conhecido. Ele só tinha 16 anos. As reflexões sobre este trabalho junto aos adolescentes que tentaram suicídio foram por mim relatadas e publicadas em outras ocasiões. Soube da morte de Patrick por elementos do Conselho Tutelar da Cidade. (Tardivo, 2003 ). Dar esse nome ao autor deste desenho é considerá-lo como aquele que condensa todo o sofrimento e a morte a que estão sujeitos esses adolescentes, brasileiros como nós, e com todo o direito à vida. E que se vêem impedidos de viver tão cedo.

Este desenho a que me refiro traz uma figura humana meio morta e meio viva, tendo a morte vindo de baixo. O solo, o chão, ou seja, a realidade não dá recursos para esses adolescentes se desenvolverem, com segurança. Esse desenho como nenhum outro traz a dor e a morte: o sentido deste sofrimento expresso (Barus-Michel, 2001).

Outros desenhos apresentam sérios sinais (transparências internas, desestruturação, figuras abertas sem delimitação com a folha, sinais de bizarrice, figuras que tentam intimidar carregadas de identificação projetiva e evacuativa), como o de Patrick, podem ser considerados como sugestivos de severas patologias (Grassano, 1996). De fato, são adolescentes que trazem esta significação de doença e morte. Certamente não no sentido nosológico tradicional, mas a emergência destas condutas de hostilidade, da adição às drogas, deste sentimento de desvalia de vazio, que muitos transmitem em suas produções gráficas, associações e no que relatam nos encontros. As concepções de Bergeret (1988) sobre a importância deste período da vida, e o que nele ocorre para o desenvolvimento mais sadio ou não, tornam-se extremamente relevantes diante dessas manifestações. E, ao mesmo tempo, alerta para a necessidade de cuidado urgente para todo esse grupo.

São adolescentes que não encontram em absoluto na sociedade, na comunidade e na família as condições para viverem seus conflitos e tentarem encontrar as respostas mais importantes da vida do ser humano: quem são, o que são, para onde vão. Assim estão impedidos de dar conta da tarefa mais fundamental da adolescência, que é a busca e a conquista da identidade. (Erikson, 1972).

A respeito da situação da família em São Gabriel da Cachoeira, evidencia-se que os pais também se sentem perdidos, não dão o que não têm. Carla fala desta vivência com muita dor. Expressa seus conflitos com a mãe, que a prende por temer o que ocorre na rua. Parece ser uma família desintegrada, como tantas, e a menina sem condições para viver sua adolescência.

Mais dramática é a situação vivida por Daniela. Seu desenho expressa a preocupação com a praia por ela valorizada, mas as associações que ela traz mostram seu sofrimento vivo e a extrema angústia. Fala de ser má porque o mundo ou sua família assim o quiseram. Há a sensação de não ser nada, a completa e total desvalia. Traz um pedido comovente de ajuda e de justiça. É urgente ressignificar a vida e a experiência não apenas desses jovens, mas de toda a comunidade.

Neste contexto, fenômenos sociais - como a formação de gangues, por eles denominadas "galeras", a ocorrência de alcoolismo e drogadição, com a decorrente explosão de violência - podem ser vistos como alternativas à constituição de mais sadias modalidades individuais e coletivas de existência. Barus-Michel em encontro comigo mencionou que os suicídios e os homicídios podem se constituir numa reação à impossibilidade deles de ser e de existir.

Um dado significante diz respeito à origem desses adolescentes de São Gabriel da Cachoeira. Se 95% da população são constituídos de indígenas, esses jovens têm estas raízes. De fato, a maioria tem um ou ambos os pais indígenas. Porém, eles desprezam suas raízes culturais, não se vinculam a tradições e aos ritos de passagem por que seus pais e avós passaram, o que poderia lhes dar segurança e sentimentos de pertinência. A sociedade é incapaz de oferecer a estes jovens, que nada possuem e a nada pertencem, a perspectiva da garantia de respeito a seus direitos fundamentais como cidadãos.

Esses jovens são, como toda a comunidade em que vivem, vítimas do "desenraizamento". Esse conceito pode ser entendido a partir da obra da filósofa Simone Weil (1909-1943), apesar de ela tratar do assunto em outro contexto (situação do operariado francês antes da Segunda Grande Guerra). ( 2001 )

Vi nos desenhos e associações, pela carência em referências ao futuro, ao trabalho e ao desenvolvimento, a preocupação com a morte (Deutsch, 1974)', a qual embora seja esperada entre adolescentes pode estar incrementada pelas incertezas que vivem.. Vale mencionar em várias produções as dificuldades com a escrita que apresentam, a despeito de todos freqüentarem a escola.

Os adolescentes vivem e viveram reais situações de privações e pode-se notar que essa vivência contribuiu e contribui para que estes possam desenvolver a capacidade de valorizarem a si próprios e aos objetos (Alvarez, 1994). Essa situação se evidencia em diversas produções como as de Daniela, já citada, que diz "Não sou nada".

Ser alguém, ser da "galera do Dabaru" é menos sofrido do que "não ser nada", como mostra o desenho de Daniela ou se "perder nas bebidas e no alcoolismo".

Notei que muitos desses adolescentes desistiram de fantasiar, que é uma das características normais da chamada Síndrome Normal da Adolescência (Aberastury e Knobel, 1971), e têm um caráter defensivo, ficando os jovens sem esta importante ferramenta. Muitos, de fato, pararam de sonhar.

Uma característica que nesse grupo me pareceu extremamente acentuada diz respeito à falta de localização temporal. Se já é uma tarefa difícil de enfrentar, localizar-se no tempo, a situação desses adolescentes se torna ainda mais comprometida. Para eles, o passado não existe. Há uma ênfase em negá-lo e negam sua história, um patrimônio cultural que demandou centenas de anos para ser construído. A mitologia dos indígenas da região é muito rica, bem como as danças, os rituais, as crenças, o idioma. Os jovens se negam a fazer parte deste mundo (que está em crise, em processo de destruição mesmo). Se o futuro não se apresenta com alguma perspectiva, ou esperança, resta um presente carente de sentido. Muitas vezes, atuar o que de pior tem na cultura branca (a cachaça, as drogas dos brancos: cola, maconha, crack) torna-se a única alternativa de vida no presente.

Muitas produções mostram as tendências anti–sociais deste grupo, retomando Winnicott (1978) consideramos tal tendência não um diagnóstico psicopatológico tradicional, mas que ressalta a importância do ambiente. Estas atitudes, que já se referem ao fenômeno da delinqüência, ocorrem sempre em grupo.

As contradições sucessivas nas manifestações de conduta fazem parte das características dessa fase da vida (Aberastury e Knobel, 1971) bem como a ambivalência. Esses aspectos se evidenciaram na conversa que tive com os adolescentes quando entregavam suas produções, e mesmo nas produções. O desenho de Diogo é emblemático desta ambivalência, pois ele coloca o jovem diante de uma encruzilhada, de uma terrível escolha. Ele fala do caminho da tristeza e o da alegria. Mas relaciona o caminho da tristeza à busca do prazer e à influência da televisão. Aspecto por demais contraditório. A tristeza decorre da busca desesperada de prazer. Ainda mais, com apenas 15 anos, Diogo relaciona a dificuldade de escolha entre os caminhos ao desajuste familiar. Esta dicotomia tão nítida - entre tristeza, ligada ao prazer e alegria ao desenvolvimento - pode ser também um impedimento na escolha. Afinal, o prazer faz parte do desenvolvimento e do crescimento. Insisto na necessidade de esses adolescentes e suas famílias serem apoiados nesta luta pela vida.

Torna-se também dificultado a esses adolescentes o caminho da dependência até a independência, que decorre da separação progressiva dos pais.

Como disse, foi como psicóloga clínica que atendi a este chamado e fui a este encontro. Dessa forma, penso numa clínica que deva ser estimulada e desenvolvida entre esses jovens, embora fique claro, como já afirmei em outras ocasiões, as intervenções a serem desenvolvidas devem estar inseridas num contexto amplo que contemple a sociedade e a comunidade como um todo.

Pode-se encontrar em Winnicott (1984) suporte para esta clínica diferenciada, como a que tentei desempenhar lá .

Winnicott disse em um de seus artigos que, diante de um caso que requer tratamento são possíveis duas alternativas: fazer uma psicanálise individual, tal como foi concebida por Freud tendo em vista o atendimento do paciente neurótico, ou "ser um psicanalista fazendo outra coisa", mais apropriada para a situação. Digo que a única opção viável nesses encontros foi a segunda

Diz Vaisberg (2000) que, em nosso país, somos cada vez mais solicitados a ser psicanalistas fazendo outra coisa. Assim, é possível identificar claramente neste grupo as condições que justificam essa clínica diferenciada: vive uma situação de pobreza, com pouco acesso à educação e, devido aos aspectos já mencionados de desenraizamento e bruscos mudança cultural e social, é vítima de condições psicopatológicas novas. E, se qualquer intervenção pressupõe um encontro, foi o que tentei empreender.

Dessa forma, é possível considerar estes encontros como "Consultas Terapêuticas" (Winnicott, 1984). Tentei trabalhar segundo este princípio de dar conta do que ocorre nos encontros que são possíveis de serem estabelecidos, tanto nestes encontros em grupo (aqui relatados) como em outras situações individuais e familiares. (Tardivo, 2003)

Assim foi que busquei ao acolher a produção, os desenhos e as associações. Falei com eles, busquei validar a busca do prazer e discuti alternativas de vida. Tentei ser um pouco parceira nestes momentos de desamparo. Pensei na necessidade de re-significar sua experiência, de valorizá-la, pois, de fato, tem valor pra mim. Eles são o nosso futuro. A tarefa não é simples, a situação desses jovens requer, de nossa parte, reflexões e nos instigam a tentar formas de intervenção que sejam eficazes.

Refletindo sobre que medidas poderiam ser tomadas, retomo as colocações de Erikson (1972) segundo as quais a formação de identidade, tarefa básica e essencial da adolescência, é um problema de gerações, sendo que a mais velha está intensamente implicada no processo. Ele considera assim que os mais velhos precisam ter um forte sistema de valores para que os adolescentes possam com segurança contestá-los. Fica aí a extensão do problema a ser tratado. A geração mais velha nessa região vive uma intensa crise, uma vez que seu sistema de valores e crenças está desacreditado pela geração mais nova e vem se perdendo ao longo dos anos. Estão eles mesmos, os pais, absolutamente perdidos. Assim pensar em intervir junto aos adolescentes em São Gabriel da Cachoeira implica, necessariamente, um trabalho sério, corajoso e criativo junto à família.

As duas últimas produções me foram entregues sem associações, apenas os desenhos: o de Patrick, sobre o qual teci já alguns comentários e deixo o leitor viver sua própria experiência diante da dor e do sofrimento que ele expressa. Mas também recebi o de Roberta de 16 anos. Ela não escreve nada, mas traz um desenho de uma jovem, um menino e uma casinha ao fundo, trazendo uma sensação de harmonia. Pode, assim, trazer esperança: uma adolescente que pode pensar em seu papel de mulher, da maternidade que ela se prepara para assumir.

Gostaria de remeter, finalmente, o leitor a uma reflexão a respeito da travessia a que Dolto (1990) se refere quando fala da passagem de duas margens, de um tempo, da infância à idade adulta. Como disse, posso pensar em outras margens, neste caso de rios que foram de fato cruzados e estão sendo cruzados pelos jovens de forma solitária. Vale aqui o pedido de uma companhia, de uma parceria nessa travessia.

Uma produção emociona e é marcante em toda esta apresentação: o desenho e o texto poético de Bruno, de 18 anos. Ele consegue sintetizar todo o sentido da vivência desses jovens e dessa comunidade, traz o sofrimento de forma clara e transparente. O desenho mostra um passado: os rios, a floresta e as cachoeiras. Mas este é um mito; e o tempo não volta. Ele fala de um presente, que é a realidade de todos os dias e é o mundo dos brancos. Ele sabe que os pais não conseguem mais educá-los, estão tão perdidos ou mais do que os filhos. Os pais sofrem muito também e ele sabe disso. O desenho mostra a expressão do sofrimento ao viver a vida de hoje. No entanto, seu texto termina com um pedido e uma afirmação: "Busca de vida para nós Missão de todos". Ele condensa o que eu quero dizer.

E nós psicólogos clínicos somos interpelados a colaborar; é missão nossa também.

 

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

ABERASTURY A E KNOBEL, M.- Adolescência Normal y patológica. Buenos Aires, Paidos, 1971

BARUS-MICHEL, J. – Soufrance, trajet, recours. Dimentions psychosociales de la souffrance humaine. Bulletin de Psychologie., V 54(2) 452. :117-127 mar-abr, 2001

BERGERET,J.- Personalidade Normal e Patológica .Porto Alegre Artes Médicas, 1988

BLEGER, J . Psicologia de la Conducta, Buenos Aires Editoral Paidós, 1975

DEUTSCH, H. - Problemas Psicológicos da Adolescência . Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974

DOLTO, F. - A Causa dos Adolescentes. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1990.-

ERIKSON, E. H. – Identidade, Juventude e Crise, Rio De Janeiro, Zahar Editores, 1972

GRASSANO, E. Indicadores Psicopatológicos nas Técnicas Projetivas. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1996.

TARDIVO, L.S.P.C E VAISBERG, T. - A.Natureza e esportes ou violência e drogas?A juventude no imaginário de jovens indígenas aculturados. Revista de Psicologia - Vetor Editora Psico-pedagógica. São Paulo, v.2, n.2/3:26 - 37, 2002.

TARDIVO, L.S.P.C - Sofrimento, desenraizamento e exclusão: relato de uma experiência com indígenas aculturados do Amazonas In: I Seminário Temático Ser e Fazer e Tecer - Trajetos do Sofrimento: Desenraizamento e Exclusão., São Paulo. 2002.

TARDIVO, L.S.P.C., VIDILLE, W. F.- Los indígenas del Alto Rio Negro y el proceso de desenraizamiento cultural: producciones expresivas gráficas. In: XII Congreso Latinoamericano de Rorschach y otras Técnicas Proyectivas, Montevideo. Transformaciones em la Subjetividad: Retos a la Psicología y sus Instrumentos. Tradinco, v.1. pp.27 – 35. Montevideo, Uruguay,2003.

TARDIVO L.S.P.C. – O Adolescente e Sofrimento Emocional nos Dias de Hoje: Reflexões Psicológicas.Encontros e Viagens . São Paulo, 2004. 213 p.Tese (Livre Docência) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia Clínica.

TRINCA, W. - O Desenho livre como Estímulo de Apercepção Temática. (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 1972.

TRINCA, W. (organizador) – Formas de Investigação Clínica em Psicologia – O Procedimento de Desenhos-Estórias e Desenhos de famílias com Estórias – São Paulo, Vetor, 1997.

VAISBERG, T. M J.A - Desenhos com Tema in TRINCA, W. (organizador) – Formas de Investigação Clínica em Psicologia O procedimento de Desenhos-Estórias e Desenhos de Famílias com Estórias – São Paulo, Vetor Psico-pedagógica, 1997.

VAISBERG, T. M. J. A; CORRÊA, Y. B; AMBROSIO, F. F.- Encontros brincantes: o uso de procedimentos apresentativo-expressivos na pesquisa e na clínica winnicottiana. Anais do IX Encontro Latino Americano sobre o Pensamento de D. W. Winnicott, pp. 331-341, Rio de Janeiro, 2000.

WEIL, S. – O enraizamento. BAURU, SP, EDUSC, 2001

WINNICOTT, D.W - Textos Selecionados Da Pediatria à Psicanálise Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.

WINNICOTT, D.W. - Consultas Terapêuticas em Psiquiatria infantil. Rio de Janeiro, Imago, 1984.