1O encontro com o jovem em São Gabriel da Cachoeira: em busca de uma clínica diferenciadaSociodrama: espaço potencial para os entre-ditos índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Sofrimento e adolescência no mundo contemporâneo sob a perspectiva da psicologia social clínica

 

 

Tânia Maria José Aiello Vaisberg

Professora Livre - Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Orientadora dos Programas de Pós - Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Cátolica de Campinas

 

 


RESUMO

Realiza-se uma apresentação crítica da psicologia social clínica, enquanto perspectiva teórica plurirrefencial, para a seguir abordar a problemática do sofrimento adolescente no mundo contemporâneo. O pensamento de Barus-Michel é analisado, sendo ressaltada sua capacidade de articular, com coerência, o sofrimento individual e as condições concretas da vida social. Por outro lado, é também criticado, à luz da psicanálise fenomenológica do self, por se manter num registro representacional que ignora dimensões pré-reflexivas do viver adolescente.


 

 

A Psicologia Social Clínica

O pensamento exposto pela professora Jacqueline Barus-Michel1, neste Primeiro Simpósio Internacional do Adolescente, adota uma perspectiva específica, que deriva de um referencial que articula a psicanálise, a fenomenologia e a sociologia, que tem sido conhecido, inicialmente na França e depois internacionalmente, como psicologia social clínica. Trata-se de uma visão que veio a nos interessar sobremaneira, na medida em que temos optado por uma trajetória clínica e teórica que, atenta às críticas formuladas por Politzer (1928) à psicanálise, tem buscado realizar uma psicologia concreta2. Tais críticas resultaram num certo número de exigências epistemológicas que podem ser atendidas, segundo minha experiência, por meio de uma freqüência ao texto winnicottiano que, apoiando-se nas sistematizações elaboradas por José Bleger (1963), não se furta a ampliar a noção de ambiente para além de limites estritamente familiares. Entretanto, contar com uma interlocução próxima com o pensamento de Barus-Michel tem dado novo alento às nossas buscas, interrogações e investigações.

Faz-se, assim, interessante, iniciar estes comentários abordando esta perspectiva teórica, para focalizar, num segundo momento, a temática da adolescência. Penso que pode ser útil, para os presentes, muitos dos quais, segundo sei, são pesquisadores e estudantes de pós-graduação, analisar brevemente o modo como está configurada a perspectiva teórica plurirreferencial da autora que nos alerta contra teorizações que, ignorando a complexidade afetivo-emocional que move os chamados atores-sociais, têm resultado, como sabemos, em sociologias que não fazem jus à sua condição de ciência humana, na medida em que descartam dimensões subjetivas e intersubjetivas. Resgata, assim, por meio da psicanálise, uma visão forte do humano, que não sacrifica sua subjetividade, que é fenômeno de alta complexidade, evitando sabiamente, por outro lado, reduzir o social a um psicologismo individualista, posição que tem sido infelizmente muito freqüente. Trabalha, enfim, com um sujeito psicanalítico, animado por desejos, por conflitos e angústias, enquanto simultaneamente reconhece que o campo social não está meramente subordinado à psicologia individual inconsciente:

"O que escapa à consciência no campo social não é constituído apenas por um único inconsciente, mas pelo reprimido social – que é precisamente aquilo que o poder mascara ou interdiz – e pelo ignorado, por falha de comunicação e informação. Este conjunto representa o desconhecimento psicossocial que pode ser considerado como uma hipótese de base da psicologia social clínica e também o lugar central das relações de poder". (Barus-Michel,Giust-Desprairies e Ridel,1996, pg. 301).

Percebe-se, assim, que uma visão psicanalítica do indivíduo, que reconhece sua complexidade subjetiva, não é diretamente aplicada ao entendimento do campo social, mas fornece elementos para uma reelaboração psicossociológica não-reducionista. O sujeito é, pois, socialmente situado, num campo que está primordialmente, a seu ver, atravessado pelas questões do poder. Aliás, vale lembrar, ainda que de passagem, que esta visão foi laboriosamente desenvolvida a partir do cuidadoso estudo crítico que realizou sobre o mito freudiano da horda primitiva, por meio do qual chegou a formular a tese de que o social se funda não sobre o tabu do incesto e sim sobre a proibição da antropofagia (Barus-Michel, 1991).

Por outro lado, tais visões psicanalíticas e sociológicas conjugam-se, ainda, no referencial adotado pela autora, com a filosofia fenomenológica:

"A fenomenologia é uma outra referência que permite retomar o objeto da psicologia social em termos de experiência e de sentido. O ser humano dá coerência ou incoerência à realidade, só existe ação possível através das significações que elabora. Estas estão ligadas às representações. A fenomenologia traz sua contribuição, perseguindo o questionamento do sentido da experiência, do sentido que o ser humano dá a seu "ser- no – mundo", toda reflexão de sentido passa por ela. Assim, a psicologia social clínica (...) analisará as significações que revestem a experiência social para os sujeitos, a partir do vazio que se encontra na origem da demanda de indivíduos, coletivos ou pesquisadores, quer dizer, a partir da falta de sentido ou da incapacidade de elabora-lo. O clínico não estará lá para conferir sentido mas para esclarecer os mecanismos que constituem as significações ou que as inibem. Na medida em que estas significações coincidem com o vivido da experiência, a fenomenologia estará convocada por sua vez, não como um recurso, mas porque oferece, à psicologia social clínica, através da experiência e do sentido, instrumentos de análise." (Barus-Michel,Giust-Desprairies e Ridel,1996, pg. 302 ).

É, pois, a partir desta perspectiva, que veio a abordar, em sua pesquisa mais recente, as questões do sofrimento e da crença (Barus-Michel, 2004), que faz incursões de pensamento em relação ao tema da adolescência, num movimento que se aproxima, desejavelmente, de uma psicologia concreta. Vale, pois, sublinhar que, ainda que mantenhamos um vivo debate com a Professora Jacqueline acerca do modo como articula psicanálise, sociologia e fenomenologia, nutrimos importantes reservas no que diz respeito à sua adesão a uma psicanálise metapsicológica e pulsional, que é, a nosso ver, tributária de uma epistemologia positivista que repudia uma leitura propriamente fenomenológica. Entendemos que está certo Politzer (1928), quando afirma a existência de uma duplicidade no interior do discurso freudiano, a qual clama por resolução, sob pena de perecer na incoerência. É assim que subsistem duas visões teóricas incompatíveis, uma de cunho francamente positivista, capaz de pensar a dimensão psíquica em termos mecanicistas que tem, como análogo, um aparelho físico, e outra, de cunho fenomenológico, que aborda o psíquico em termos vivenciais e dramáticos. Nesta linha, uma verdadeira fecundação do pensamento pela fenomenologia exigiria o abandono da teorização metapsicológica, vale dizer, uma reformulação conceitual interna à própria psicanálise, empreitada que Barus-Michel evita. Por outro lado, apelar para a fenomenologia tendo em vista sua contribuição para o reconhecimento da importância do sentido seria, sob a ótica de Politzer (1928), um movimento quase desnecessário, uma vez que, segundo este autor, a própria psicanálise, enquanto prática clínica, gerou um pensamento que descobriu, por si mesmo, a importância do sentido no âmbito da existência humana. É, entretanto, fundamental acrescentar que tais debates teóricos não impedem um aproveitamento muito grande das contribuições de Barus-Michel no âmbito da discussão de casos clínicos, fato que o próprio Politzer (1928) explica quando fornece subsídios para pensarmos a dualidade discursiva como fenômeno que opera dissociativamente, separando prática e teoria.

 

O Sofrimento Adolescente no Mundo Contemporâneo

Apoiando-se em estudos anteriores, que lhe tem permitido afirmar que o sofrimento humano está primordialmente relacionado à perda de sentido vital, Barus-Michel realiza uma análise da adolescência que articula os sintomas mais comuns de mal- estar, apresentados por indivíduos que se encontram nesta fase etária, com as condições de vida prevalentes no mundo contemporâneo. Tem, contudo, o cuidado de diferenciar dois grupos de sujeitos: os adolescentes das classes médias e os "jovens" suburbanos, provenientes de segmentos sócio-economicamente desfavorecidos. Trata-se, a meu ver, de distinção de fundamental importância, porque as condições culturais do mundo incidem diferentemente, em termos da experiência vivida, de acordo com as classes sociais.

Adotando como ponto de partida o reconhecimento de que a adolescência é um fenômeno durável, que a sociedade ocidental produziu a partir do fato fisiológico da puberdade, aborda aquilo que considera a questão fundamental desta fase da vida: a construção identitária. Encara este processo como algo que se faz em termos de auto-representação, vale dizer, num registro simplesmente representacional, mantendo-se, assim, fiel a uma psicanálise metapsicológica. Ou seja, usa o conceito de identidade que, como sabemos, não é originariamente psicanalítico, mas psicossociológico, para elabora-lo em termos psíquicos e representacionais. Constrói, assim, um discurso coerente e capaz de indicar certo sofrimento, mas opera, a nosso ver, de modo incompatível com a leitura fenomenológica que preconiza, na medida em que este pensamento enfatiza e confere especial importância a dimensões pré-reflexivas do viver. Não se beneficia, pois, de contribuições, igualmente psicanalíticas, capazes de suportar uma perspectiva fenomenológica, das quais a psicanálise winnicottiana do self é um exemplo reconhecidamente bem-sucedido. (Roudinesco e Plon, 1997).

Prosseguindo, então, na linha escolhida, vai coerentemente pensar o processo como "construção de si mesmo" que será feita em bases sobretudo identificatórias. É neste contexto que considerará imprescindível apresentar uma análise da sociedade contemporânea, uma vez que subtende que as dificuldades decorrem basicamente da impossibilidade da impossibilidade de tomar, como modelos, figuras parentais que perderam sua integridade. Realizará sua abordagem do contexto contemporâneo mantendo-se em registro predominantemente cultural, ainda que o veja estreitamente vinculado às condições sócio-econômicas. Tal percurso textual imporá a necessidade de postular um adulto "adolescente", veio que saberá explorar apropriadamente.

Entendo que pensar o sofrimento do adolescente em termos de dificuldade num processo de construção de identidade, que será vinculado à falta de figuras que se prestem satisfatoriamente a serem tomadas como modelos de identificação, tangencia as questões mais importantes. Questões existenciais mais profundas deixam de ser colocadas, exatamente porque o conceito fenomenológico do self está ausente, de modo que tudo se passa como se os processos em pauta tivessem um caráter cognitivo e se resolvessem por meio de operações de aprendizagem. Ora, se assim fosse, toda e qualquer geração estaria condenada aos limites vividos, imaginados e aspirados pela geração anterior, hipótese que a história humana desmente facilmente.

Ora, se o vazio e a falta de sentido emanam da inexistência de modelos adequados, tudo se passa, no raciocínio da autora, como se não existissem condições favoráveis à ocorrência de uma certa aprendizagem. Entretanto, as questões de vazio e sentido também se fazem presentes em condições sociais em que predominam, aparentemente, o sucesso, a realização. Como explicar este fato? A meu ver, é preciso levar em conta um plano antropológico capaz de reconhecer algumas necessidades humanas fundamentais, que nos fazem questionar se o processo representacional de "construção de si mesmo" corresponde a um movimento próprio do ser humano ou se é apenas um fenômeno que se produz quando inexistem condições propícias à possibilidade do indivíduo se sentir vivo, real e capaz de gestualidade criadora e transformadora da realidade social, numa linha antropológica que subjaz ao pensamento winnicottiano sobre a natureza humana (Winnicott, 1988). O fenômeno, que tem lugar em âmbitos pré-reflexivos, conhecido como falso self, exige não apenas um outro discurso teórico, mas demanda outras práticas e ações, de caráter altamente complexo, que tocam firmemente a questão do sentido da vida e interrogam decididamente as bases da cultura ocidental como um todo, das quais o estado atual de coisas é uma decorrência.

Haverá, provavelmente, que pensar em dimensões pré-representacionais do viver, que o mundo ocidental, que está hoje globalizado, vem desconsiderando há séculos. Claro que a Professora Jacqueline tem razão ao apontar a falta atual de narrativas totalizantes, religiosas ou ideológicas, capazes de doar sentido à vida. Temos, entretanto, convicção de que tais narrativas sempre operaram em registros reflexivos, nos quais pode se mover com desenvoltura o falso self, mas tem sido incapazes de atender as necessidades humanas fundamentais. Estas só poderiam ser contempladas num nível práxico de produção de sentido, no qual a ação e a corporalidade pudessem estar incluídas. As mudanças necessárias tem, portanto, grande magnitude. Pedem, provavelmente, não apenas revoluções políticas ou mudanças nos regimes econômicos, mas também importantes mudanças na vida cotidiana. Nesta linha, ganham importância os chamados movimentos sociais, pelos quais as minorias vem se expressar em busca de lugar.

De um certo modo, o sofrimento da adolescência, ao mesmo tempo em que nos interpela como adultos e como profissionais, no aqui e agora de nossa prática e de nossa vida, não deixa de ser um sintoma de um mal estar maior, que atinge toda a sociedade. Tal mal estar não corresponde, a meu ver, a um movimento simples de declínio, numa linha que pensaria o passado como algo melhor, mas a uma passagem, que não é nem automática nem mecânica, como pensaria um certo tipo de marxistas. Trata-se de uma passagem decisiva que nos demanda um posicionamento capaz de abandonar algumas ilusões, segundo as quais o aumento de poder e domínio sobre a natureza bastaria, por si só, para garantir uma boa vida humana, para adotar caminhos outros, de convivência inter-humana, que estão ainda por serem construídos. Finalizo, pois, com as palavras do filósofo:

"A humanidade não é uma soma de indivíduos, uma comunidade de pensadores em que cada um, em sua solidão, obtém antecipadamente a certeza de se entender com os outros, porque participariam todos da mesma essência pensante. Tampouco é, evidentemente, um único Ser ao qual a pluralidade dos indivíduos estaria fundida e destinada a se incorporar. Ela está, por princípio, em situação instável: cada um só pode acreditar no que reconhece interiormente como verdade – e, ao mesmo tempo, cada um só pensa e decide depois de já estar preso em certas relações com o outro, que orientam preferencialmente para determinado tipo de opiniões. Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade, que não está em questão aqui, mas para sua felicidade. Não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmos, que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida "interior" que não seja como uma primeira experiência de nossas relações com o outro. Nesta situação ambígua na qual somos lançados porque temos um corpo e uma história pessoal e coletiva, não conseguimos encontrar repouso absoluto, precisamos lutar o tempo todo para reduzir nossas divergências, para explicar nossas palavras mal compreendidas, para manifestar nossos aspectos ocultos, para perceber o outro. A razão e o acordo dos espíritos não pertencem ao passado, estão, presumivelmente, diante de nós, e somos tão incapazes de atingi-los definitivamente como de renunciar a eles." (Merleau-Ponty, 1948, pg.50).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARUS-MICHEL,J. Souffrance,sens et croyance:l’effet thérapeutique. Paris, Eres, 2004.

BARUS-MICHEL,J., GIUST-DESPRAIRIES, F. e RIDEL,L. Crises: Approche psychosociale clinique. Paris, Desclée de Brouwer, 1996.

BARUS-MICHEL,J. Pouvoir: mythe et réalité. Paris, Klincksieck, 1991.

BLEGER,J. (1963) Psicologia de la Conduta. Buenos Aires, Paidos, 2001.

MERLEAU-PONTY,M. Conversas-1948. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

POLITZER, G. (1928) Critique des fondements de la psychologie. Paris, Quadrige/PUF, 2003.

ROUDINESCO,E e PLON, M (1997) Dicionário de Psicanálise. Rio, Jorge Zahar, 1998.

WINNICOTT, D.W. (1988) Natureza Humana. Rio, Imago, 1990.

 

 

1 Professora Emérita do Laboratoire de changement Social da Universidade de Paris 7 Denis Diderot.
2 Sou imensamente grata à Professora Doutora Henriette Penha Morato pelo fato de, percebendo a existëncia de afinidades entre o trabalho da Professora Jacquekine e aquele que venho desenvolvendo, ter - me apresentado a ela.