1Sofrimento e adolescência no mundo contemporâneo sob a perspectiva da psicologia social clínicaEscuta analítica de equipes indigenistas author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Sociodrama: espaço potencial para os entre-ditos

 

 

Altivir João Volpe

Psicólogo, prof. da Universidade Mackenzie e doutorando em Psicologia Social/USP

 

 

Dentre as diferentes aberturas que o tema possibilita, pretendo fazer aqui um pequeno recorte ressaltando o que ocorre nos grupos familiares e, nesse caso, examinar alguns aspectos ligados à transmissão psíquica.

Em um sociodrama familiar, ao qual comparecem 5 pessoas1 – Paulo, de 48 anos e Giovanna, 46, sua mulher; os filhos, Lorenzo, Giancarlo e Cecília, respectivamente, 16, 14 e 8 anos –-, é trazida a seguinte situação. Na cena dramática, Giovanna reclama em desespero das advertências por escrito que Lorenzo trouxera nos últimos meses da escola. Em determinado momento, ela diz: "não sei onde isso vai dar! Eu sempre te ensinei a respeitar os professores, a ter limites... A lei foi sempre uma coisa que eu priorizei nessa casa!" Paulo: "Até demais pro meu gosto!" Ao que Lorenzo retruca: "é, mãe, você quer que eu continue batendo continência para esses professores mandões, chatos? Eles pararam no tempo!" Giovanna fica em silêncio por alguns instantes. Paulo entra: "Isso é todo dia lá em casa... E o pior é que quando começa a gritaria geral até o papagaio grita e começa a querer cantar o Hino Nacional".

Pergunto: "Como assim o papagaio?" Giovanna: "Eu herdei o louro que foi de meu pai... meu pai era tão durão que às 6:30 da manhã todos deveriam estar à mesa, momento em que ele distribuía as tarefas que faríamos à tarde, na volta da faculdade. Além disso, aproveitava esses momentos matinais para ensinar o papagaio a cantarolar o Hino Nacional".

O pai de Giovanna, filho de imigrantes italianos, herdara deles a responsabilidade, o afã de crescer e se desenvolver a qualquer preço... para não sucumbir. Na saída da Itália, seu pai e um irmão pereceram vitimados pela fome e pobreza trazidas pelas inundações e lutas com estrangeiros que invadiram o Vêneto. Domenico, pai de Giovanna, resistira à fome e à morte, conseguindo chegar ao porto, depois de semanas caminhando pelos campos. No Brasil, trabalhou mais de 30 anos na lavoura e, juntamente aos êxitos obtidos, passou aos filhos, valores fundados na submissão ao dever, ao esforço tenaz e perseverante.

Entregar-se, esmorecer, não lutar significaria para ele morrer. O trabalho, condição de sobrevivência material (e psíquica), representou também a tentativa de superação das mortes e perdas... um enraizamento, uma religação à mãe-terra. O Hino Nacional como que acordava/recordava nele a necessidade de uma atitude vigilante e alerta para a constituição de outras raízes, a impossibilidade de descansar, porque isso seria a morte. O Hino brasileiro não fala exatamente disso? "Deitado eternamente em berço esplêndido/ Ao som do mar e à luz do céu profundo..." – uma parceria (impossível?) entre a malemolência das águas dos rios de planície e o rumor das águas descendo revoltas e encachoeiradas as montanhas no início da Primavera européia.

Ao herdar os valores, o manancial passado pelos ancestrais, mãe e pai ao se colocar disponíveis ao filho, permitem que este faça sua inscrição, entre no mundo humano com os ritmos, códigos sociais, sabores e saberes que recebem dos que os precederam. Dessa forma, o filho pode, então, inscrever seu gesto criador e transformador no mundo – ser um cidadão. Ao contrário, os sujeitos que não tiveram esse tipo de experiência recebem uma história sem gramática, perdem algo significativo na continuidade de si mesmos, vivem como que fragmentados e desconectados: uma impossibilidade na transição eu/não-eu.

O verdadeiro sujeito de um sociodrama é o grupo. Aqui a atenção está focalizada nos denominadores coletivos, nos processos e relações conscientes e inconscientes comuns envolvidos na situação. Nesse sentido, pode-se falar em um co-inconsciente familiar permeando ou atravessando as gerações.2

Isso significa que o psicossociodrama moreniano se propõe a uma construção intersubjetiva incessante, compartilhada, porque construção de muitos. Busca os discursos inconscientes do grupo, as falas alheias – como o papagaio --, tudo aquilo que não foi ou não pôde ser decodificado e nomeado ao atravessar as gerações. A possibilidade de ressignificação de tais processos inconscientes ocorre sobretudo nas relações inter e intragrupais – familiares, sociais, culturais, religiosas, locus do Drama humano -- ação acabada, apolínea, conservada ("estancada no tempo", diria nosso Lorenzo) e, simultaneamente, movimento dionisíaco que se abre em diferentes caminhos e perspectivas. Como diz Bastos (2000: 275): "a transmissão geracional transmite a luta – tese e antítese – entre o que luta para viver no futuro e as diversas maneiras que se lutou no passado para que ficasse excluído da história".

No nosso caso, Giovanna na condição de depositária recebe e transmite transgeracionalmente pedaços/fragmentos consistentes de um entrechoque heróico -- "bater continência", não descansar... para não morrer. Colocada transferencialmente no lugar paterno, deposita ordens ao seu redor: como seu pai, permanece em um fazer contínuo, não ouvindo e sentindo as pessoas. Lorenzo, de seu lado, situa-se como porte-parole potencial (Kaës, 1994), um locutor-transportador que veicula o novo e significativo mas está enleado, enlaçado em mandatos dos que o precederam... Grita com os professores, enfrenta a mãe: esse é seu primeiro movimento no sentido de religar os processos intergeracionais a suas experiências e às dos demais.

Na família de Giovanna e de Paulo todos gritam, querem que sua palavra ecoe, encontre ressonâncias mas como o papagaio, rodopiam, repetem falas alheias, insistem em "bater continência", à espera de algo ou alguém que as acolha e ressignifique. São gritos, vozes, falas alheias, acontecimentos que rodeiam e cercam as cenas – movimentos, ritmos, sons e imagens que impregnam o grupo familiar... "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura"? Mãe e filho debatem-se sem saber como e por que, enunciam, cada um a seu modo, a presença e intensidade de forças não-conscientes que atravessam violentamente as gerações, sem possibilidade de representação e simbolização. Se o trabalho sociopsicodramático tiver êxito, a família de Lorenzo poderá tecer sua própria história, com as marcas das experiências dos pais, avós e antepassados.

Podemos pensar com Freud (1914) que o indivíduo é para si mesmo seu próprio fim e, ao mesmo tempo, membro de uma cadeia geracional à qual está sujeito. Num sistema de trocas mútuas, o coletivo e o individual se interrelacionam, transformam-se. Além disso, podemos pensar que os pais constituem um ou mais filhos, sucessiva ou simultaneamente, como portadores de desejos seus não-realizados e que o narcisismo primário dos filhos se ancora no de seus pais. Por fim, que o ideal do Eu é uma formação comum aos sujeitos singulares e aos grupos e conjuntos sociais. A esse respeito, diz Kaës (1994: 231): "na situação interdiscursiva do grupo, cada sujeito diz sua própria palavra e toda palavra dita é também uma palavra dirigida a um outro; ela se enlaça em uma palavra já dita, entre-dita" (grifos nossos). Através do vínculo qualificado com um outro, o passado pode ser introduzido no campo das palavras, das inscrições, da memória, da história.

Eis porque Françoise Dolto, com sua grande experiência na análise com crianças, dizia que elas e os cães -- poderíamos acrescentar, também os papagaios -- sempre sabem (no sentido de terem experimentado o sabor, vivido a experiência) o que acontece nas famílias, o que se diz e, sobretudo, o que não se diz... Quantos pactos e "missões", lutos não-elaborados, fardos e hinos nacionais estranhos, passados lacunares e silenciados... No trabalho sociopsicodramático, cada sujeito, cada grupo pode a partir daí situar-se em relação a esses ditos e não-ditos, em relação a tais determinações fantasmáticas, realizando, então, aquele trabalho dramático estancado, fracassado, criando espaços de transcrição transformadora.

Ser sujeito é dar continência, suportar e sustentar os inevitáveis conflitos e amarras que enredam o tecido social. Ou seja, responsabilizar-se, apropriar-se de suas raízes, interface da tradição herdada e da criação espontânea de cada um. A existência de cada um e de todos se inscreve num tempo, num espaço, num mundo de códigos, significados, ritos e mitos que os porta-vozes, protagonistas, intermediários, transportadores insistem em fazer ouvir, o que é dito e, mais ainda, o que é entre-dito!

Cora Coralina, no poema a seguir3, narra a construção de sua mulher, presentifica com muita força a apropriação da singularidade humana recolhendo e integrando os muitos eus que a constituem:

Vive dentro de mim uma cabocla de mau olhado
Acocorada ao pé do borralho olhando para o fogo
Benze quebranto, bota feitiço
Ogum, Orixá, macumba, guerreiro, Ogan, pai de santo
Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho
Seu cheiro gostoso da água e sabão
Rodilha de pano, trouxa de roupa, pedra de anil
Sua coroa verde de São Caetano
Vive dentro de mim a mulher cozinheira
Pimenta e cebola, quitute bem feito, panela de barro
Taipa de lenha, cozinha antiga toda pretinha
Bem cacheada de Picumã, pedra pontuda, cumbuco de coco,
pisando alho e sal.
Vive dentro de mim a mulher do povo
Bem proletária, bem linguaruda
Desabusada, sem preconceitos, de casca grossa
De chinelinha e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira, enxerto da terra, meio
casmurra, trabalhadeira, madrugadeira, analfabeta
De pé no chão, bem parideira, bem criadeira, seus doze filhos,
seus vinte netos
Vive dentro de mim a mulher da vida, minha irmãzinha, tão
desprezada, tão murmurada fingindo alegre seu triste fado
Todas as vidas dentro de mim na minha vida
A vida mera das obscuras.

 

Referências

BASTOS, César. "A criança e a família – vicissitudes na constituição do narcisismo e da vincularidade". In RAÑA, R. e PIVA, A. (orgs.) A atualidade da psicanálise de crianças: perspectivas para um novo século. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In_____. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.

KAËS, René. "Une fonction phorique. Le porte-parole." In_____. La parole et le lien – processus associatifs dans les groupes. Paris: Dunod, 1994.

 

 

1 Nomes e situações são fictícias.
2 Ver, a respeito, "Co-inconsciente: drama social" e "O enredo das gerações" (VOLPE, A.J. Édipo: Psicodrama do destino. São Paulo: Agora, 1990), onde tais questões estão mais esmiuçadas.
3 Cora Carolina "Todas as Vidas", Poemas dos becos de Goiás e estórias mais: São Paulo: Editora Globo, 1985, p. 45.