1Sociodrama: espaço potencial para os entre-ditosHumilhação social, violência e construção de identidade do jovem brasileiro: Crueldade como espetáculo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

1º SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE
MESA-REDONDA O TRABALHO CLÍNICO E EDUCACIONAL COM A POPULAÇÃO INDÍGENA

 

Escuta analítica de equipes indigenistas

 

 

Maria Regina Henrique Branco Volpe

Psicanalista (SBPSP), Mestre em Psicologia Clínica (PUCSP)

Endereço

 

 


RESUMO

A autora compartilha alguns processos realizados através da escuta analítica que possibilitaram a alguns profissionais de equipes indigenistas, bem como a um jovem índio, uma nova percepção e encaminhamento de questões referentes ao momento de interculturação que atravessavam. Elucida como os conceitos de ruptura de campo, transferência, neutralidade como não interferência, expectativa de trânsito e vórtice e a utilização da metodologia psicanalítica foram referenciais importantes nesse trabalho. O analista de adolescentes (ou não) deve priorizar sempre a eficácia da escuta intercultural e da palavra contextualizada afetivamente para que haja uma ruptura benéfica do estereotipado, possibilitando que o não-dito ou o esquecido seja recoberto pelo seu próprio nome.


 

 

Introdução

Desde 1990 acompanho um grupo de aproximadamente sessenta profissionais autônomos que trabalham com as populações ao longo do rio Araguaia bem como com as comunidades indígenas Tapirapé, Karajá e Xavante. Meu contato com essas comunidades em geral se dá de forma mais indireta através de questões trazidas pelos profissionais, médicos, engenheiros, professores, enfermeiros, educadores, religiosos... Às vezes, isso também ocorre de forma direta, quando algumas circunstâncias o exigem.

Vou falar de um trabalho que faço com paixão, o que pode significar que preciso me cuidar para não me estender muito. Pretendo apresentar duas situações retiradas de encontros analíticos realizados com os profissionais, identificados no local como agentes de pastoral. Uma terceira situação é apresentada com base em encontros com um jovem índio. Gostaria de destacar como a metodologia psicanalítica se mostrou fundamental nessas escutas, particularmente com a utilização de alguns conceitos como vórtice, ruptura de campo, neutralidade como não-interferência e transferência. O desejo aqui é o enriquecimento e possíveis desdobramentos ouvindo as reflexões dos colegas.

Devo dizer inicialmente que a preocupação das equipes presentes há mais de trinta anos nas comunidades indígenas ou próximas a elas tem sido ao longo do tempo promover o resgate e proteção da singularidade de cada grupo indígena, manter sua terra e economia, seus mitos fundantes, enfim, sua cultura e condições de sustentabilidade, preservando, portanto, sua autonomia como povo. Tais equipes têm como princípio básico a não-interferência, deixando que os grupos e comunidades descubram e decidam o próprio caminho.

 

As dúvidas de Ciça

Quero relatar inicialmente a escuta de uma jovem professora de adolescentes do povo Karajá, localizado no lado esquerdo da Ilha do Bananal. Ao iniciar nosso encontro, perguntou-me se eu a achava jovem demais para a tarefa que exercia e sobre a escolha que fizera. Ela me explicou que enfrentara várias críticas tanto dos pais quanto de educadores que mais próximos pois diziam que era muito nova para esse tipo de opção. Passou, então, a falar da preocupação propriamente dita que a conduzira até mim. Relatou-me com angústia que sobretudo os índios mais jovens da aldeia nesse encontro com a cultura do homem branco – tori para eles --, pareciam estar perdendo os valores da própria cultura.

Atravessavam o rio Araguaia com suas canoas e passavam o dia na cidadezinha em frente à sua comunidade, embriagados, mal-alimentados, jogados nas calçadas e desnorteados, sem ação... E ela completava: "tenho enorme vontade de reagir, proibir, fazer alguma coisa... Não agüento vê-los se acabando dessa forma!"

Ao ouvi-la, reportei- me a situações parecidas com as que vivo no consultório com jovens drogaditos, ou mesmo com jovens que estão caminhando bem no processo analítico e que, por isso mesmo, passam por momentânea perda de identidade, buscando experiências novas e arrojadas, ficam confusos... enfim, momentos de vórtice, na linguagem de Herrmann (2001).

Nós analistas também sabemos da delicadeza desses momentos e da importância de estar atentos ao que está por emergir do inconsciente, pois como diz Herrmann, "quem é vivo sempre aparece!" Só que, ao mesmo tempo, é bem nessas horas que temos vontade de interferir. Por não sustentar a angústia expectante, de trânsito, por vezes temos vontade de interromper esse movimento aconselhando, consolando, o que poderia nos levar a perder todo o trabalho.

Estava pensando em tudo isso e ouço-a repetir: "Estão se acabando!" Continuei em silêncio. De novo minha atenção flutuante me levou a imaginar os jovens índios em suas canoas, deixando suas cabanas e atravessando o rio... Imaginei Ciça atravessando-o para realizar uma tarefa diante da qual também estava com muitas dúvidas. Eu também tinha atravessado o rio para chegar lá . Aí eu disse a Ciça: "mas acho que aqui também nessa conversa estamos nos acabando. Aliás, como seres inconformados com a nossa incompletude, estamos sempre atrás da obra do nosso acabamento, arriscando, bisbilhotando, procurando saber para onde poderá ir nossa canoa. Atravessamos o rio para isso, não foi?" E ri.

Ela parou... titubeou meio confusa e, numa voz marota, me disse: "Ah, você é espertinha! Deu outro sentido ao termo acabar... Entendi. Eu também, quando decidi dar aula na aldeia, atravessei o rio. Era um desafio. Mas eu quis pagar pra ver!"

Essa conversa continuou nos próximos dias com outros desdobramentos. Ciça voltou ao trabalho com os jovens índios. Um mês depois me escrevia: "estou mais segura na minha insegurança... e, só para dar uma notícia dos índios, tenho a dizer que alguns deles também só estavam pagando para ver. Outros estavam doentes mesmo mas souberam procurar a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) por conta própria.

Assim como meu olhar para Ciça foi de legitimação de uma fala pois, naquele momento eu percebi que era importante para ela esse meu olhar confirmador, narcizisante – assim também ela, me pareceu, pôde desenvolver com os índios um olhar legitimante para que discernissem a forma de condução de suas canoas. Pulsou vida neles ao buscar a ajuda da Funasa.

Eu sabia que o questionamento da jovem professora dizia respeito à conveniência, permanência e limites da postura da não-intervenção do analista-educador-antropólogo... Essa postura de aparente distância e neutralidade só tem sentido para o índio, adolescente ou analisando se transmitir ao mesmo tempo o respeito que estamos tendo por ele, por suas descobertas e recursos. Ao lado disso, nos constituirmos uma presença absolutamente compromissada na relação.

A neutralidade perde todo o seu valor se não for plena de presença e atenção ao significado das palavras, gestos ou atos que estão por vir. Se assim não for, pomos a perder não só o trabalho, a sessão mas a confiança do adolescente no adulto que o acompanha. Perdendo a confiança, perdemos o divã que suporta as transferências e as contra- transferências, bases do processo analítico, dos questionamentos e transformações.

 

Escutando Luíza

Um segundo caso diz respeito a uma guerra de amor, triangular, entre duas comunidades indígenas, uma delas ficando destruída pelo fogo. Isso aconteceu em 2001, uns dias antes de minha chegada. Todos estavam atônitos, brancos e índios, sobretudo Luíza que trabalhava nessa aldeia como antropóloga há mais de cinco anos. Por isso, Luíza veio conversar comigo. Inicialmente me contou que na tribo após o rito de passagem de criança para adulto – após a menarca para as meninas e aos catorze anos para os meninos, se bem me lembro, esses jovens estariam aptos ao casamento.

Quando dois enamorados resolvem se casar, mostram esse desejo fugindo juntos para a mata, contava-me ela. Ao se dar conta da fuga, os pais dos jovens índios, se estiverem de acordo com o casamento, deixam-nos na mata e começam a construir uma oca para eles e, dias depois, os recebem com a festa do casamento. Mas se um dos pais não aceita, vai para a mata em busca do(a) filho(a) deixando claro sua oposição.

Foi o que aconteceu entre as duas aldeias Karajá. Era a terceira vez que dois jovens iam para a mata e, no dizer de Luíza, "o pai da moça a queria para si" – coisa atípica nessa tribo. Assim, ele impediu o casamento. Muitos índios da aldeia do jovem se rebelaram. O clima de agressividade e conseqüente medo e terror se espalharam. Houve mortes de ambos os lados. Os dois jovens fugiram e ficaram em algum esconderijo. Apesar de insistentemente solicitada, a Funai não compareceu. As ocas da aldeia do rapaz foram totalmente destruídas pelo fogo.

Dias depois, continua Luíza, os aviões da FAB recolheram os índios da aldeia arrasada transportando-os para outro extremo da Ilha do Bananal. "Eu assisti esse horror, minha casa na aldeia ficou em chamas, os índios assustados, mas o que mais me dói é o povo Karajá dividido. À noite, depois de ver com tristeza os índios subindo no avião, assisti o noticiário pela TV. Nenhuma notícia foi dada, como se tudo não passasse de coisa de índio!"

De minha parte, percebia que Luíza estava priorizando a visão do povo dividido ou do povo não levado a sério, por estar quase impossível para ela admitir a própria divisão, a sensação de um trabalho perdido ou destruído... em chamas. Ao mesmo tempo, a queixa de Luíza trazia uma dor parada, uma fala monocórdica, acromática. Isso para mim estava claro, por um lado, mas ao mesmo tempo tão paralisante que eu só soube ficar muda junto a ela. Ficamos assim um tempo e depois lhe disse: "Deve ser muito duro ter a casa queimada!"

Talvez depois dessa fala, Luíza tenha me sentido próxima. Pôde se aproximar mais de si mesma e dizer a seu modo que, de fato, a pulsão destrutiva não poupa ninguém, nem ela mesma. Estava desapontada consigo mesma, com o povo Karajá e questionando seu ideal. Luíza estava confundindo sua não-percepção da expectativa de trânsito com a norma da neutralidade e da não-interferência. Isso a deixou isolada, impedida de se comunicar.

Diz Herrmann (1997: 106), a propósito: "Consiste o trabalho analítico no campo da neurose em realçar os pequeninos momentos afetivos, que mal se deixam ver e cuja quase supressão acumula a tensão necessária para uma explosão de afetos sintomática, essa que amputa a seqüência história e repete a fantasia. A função que faculta essa operação de resgate chama-se memória afetiva ou recordação. Recordar, na clínica, é fazer passar de novo pelo coração. O coração da neurose é o isolamento da intersubjetividade, a solidão: os sintomas são atos solitários por excelência. Logo, recordando, o analista produz uma memória comum, íntima porém compartida, que difere de maneira radical da celebração, pois não visa em princípio a manifestar-se desabusadamente, estado ao qual podemos chamar comemoração, ou seja, memória compartida".

Como meu trabalho lá é composto tanto de sessões grupais quanto individuais, tenho a dizer que, naquele ano no trabalho em grupo também emergiram temas correlacionados ao fato mencionado por Luíza. A principal conversa teve a ver com o desejo. Quando este é marcado pela posse brutal e concreta do objeto, só pode levar ao caos, pois é sempre inacessível. A esse respeito foi analisada a história de Rani de Chittor, apresentada por Herrmann, em sua obra O divã a passeio (2001).

Naquele mesmo dia, lembramos do cacique de uma outra aldeia. Este queria se despedir de um dos profissionais do grupo que estava indo embora depois de longos anos trabalhando na região. Este índio gostava muito desse profissional e, assim, passou o dia inteiro sentado numa mureta da casa desse líder sem dizer uma só palavra. Ao entardecer, já se retirando foi novamente inquirido pelo líder sobre o que fora fazer lá. Ele respondeu: "eu vim me despedir e já o fiz. Agora posso ir." E foi.

Os presentes ficaram pensativos... Por vezes, o melhor beijo é aquele que é sonhado, desejado mas que nunca foi dado.

 

O encontro com Tupianã

O terceiro e último exemplo é o encontro com um adolescente de 16 anos que morava numa comunidade indígena desde os dois meses de idade. Era a primeira vez que eu ia para aquele lugar tão longe e, logo que cheguei, os agentes de saúde e educação bem como os pais do jovem me pediram que eu o atendesse. "Nunca temos psicanalistas aqui! Então, quando a chance vem, temos que aproveitar!", diziam eles.

Assim, em um dos intervalos do trabalho, conversei com Lucy e Henrique1, pais de Tupianã. Estavam há tempo na região, para onde tinham ido com o intuito de abrir uma escola de Ensino Fundamental na aldeia a pedido dos próprios índios. Quando de sua vinda, trouxeram com eles o filho pequeno.

Relataram-me também que, durante muito tempo, o filho convivera intensamente com os índios e, agora, considerava-se de fato um deles. Lucy e Henrique estavam preocupados, entre outros aspectos, porque o filho relutava em fazer o Ensino Médio na cidade grande.

Com preocupação me disseram que desde a metade do ano anterior haviam recorrido a diferentes médicos, psicólogos e psicanalistas de outro Estado, mas o filho continuava tendo crises de falta de ar, taquicardia e insônia, acompanhadas de medo de morrer. Alguns médicos deram remédio, outros não conseguiram diagnosticar sua situação e eles, pais, não sabiam o quê fazer... Tupianã só havia apresentado esses mesmos sintomas uma única vez, quando tinha 9, 10 anos, mais ou menos por ocasião de uma separação repentina dos pais na hospitalização de sua mãe. Esses pais mostravam ainda muitas dúvidas com relação à forma como conduziram a vida do filho. Se deveriam (ou não) tê-lo deixado ficar tanto tempo na aldeia...

Por coincidência, quando de minha chegada, Tupianã estava fazendo um ritual de iniciação e confirmando sua identidade indígena, com todos os preparativos, danças e cerimônias que a situação exigia.

Eu estava perplexa, surpresa e, ao mesmo tempo, muito envolvida e me questionando. Apesar de minha insegurança inicial, marquei para o dia seguinte o encontro com o jovem de 16 anos. Na hora marcada, ele veio ao meu "consultório", o lugar mais silencioso que podíamos contar, um espaço de aproximadamente sessenta metros quadrados, debaixo de um grande pequizeiro, com raízes que permitiam fácil acomodação.

Diante de mim estava um jovem bonito, alto, cabelos e olhos claros, um olhar inquieto e, ao mesmo tempo, confiante. Todo seu corpo estava desenhado com finos traços, cuidadosamente pintado com motivos indígenas que me fizeram lembrar um pouco aquelas gregas que eu penosamente aprendera nos tempos do Ginásio.

Ele começou sua apresentação, contando-me do ritual dos dias anteriores em que passara de menino, filho da tribo, para a condição de homem da tribo. Falou-me que, apesar do ritual, não sabia o quê fazer. O próprio cacique e o pajé haviam dito para ele vir me consultar, pois estava indeciso.

Naqueles poucos dias em que eu o atendi, falou sobre sua vida na mata; do amor pela natureza e pelas danças indígenas, da solidariedade entre eles... do manejo das armas que possuíam para sua sobrevivência. Em outros momentos, disse da admiração por seus pais, pessoas cultas que fizeram duas faculdades e que montaram com empenho a escola na aldeia. Ele queria ser como os índios, ao mesmo tempo como seus pais, e se questionava como iria trocar tudo isso pelo cimento, buzinas, poluição e a competição da cidade grande.

Enquanto falava sobre tais assuntos, disse que estava suando frio sem contudo conseguir detectar ou nomear o pavor e medo que estava sentindo nessa transição.

Um suor também corria ao longo de minha espinha não só devido ao calor escaldante. Eu havia deixado que o medo de Tupianã entrasse em mim mas esse meu medo e surpresa diante de algo tão diferente me eram claros: eu também estava me perguntando o que e como ser psicanalista naquela situação. Ele estava ali também por um encaminhamento dos pais, do cacique e do pajé, impregnado pelo modus vivendi de outra cultura... Eu antevi que, se necessário fosse, teria que reenviá-lo ao pajé para que transitasse mais livre e menos penosamente entre as duas culturas. Foi, então, que ousei dizer-lhe:

"Sabe, Tupianã, eu também estou com medo. O novo sempre nos assusta!" Ao responder, ele disse que se assustou com duas coisas -- por eu ter medo e, depois, por perceber que o que ele sentia era medo. A partir disso, um novo horizonte se descortina para Tupianã. Em sua fala nos dias seguintes, passa a distinguir com alívio e a pensar mais livremente sobre o que é morte e o que é medo.

Sentindo-se mais livre, relata depois que conhece as armas da mata mas que se sente sem armas para a mudança a uma cidade grande. Fala também seu receio de ir e, depois, ter que voltar atrás. Comentamos bastante sobre o significado ("vergonhoso" para ele) de voltar atrás, contrapondo-se à coragem de fazer a experiência, mesmo com a conclusão de voltar atrás. No último dia dessa primeira etapa, me presenteia com uma borduna e uma flecha, dizendo: "estas armas são as da mata daqui; você me ajudou a pensar nas minhas armas internas para ir para o novo. Obrigado!"

Tupianã me procurou de novo dois anos depois em São Paulo. Dessa vez, me trouxe um jabuti que talhara em pau-brasil, dizendo que as minhas palavras tinham ficado dentro dele "caminhando bem devagarinho, como o jabuti que vive cerca de duzentos anos!"

Pode-se dizer que tais registros feitos por Tupianã têm a ver com o interesse percebido na analista por sua cultura e suas questões e, mais que isso, por uma escuta atenta de sua situação concreta, real, não com um estudo distanciado, talvez teórico de sua vida. Uma consideração importante refere-se às palavras entre analista e paciente. Quando a analista fala de seu medo ou da possibilidade de voltar atrás, ocorre uma primeira ruptura em Tupianã – ele se pergunta se o nome daquilo que sente é também medo. É como se nesse momento ele estivesse sentindo, vendo e escutando: "eu que venho da capital, da civilização e suponho entender das doenças da alma posso lhe assegurar que tenho medo!"

Então, tal medo pode ser simbolizado, o que significa que, se alguém tem medo e este não teve registro nos momentos de inserção na cultura (mãe-pai-escola), isso pode vir a se tornar pânico, suor, batimento cardíaco, menos medo. Sabemos que os registros simbólicos ocorrem na relação entre mãe e filho e que processos não-simbolizados ficariam sem tal inscrição.

A palavra viva, sensorializada, carregada de afeto, pode ter levado Tupianã a iniciar ali na relação analítica a nomeação de seu sofrimento, a liberar a coragem de se apropriar do desejo, percebendo melhor os recursos de que dispunha, representados talvez nos primeiros presentes (borduna e flecha) com os quais agradece à analista: "você me fez enxergar minhas armas internas". Além disso, pode-se dizer que as armas internas têm a ver com a falicidade de Tupianã, como se dissesse: "Você, como mulher, pode acolher meu medo de assumir o falo!"

Um outro aspecto a destacar é o de que a magia da palavra, assinalada por Freud, ocorre em um contexto de escuta intercultural. Eu estava ali impregnada de minha cultura e de meus pressupostos psicanalíticos mas interessada e respeitando a cultura do adolescente, de seu pajé e de seu cacique... Mais que isso, estava disposta a abrir mão de qualquer suposto, desde que o essencial não se perdesse, a saber, a análise e apropriação de sua dor e sofrimento.

Menezes, em uma de suas conferências, lembra que Freud não faz diferenciação entre palavra e afeto. O pai da Psicanálise já havia percebido em suas primeiras pacientes histéricas existir um encadeamento de significações. Se a palavra dita não carrega os afetos que lhe são próprios, não produz a magia da ruptura benéfica, revestindo assim um doloroso vazio. Não é para qualquer um que o doente pode apresentar tal vazio. O próprio Tupianã e seus pais relataram ter ele passado por médicos que lhe disseram que a doença não seria de natureza orgânica. Eles não acreditaram. Consciente ou inconscientemente, Tupianã elegeu alguém que, de alguma forma, também estava em trânsito, disposta a uma escuta intercultural.

O segundo presente que Tupianã traz – um jabuti – talvez represente o trânsito lento de uma cultura a outra e também o trânsito lento e penetrante da palavra prenhe, com miolo afetivo, a interação com a dinâmica de um psiquismo sempre inacabado e pulsante.

A sabedoria do analista está, por vezes, em aparentemente sair da técnica psicanalítica para que a intervenção seja de fato um ato analítico. No contexto analítico, a palavra só é mágica quando absolutamente contextualizada, provinda de uma ampla, efetiva e, quanto possível, irrestrita escuta. Cada contexto tem uma fala própria, absolutamente única e singular.

Ao mesmo tempo, considero que nosso itinerário formativo de tantos anos e a vivência sessão após sessão -- nossa e a de nossos pacientes --, devem ser utilizados de forma mais ampla, atendendo a uma demanda que há muito existe, clamando por um olhar e escuta analíticos.

 

Algumas considerações finais

O trabalho com adolescentes, com os cuidadores (= therapeutês) de adolescentes (ou não), supõe diferentes disponibilidades no analista, destacadas a seguir:

• Ele necessita gostar do que faz – gostar do jovem, do índio, de quem trabalha com ele --, antes mesmo de seu interesse pelas questões teóricas a respeito das transições pelas quais eles estão passando.

• Uma abertura para viver os mitos, fantasias, terrores e paixões do adolescente sem sucumbir a eles, sem com ele se confundir, mantendo o setting analítico: o "divã e a "poltrona" que integram e discriminam a dupla, ainda que se encontrem debaixo de um pequizeiro!

• Capacidade de enfrentar a gangorra de seus mecanismos de defesa travestidos ora como deuses poderosos, musas sedutoras ou espiões desconfiados, ora como monstros primitivos e arcaicos, cujo terror e angústia assusta a ambos.

• O trabalho com adolescentes (e com seus cuidadores) mobiliza no analista relações contratransferenciais fortíssimas: eles nos acolhem, nos rejeitam, nos enfrentam e ridicularizam e... nos amam apaixonadamente! Ou seja, mobilizam intensamente tudo o que de nosso adolescente ou de nossa criança está bem (ou mal) resolvido. Dizendo de outra forma: o trabalho com a adolescência leva o analista aos campos mais diversos de sua mente, alguns visitados em sua própria análise, outros não! Daí a necessidade de constante aggiornamento em sua análise pessoal.

A magia da palavra assinalada por Freud ocorre, como vimos, em um contexto de escuta intercultural. Antes de mais nada, é preciso ouvir e saber muito da vida do adolescente que nos procura, saber da realidade da favela, da instituição ou da periferia, da aldeia indígena ou de qualquer outra praia: seus costumes e saberes; códigos, rituais e mitos; todo seu vasto mundo de relações... para depois traduzir o que se passa em seu universo psíquico em uma linguagem carregada de significado(s).

Afinal, Tupianã, Ciça e Lu são histórias verídicas e também metáforas de outros trabalhos que só puderam ser realizados devido à utilização do referencial psicanalítico, somados à busca por uma abordagem interdisciplinar -- antropologia, etnopsiquiatria, psicodrama.

Mais próximos ou mais distantes, existem por aí milhares de grupos-aldeias e pequenas cidades, nas quais vivem muitas crianças-jovens-pessoas em desenvolvimento, como Tupianã, Ciça e Lu. Ainda, milhares de escutas possíveis e não realizadas. Caberia a questão: temos a coragem de, também nós, realizarmos essa transição e trilharmos outros espaços analíticos? Teríamos a coragem de ir ao encontro de tais caminhos, tateá-los, desvelá-los, descortinando, como em um caleidoscópio pulsante, diferentes dimensões e aplicações da Psicanálise?

 

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. "Tratamento psíquico (ou mental)". In: _____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

HERRMANN, Fábio. O divã a passeio. São Paulo: Brasiliense, 1997.

_____. Introdução à teoria dos campos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

NATHAN, Tobie. La folie des autres – Traité d'ethnopsychiatrie clinique. Paris: Dunod, 1986.

_____. Médecins et sorciers – Manifeste pour une psychopathologie scientifique. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1995.

MENEZES, L. Carlos. "A transferência entre rememoração e repetição: a linguagem e a sugestão na análise." Texto mimeografado.

 

 

ENDEREÇO
Rua Antero Mendes Leite, 155
SÃO PAULO – 04008-020
Fone/fax (011) 5571.6574
E-mail: arvolpe@uol.com.br

 

 

1 Nomes dados são fíctícios.