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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Humilhação social, violência e construção de identidade do jovem brasileiro. Crueldade como espetáculo
Marisa Feffermann
Era uma guerra onde só sobrevive quem atira, quem encontra seus, quem trafica, infelizmente um vive ou não..., só respeita com um revolve, e aí o juiz ajoelha, executivo chora para não sentir o calibre da pistola, se eu quero roupa e comida alguém tem que se..., vou enquadrar... e atirar para matar, vou fumar seus beques, ficou bem louco, nunca cheirei..., não adianta, se eu tiver... com o meu cano na garganta, aí não tem gambé para negociar, liberta a vítima, vamos conversar, vai se ferrar, é hora de me vingar, ...alguém tem que chorar (Jovem 4).1
Estes jovens convivem cotidianamente com a violência; a especificação da violência existente na vida deles está associada a alguns fatores que são discutidos a seguir: o crack, por seu característico, sua potência e elevado grau de produzir dependência, impulsiona os usuários a todo o tipo de atitude a fim de obterem a droga; a polícia, como agente representante do Estado, em muitos casos não cumpre o seu papel de controlador, perante uma lei que deveria servir, mas age de forma corrupta e cruel; o tráfico de drogas, nas disputas entre pontos-de-venda, ou nos castigos exemplares e, ainda, violência produzida desses jovens - vítimas, mas muitas vezes algozes - produz cenas que explicam a imagem que a indústria cultural impõe a eles a cada momento. O medo, o suborno, a corrupção são discursos que permeiam esta realidade. Na verdade, são os mecanismos discursivos do crime e do poder.
Alguns jovens mudam de atitudes quando se tornam dependentes, e são capazes de cometer todo tipo de infração para conseguir dinheiro para suprir a necessidade; as histórias são inúmeras, que se imiscuem com um sistema repressor que utiliza as próprias leis para a resolução de problemas encontrados. O jovem usuário age de forma descontrolada, não percebendo os perigos que pode ocasionar:
A questão do vício, principalmente de crack , é um problema que os jovens enunciam em todos os discursos. Os usuários deixam tudo, objetos pessoais, utensílios de casa. As pessoas viciadas geralmente têm vida curta, morrem de doses excessivas, por dívida ou por roubar a droga da boca. O crack, como produto, reafirma a lei do consumo, e o usuário abusivo de droga, denominado toxicômano, muitas vezes, ao procurar negar o estabelecido, reforça-o em todas as suas atitudes, inclusive a manutenção de uma indústria de grande rendimento.
A atuação da polícia é outro fator gerador de violência na realidade dos jovens que ‘trabalham’ no tráfico de drogas. A violência é legítima somente quando empregada por grupos específicos controlados pelo Estado – a polícia e as Forças Armadas são autorizadas a portar armas sem risco de punição e, mesmo autorizadas a usá-las em certas situações; pois têm o monopólio da violência física.
A polícia, como representante do governo, deve, portanto, garantir a lei e a segurança, mas nas relações com os jovens traficantes, a verificação deles ocorre de outra maneira, em razão do contato constante com policiais corruptos, que fazem artimanhas para ter aumento da sua renda mensal.
O lugar que deveria garantir as leis se imiscui com o lugar do crime, transgridem-se as normas estabelecidas que deveriam ser aplicadas para combater o crime. Nesta relação, o tráfico de drogas se perpetua, pois quem lucra com a atividade ilícita, não é só o traficante, mas o representante legítimo do discurso dominante. O ato de matar, pela polícia, está imbuído de um desejo e de uma transgressão, pois se os jovens são inscritos como foras-da-lei, ao representante da lei é permitido apenas prender, encaminhar para os órgãos competentes e não maltratá-los, isso seria o procedimento caso se agisse segundo a lei que rege as relações oficiais da nação. Como representante da instituição, cabe à polícia observar o que está sendo transgredido, prender se houver provas, e encaminhar para os órgãos competentes. Na realidade, isto não acontece, ou não acontece de modo majoritário.
As "leis" são estabelecidas pela policia, que faz justiça pelas próprias mãos. Nos discursos dos jovens são descritas atrocidades, todos devem se proteger da polícia, e assim vivem como inimigos.
Numa situação de confronto seria permissivo atirar, para se defender. Vive-se em uma situação, no entanto, na qual a polícia não pode poupar o inimigo. O traficante é o catalisador de todas as injustiças que a polícia sofre: ao deter o jovem, descarrega-se a raiva que se tem em relação às condições de trabalho, ou a falta delas, despeja-se o medo, e o risco que se corre ao trabalhar, e assim, como os jovens, a polícia está numa situação vulnerável. Ao espancar e/ou matar estes jovens, exterminam o que eles representam. Neste momento, a polícia sai do lugar de oprimido e de dominado, e pode realizar suas atitudes pelo lugar do dominante, de quem dita as regras que devem ser obedecidas.
A polícia ao ser responsabilizada por todos os problemas que ocorrem no sistema repressor, se vinga no jovem, dirigindo para ele toda raiva que não pode ser extravasada de outro modo.
Nas narrações, os jovens demonstram que devem estar o tempo todo submetidos à autoridade da polícia, que deveria garantir a lei e a segurança, e qualquer vacilação implica em uma resposta agressiva, que corresponde ao possível desrespeito.
O policial, apesar de muitas vezes pertencer à mesma classe social de alguns dos jovens e, portanto, submetidos às mesmas agruras de uma sociedade injusta, no momento que estão fardados, ou com uma arma legítima, exercem o lugar de representantes do Estado, ou seja, ocupam o lugar de dominante. Segundo as narrativas, quando os policiais matam, agem de forma perversa. O que significa isso, depois de muitos tiros, os jovens já mortos, qual a necessidade de atitudes tão cruéis? Atitudes que carregam toda raiva e ódio que sentem por este grupo. Quando, no Capítulo quarto, foi apresentado o discurso dos representantes da lei, ficou patente a impotência deste grupo de autoridades diante do tráfico de drogas, o fracasso perante o problema. O policial, ao agir desta maneira, muda a situação, vira vencedor. Estes policiais estão aniquilando aqueles que poderiam assassiná-los. Segundo a perspectiva da polícia, se o jovem é solto, poderá matar policiais. Configura-se uma guerra em que se o inimigo não for destruído, o jovem, em resposta, assim procederá, isto é, se o inimigo for poupado, ele poderá aniquilar.
Na guerra do tráfico, o jovem que ‘trabalha’ no tráfico não é apenas um transgressor, está caracterizado como inimigo da polícia. A perversidade se revela pelo modo que a polícia atua: atira, dá machadada, amordaça, joga no rio, corta os pulsos. Age de forma espetacular, e isto é aceito como violência legítima. A indústria cultural constrói imagens destas cenas, tornando espetáculo, a realidade sofrida destes jovens vivem na periferia.
Os policiais agem ou por força das armas, ou da corrupção. Imprime-se uma relação de medo diante dessa inconcebível brutalidade. Está-se diante de uma desordem, ou de uma ordem que garante a manutenção do sistema vigente. A polícia é representante de uma instituição de governo; no entanto, faz acordos com os traficantes, de sorte que se torna ilegítimo o lugar do Estado, considerando que a polícia é a referência que estes jovens têm do Estado. Os jovens assim têm a representação do Estado como repressor e corrupto. Assim, a periferia é identificada como inimiga da cidade, e os jovens que ‘trabalham’ vendendo as drogas, seu representante. Os policiais tornam-se porta-vozes da defesa ideológica em relação ao bem comum da cidade, e quiçá da humanidade. Os policiais, em analogia com outro momento histórico, a Segunda Guerra Mundial, "saem a pilhar e constroem uma ideologia grandiosa para isso, e falam disparatadamente da salvação da família, da pátria, da humanidade".2
Estamos diante de uma polícia que utiliza o poder para instaurar o medo como forma de controle. Estes policiais, de um lado, pelo discurso do poder, e os seus superiores hierárquicos, se tornam responsáveis para tratar de todas as mazelas existentes no sistema de controle; de outro, depositam toda esta opressão nestes jovens, que personificam o seu fracasso. O policial demonstra ter muita raiva também desse Estado porque ele não lhe proporciona condições materiais, não valoriza o seu trabalho, não lhe fornece condições de atuar, e ainda coloca a sua vida em risco constantemente, porque está tanto em risco quanto aquele jovem.
A polícia sabe onde estão localizados os pontos-de-venda, mas ao realizar um interrogatório, agem de forma violenta com os jovens. Os policiais agridem os jovens para que digam onde é o ponto-de-venda, o seu é o dono e onde ele esconde as drogas.
Estes policiais atuam sob suas próprias "leis", fazem justiça com as próprias mãos. O modo como um jovem foi morto denuncia a crueldade realizada nas ações policial, porque o corpo fora atingido por balas, pulsos cortados, amordaçado, jogado no rio; é uma atitude de barbárie, realizada por um representante da justiça, esquecendo-se de que o princípio básico da justiça é o de que todo cidadão tem direito a um julgamento justo.
Jogaram dentro de um rio, mataram no mutirão, e arrastaram até o rio, chegaram no rio: deram mais umas pauladas para ele morrer e cortaram os dois pulsos, dos dois, cortaram aqui também, sei lá, para morrer mais rápido ainda aqui, a veia que manda para o coração (Jovem 5).
Materializa-se, nesta cena, raiva e ódio extremados: é preciso aniquilar, exterminar. Matou, por raiva, e depois apedrejou, deu paulada, parece que não se acaba de matar nunca. Deposita-se naquela pessoa tudo o que ela representa, inclusive a fragilidade do policial, a corrupção.
Os policiais sabem que a Justiça é morosa: assim, se prendem um jovem, ele acaba voltando para casa. Nesta situação de impotência, mata-se um dos jovens como se aniquilasse a todos. É ódio, sabem que podem ser mortos pelos jovens , são orientados para matarem estes inimigos.
A polícia atua de forma muito agressiva e arbitrária: não há justiça, e o jovem prefere ser preso do que ser maltratado pela polícia:
A relação entre a polícia e algumas pessoas que trabalham no tráfico é de favores; de um lado o policial recebe para não atrapalhar a venda dos traficantes, de outro, algumas vezes, o responsável pelo trato quando precisa de dinheiro pede para os policiais.
A arbitrariedade da polícia está presente em quase todos os discursos. Mas a magnitude de crueldade pode ser analisada no seguinte fato
Cenas de humilhação e de demonstração de poder são constantes. A humilhação e a crueldade são os aspectos que mais incomodam estes jovens, e muitas vezes, um dos motivos do desejo de sair do tráfico.
Os jovens sabem que podem ser mortos e é por isso que há medo da polícia, medo do sofrimento que o confronto com a polícia provoca. Têm medo de apanhar, medo da submissão, da sujeição, da humilhação, do sofrimento, da tortura.
Há um efeito decorrente da lei do tráfico, do poder. Não é o respeito por uma lei, não é que esse policial representa uma lei, uma ordem, uma organização. Estes jovens têm respeito pela "lei do tráfico", não pela lei que os ‘excluiu’.
Os policiais utilizam armas que não estão registradas oficialmente para eles, para matarem os jovens, para que não sejam identificados.
Há policial que aceita dinheiro, e o que não aceita, e há aquele que entra no ilícito, mas existe o que não faz acordo, vai matando de vez.
As experiências de crueldade da polícia com alguns jovens que não necessariamente estão transgredindo as normas provocam reações agressivas, como por exemplo o porte de armas: "eu ando com a minha arma aqui, se alguém me bater ou me catar, eu vou simplesmente vou atirar, não vou apanhar de besta mais, eu já cansei de estar apanhando sem razão..." (Jovem 9)
3.2. O traficante
A violência e a força são as formas de se resolver os problemas entre os envolvidos no tráfico. Assim, a polícia não é a única causa de risco também. O risco, na verdade, surge da instituição policial e do comércio de drogas ilícitas. Estes jovens estão sob estas relações, estão inseridos, fazem parte do tráfico, e percebem, de modo agudo, a violência da polícia. As regras do tráfico, como apresentadas anteriormente, são nítidas, e as punições também; na lei da sociedade atual também são explícitas, com legitimidade em documentos, mas a realidade demonstra o quanto não é concretizada.
As punições espetaculares, em conseqüência de um ato de um jovem que trabalha no tráfico, ou mais freqüentemente por causa de um usuário que desrespeitou o poder do chefe, um característico desta realidade, são exemplos que se procurou expor no decorrer deste trabalho.
O confronto, o desprezo pela polícia, o descrédito em relação ao papel da polícia, se conjugam de forma astuciosa, sempre se buscando burlar as regras e garantir a hegemonia
Esses jovens buscam o tráfico para sair do lugar comum, procuram reconhecimento, uma forma de estarem inseridos, mas o lugar encontrado já está marcado, não pelo desenvolvimento da individualidade, mas pela manutenção de clichês nos quais as relações mantêm-se pela mesma lógica do capital, que acirram e tomam à força um espetáculo às vezes diluído nas relações formais de trabalho.
Alguns devem ser sacrificados, para que o jogo permaneça, e geralmente são os meninos vendedores, uma vez que são apenas a "bucha de canhão".
As formas de resolver os conflitos entre os traficantes são próprias, os encaminhamentos também. Quando matam, precisam esconder os corpos em algum lugar, há sempre um terreno baldio, ou uma mata, disponíveis, que servem para se livrarem de corpos das pessoas assassinadas pelos traficantes.
A situação do tráfico e principalmente dos jovens inseridos no tráfico pode ser refletida com base nesta assertiva de Adorno e Horkheimer (1985, p. 159): "Na medida em que agridem cegamente e cegamente se defendem, perseguidores e vítimas pertencem ao mesmo circuito funesto".
A polícia, traficantes e, por conseqüência, estes jovens, são protagonistas deste circuito, que alterna convivência e conflito. A presença da polícia quebra o equilíbrio do cotidiano do tráfico, mas garante o círculo vicioso, a atuação da polícia implica em mobilização.
A violência se mantém porque é internalizada pelos sujeitos que a sustentam.
As especificidades do tráfico de crack, da polícia paulistana e dos traficantes imbricam-se, constituindo um cenário de vários protagonistas em que a violência é a trama que entrelaça todos os personagens que de fictícios só há sua representação em letras, sem correspondência às iniciais dos nomes, pois como já explanado anteriormente, é preciso preservá-los e garantir a sua segurança contra a violência.
Outro fator, que acontece em conjunto com este processo, é o roubo. Alguns dos jovens entrevistados ‘trabalham’ no tráfico e roubam/assaltam muitas vezes, como pôde ser apresentado, para sustentar o próprio vício e por vários outros motivos.
Na verdade, o tráfico de drogas, por seus característicos de indústria de muito rendimento, tem como finalidade apoiar, segundo os entrevistados, outros crimes. Especialmente a aquisição de armas de fogo. O tráfico age como um banco para outros crimes.
Muitos jovens que traficam, fazem roubos; apesar de igualmente constituírem transgressões têm característicos muito diferentes. No roubo, os jovens saem do seu ambiente, e se introduzem em outro, tornado-se mais vulneráveis. Roubar é muito arriscado, há rapazes que só trabalham no tráfico: "o artigo de tráfico é mais forte, mas assalto à mão armada é mais embaçado, que é na hora, ali..." (Jovem 3).
Algumas vezes, o jovem que está ‘trabalhando’ no tráfico, resolve roubar: "Porque....o cara já tá desandado, tá nem vendo, não liga pro que vai acontecer, quer que se dane, vai traficar e dá a doida no cara... Vai traficar e é doidão assim, não quer nada da vida, dane-se, agora eu vou levantar dinheiro, só que é nessa aí que o cara se perde"( Jovem 2).
O tráfico envolve muitas pessoas, o roubo é individual, ou, no máximo, com um grupo pequeno. Assalto não tem regra, é solitário. Segundo os entrevistados, roubar traz mais emoção, "adrenalina". Nos dois casos é necessário atenção contínua, considerando que são transgressões, e a qualquer momento pode aparecer a polícia, disfarçada, e agir de modo cruel como se apresentou: "mas roubar já deixa mais em pânico, não é mano, roubar o coração já acelera mais" (Jovem 11).
A crueldade dos jovens surge como resposta à humilhação. Vivem e vêem o contraponto, o da ostentação, e reagem de forma ainda mais pérfida, pois eles não conseguem se identificar com os sujeitos que estão sendo roubados. A realidade os obriga a ter destemor, muitas vezes são estas desigualdades, a ostentação e a crueldade, que os colocam em confronto com a sociedade; nestas horas transgridem, e até matam.
São histórias que mostram como os jovens se submetem e subjugam a outros sujeitos. É um jogo de poder, pelo poder. As relações ocorrem pela dominação; que é suscitada pelo medo. O antídoto para isso só seria possível se houvesse identificação entre os indivíduos na sociedade atual. Na ausência de projetos sociais compartilhados, o sujeito encara o outro apenas como objeto.
Adorno (1994) discute que a incapacidade de identificação foi a principal condição psicológica para que a Auschwitz pudesse acontecer. Os comportamentos ora apresentados, reforçam esta posição:
O silêncio frente ao terror foi apenas a sua conseqüência. A frieza das mônadas sociais, do concorrente isolado, foi como indiferença ao destino dos outros, a condição para que bem poucos tivessem se agitado. Disso sabem os algozes; isso eles testam repetidamente (Adorno, 1994, p.43).
No contexto desta pesquisa percebe-se as conseqüências quanto à incapacidade de identificação. A identificação que não ocorre entre indivíduos. Na realidade apresentada, o indivíduo pode ser destruído até como fonte de prazer. Os indivíduos isolados, como mônadas, não conseguem reconhecer-se no outro.
Os sentimentos de humilhação podem gerar a revolta, em relação ao sistema social vigente, associado à ausência de reconhecimento social, possibilita a estes jovens a prática de ações cruéis, nas quais são capazes de colocar-se em risco para conseguir os objetivos desejados. A violência, no tráfico de drogas, institui-se como um dos fundamentos para sua manutenção e expansão.
1. Versão do Jovem 4 cantando um rap do grupo musical Facção Central.
2. Adorno e Horkheimer (1985:160).