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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Evasão escolar na adolescência: necessidade ou ideologia?

 

 

Cláudia Alaminos

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo -Programa de Pós-Graduação - Mestrado São Paulo – SP

 

 


RESUMO

Este trabalho abordará a educação como um direito de toda a criança ou adolescente e as causas de abandono da escola por jovens com características que fogem à norma vigente. A "Educação para todos" preconiza que a educação é um direito de toda pessoa sem que suas características pessoais como gênero, raça, religião, condição econômica ou deficiências sejam impedimento para que este direito seja desfrutado. Indagamo-nos sobre as causas do abandono da escola por parte dos jovens e a pesquisa sobre o tema nos levaram a pensar em causas diversas das usualmente tidas como responsáveis pela saída dos jovens da escola, relacionadas às dificuldades econômicas enfrentadas pelas famílias. Discutimos então, se a saída dos jovens da escola, em sua maioria os pobres, não se deve a concepções ideológicas que minimizam a importância e a necessidade de escola para quem possui diferenças em relação à normalidade e à expectativa vigentes.

Palavras-chave: evasão escolar; direitos humanos; ideologia; preconceito.


 

 

1) Introdução

Tenho trabalhado como fonoaudióloga clínica por 16 anos. O atendimento de pessoas com algum tipo de deficiência permitiu a minha aproximação do paradigma da Inclusão Escolar e a vivência, com essas pessoas e seus pais, das dificuldades de inserção na escola regular, apesar dos documentos internacionais e da legislação brasileira serem bastante específicos e favoráveis à inclusão.

Esta experiência advinda de minha prática deixou de ser uma contingência e, ao tornar-se um tema de estudo, culminou com a tomada da Inclusão Escolar como objeto de pesquisa e o meu ingresso no Mestrado em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

A Inclusão Escolar, por sua abrangência, requer a incursão do pesquisador em temas como Direitos Humanos, Filosofia e História da Educação, Psicologia , Sociologia, entre outros, dependendo da abordagem que seja dada ao trabalho.

Ao tomarmos a Educação como um direito inalienável de todo cidadão, passamos a nos perguntar se a dificuldade de permanência de jovens na escola poderia apresentar causas de cunho semelhante às apresentadas à permanência dos alunos com algum tipo de deficiência nas instituições escolares.

Indagamo-nos sobre as causas da evasão escolar na adolescência e a pesquisa sobre o tema nos levou a pensar em causas diversas das usualmente tidas como responsáveis pela saída dos jovens da escola, diretamente relacionadas às dificuldades econômicas enfrentadas pelas famílias que obrigam o jovem a entrar no mercado de trabalho para complementar o orçamento familiar, como apontam os dados de diversas pesquisas.

Deixamos claro que não contestamos a relação entre a carência financeira e a saída dos jovens da escola. Entretanto, ao focalizarmos a educação de jovens com algum tipo de deficiência, observamos que os envolvidos no processo, educadores e família, muitas vezes não enxergam a necessidade de permanência desses jovens na escola, já que eles não aprendem como os demais.

Discutimos então, a partir dessa constatação, se a saída dos jovens da escola, em sua maioria os pobres, não se deve a concepções ideológicas que minimizam a importância e a necessidade de escola para quem possui diferenças em relação à normalidade e à expectativa vigentes.

Utilizando-nos de obras de diferentes autores, vislumbramos que para além da situação econômica, questões como preconceito, descumprimento tácito das leis e tomada da saída da escola como destino cumprem também um papel crucial na evasão de jovens da escola.

A concepção de Theodor W. Adorno (1971) de que a educação coloca-se contra a barbárie e que esta é resultado da heteronomia de sujeitos que acatam ordens de outrem e as colocam em prática sem refletir, leva à conclusão de que a educação escolar deve ir além da transmissão de conteúdos, deve também privilegiar práticas que possibilitem a construção da autonomia pelo educando na adolescência. Daí tem-se que é fundamental para a sociedade e para o sujeito a permanência na escola até o final da juventude.

 

2) A educação como um direito inalienável

Norberto Bobbio (1992) discorre sobre o surgimento e a evolução dos direitos humanos, os quais, interligados à democracia e à paz, formam uma tríade indissociável e interdependente. Em sua elaboração, o autor afirma que esta tríade é responsável pela visão de que o homem tem uma dignidade intrínseca à sua condição humana e que por isso, ele tem direito a ter direitos e, por conseqüência, a existência dos direitos limita a ação do poder vigente. Assim, a vigência de um direito tem como pressuposto a existência de normas que assegurem o seu cumprimento, isto é, cada direito necessita, para sua garantia, um dever.

Dessa forma, possibilitar a justiça e garantir as liberdades fundamentais do homem devem ser os objetivos dos direitos, os quais devem existir em função da sociedade e não em função do poder vigente, para que tanto o desenvolvimento individual quanto o coletivo sejam garantidos.

De acordo com Cury (2002), o direito à educação, previsto em lei, surge no final do século XIX e início do século XX na Europa. No Brasil, o ensino fundamental é tido como um direito reconhecido em 1934 e como um direito público subjetivo1 a partir de 1988. É inegável que este direito caminhe em direção à diminuição das desigualdades sociais e da discriminação, especialmente das classes social e economicamente menos privilegiadas.

Ainda de acordo com Cury, como os anos passados na escola são responsáveis por uma dimensão que funda a cidadania, os países que têm políticas que visem a participação de todos nos espaços sociais, políticos e de trabalho apresentam disposições legais que instituem a educação como um direito inalienável, pois essa participação só pode ser realizada por cidadãos.

Ao analisar a trajetória dos direitos, utilizando como referencial teórico cidadania, classe social e status, de Thomas Marshall, Cury refere que os direitos civis se estabeleceram no século XVIII, os políticos no século XIX e os sociais no século XX. Os diferentes tipos de direito são concebidos lentamente e cada direito surgido é agregado ao grupo dos anteriores e, por essa evolução lenta e gradativa, podem ser considerados como tesouros da humanidade e, por conseguinte, não é cabível que alguém não tenha a possibilidade de herdá-los. Segundo Marshall (1967, in Cury, 2002) a educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil e, por conseguinte, um pré-requisito para o exercício de outros direitos.

Como uma conclusão possível do que abordamos até aqui podemos dizer que características pessoais não podem ser consideradas impedimentos para que o direito à educação seja desfrutado, uma vez que o direito à educação se pauta numa igualdade básica entre todos os seres humanos, igualdade essa da qual se nutriram as teorias e os movimentos de cidadania e de democracia do século XX.

No entanto, segundo Bobbio (1992:43): "O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político". Assim, justificamos a abordagem da evasão escolar na adolescência como um problema ideológico. Trataremos aqui da concepção de ideologia formulada por Althusser (1985) que a trata como um mecanismo de sujeição. Albuquerque, no prefácio da obra Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, 1985) expõe de maneira clara quatro pressupostos fundamentais que relacionam ideologia com as instituições. São eles: as ideologias não devem ser estudadas enquanto idéias, mas a partir de sua existência material que gera práticas de reprodução das relações de produção; a ideologia tem o efeito de reconhecer a necessidade da divisão do trabalho e do modo "natural" de designar o lugar dos sujeitos na produção; a ideologia, através da sujeição, leva o próprio sujeito a reconhecer, como seu, o lugar determinado para si na cadeia de produção; a postulação da existência da sujeição através de práticas observadas em instituições concretas denominadas aparelhos ideológicos de Estado que têm como objetivo a reprodução das relações de produção, isto é, das desigualdades. Althusser ainda classifica a escola como o aparelho ideológico de Estado dominante pelo fato dela receber crianças de todas as classes em sua idade mais vulnerável ao inculcamento de valores ideológicos.

 

3) Evasão escolar na adolescência para além das questões econômicas

Usualmente toma-se como justificativa para a saída dos jovens da escola as dificuldades econômicas familiares, que obrigam o jovem a exercer alguma atividade remunerada para auxiliar no orçamento doméstico.

É óbvio que num país de desigualdades como o Brasil, no qual muitas famílias vivem em condições de miséria, há grande probabilidade de um jovem ver-se obrigado a buscar meios de subsistência em detrimento da continuidade de sua vida escolar. Esta é uma situação incontestável mas será que a situação é simplificável a este nível? Há uma relação biunívoca entre necessidades econômicas e evasão escolar sem que outros fatores sejam postos em causa? Ao lidarmos com a inclusão escolar de pessoas com algum tipo de deficiência também nos deparamos com a retirada dessas pessoas da escola, especialmente ao saírem da infância, a partir de justificativas que passam longe das causas econômicas. Observamos que os envolvidos no processo, educadores e família, muitas vezes não enxergam a necessidade de permanência desses jovens na escola, já que eles não aprendem como os demais. Constatamos, assim, que características pessoais têm sido impedimento para que o direito à educação seja desfrutado.

Apesar da legislação e das inúmeras pesquisas acadêmicas sobre a inclusão, na prática encontramos enormes dificuldades em implantá-la. E as justificativas são as mais variadas, como as seguintes: esta não é a escola mais adequada para ele, eu não sei como ensiná-lo, ele veio sem diagnóstico, ele é muito limitado e ao mesmo tempo é tão esperto que só faz o que quer, ele já está muito grande para ficar na escola; entre diversas outras.

Ao ampliar o nosso olhar sobre a existência de jovens fora da escola, sem nos fixarmos nos deficientes, observamos, para nossa surpresa, a mesma situação, o fato de que características pessoais também são impedimento para que o direito à educação seja desfrutado pelos jovens.

Ao refletirmos sobre as causas da evasão escolar nos deparamos com questões relativas ao preconceito. Discutimos então, a partir dessa constatação, se a saída dos jovens da escola, em sua maioria os pobres, não se deve a concepções ideológicas que minimizam a importância e a necessidade de escola para quem possui diferenças em relação à normalidade e à expectativa vigentes.

Os pobres e os negros, assim como os deficientes, aprendem como os demais? Para que permanecer na escola se eles não irão disputar vagas nas melhores universidades e nem irão ocupar cargos de destaque no futuro?

Crochík (1997:17), ao tratar do preconceito preconiza que: "Não vemos a pessoa que é objeto de preconceito a partir dos diversos predicados que possui, mas reduzimos esses diversos predicados ao nome que não permite a nomeação: judeu, negro, louco, etc." Além disso, no momento em que a presença de alguém nos remete a algum dos predicados, colocamos em ação um ritual no qual temos as mesmas reações estereotipadas frente àquele objeto, que são a base do comportamento preconceituoso e que justificam a dominação dos "inferiores" e a sobrevivência ou o poder dos mais aptos.

Consideramos que a questão do preconceito esteja intimamente vinculada à saída dos jovens da escola pois, mesmo tendo que trabalhar, podemos nos perguntar o porque destes jovens não continuarem seus estudos em horários compatíveis com o trabalho.

O que nos pareceu, numa primeira reflexão, é que ao abandonar a escola, o próprio sujeito toma para si o discurso do preconceituoso. Algo que foi confirmado teoricamente por Crochík (1997) ao afirmar que não é por acaso que, na maioria das vezes o preconceito se volte contra os frágeis e que as próprias vítimas do preconceito introjetem a debilidade que lhe atribuem.

Tal fato nos remete ao conceito de destino, amplamente utilizado no senso-comum como um futuro pré-estabalecido do qual não se pode fugir. A esse respeito Freud (1929) no texto O Mal-Estar na Civilização, postula que o destino, para a psicanálise, é encarado como substituto do agente parental, ou seja, uma vontade superior contra a qual não adianta lutar. Ao assumir que sua vida é definida pelo destino, um sujeito deixa de tomar as rédeas das circunstâncias e dos fatos de sua vida e delega a um agente parental imaginário a responsabilidade pelo que lhe ocorre. A definição psicanalítica nos leva a retomar a concepção de Adorno (1971), já citada na introdução deste trabalho, de que a barbárie, que tem como pano de fundo o preconceito, é resultado da heteronomia dos sujeitos que a praticam, os quais obedecem sem refletir ordens de outros sujeitos ou de entidades imaginárias como o "destino". Verifica-se assim que há uma naturalização de situações e atitudes que são culturais e ideológicas. Assim como na Segunda Guerra, para os nazistas, era natural e plenamente concebível enviar judeus para as câmaras de gás, ainda hoje, é tomado como natural e justificável o abandono da escola por jovens que não pertençam às classes dominantes. Trata-se igualmente do "cumprimento de destinos", que por vezes justifica o descumprimento tácito de leis e a negação de direitos aos que fogem à norma vigente.

Hannah Arendt (1954) propõe que espontaneamente a educação "peleja" para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças. Que a educação está em busca do aluno ideal que deve situar-se dentro de determinados parâmetros. Podemos, então pensar que nesta luta pela almejada igualdade, quem se apresenta diferente deve se igualar ou então corre o risco de ser eliminado do sistema. Algo com que concorda Bittencourt ao discorrer sobre a avaliação escolar (2004 in Gallo e Souza, 2004:7,8): "...Ao modo civilizado da escola vai medindo e normalizando os que conseguem permanecer, dispensando os outros. Essa herdeira do tecnicismo e do taylorismo, jóias preciosas criadas pelo capitalismo, não consegue esconder suas origens, mesmo tendo sido desenvolvida pela escola, instituição símbolo da sociedade republicana. Ela tem o mérito de excluir, responsabilizando o próprio excluído que passa a colecionar classificações e busca cumprir o modelo, para que sabe um dia deixar de ser o outro".

Isso torna o direito à educação um paradoxo pois, se para desfrutá-lo, o sujeito tem o "dever" de apresentar-se de acordo com os padrões pré-estabelecidos, a existência dos direitos em função da sociedade e não em função do poder vigente enunciada por Bobbio (1992) ainda não teve uma aplicação cabal ao menos no que diz respeito ao direito à educação. Podemos observar semelhanças com a conhecida frase do livro A Revolução dos Bichos (ORWELL,1945) "Todos são iguais mas uns são mais iguais que os outros".

 

4) Considerações finais

Ao aceitarmos a proposta de Althusser (1985) de que a escola é um aparelho ideológico de Estado e que portanto é produtora de um assujeitamento dos indivíduos que por ela passam, isto é, a escola enquadra os seus alunos nos parâmetros determinados pela ideologia vigente, podemos nos perguntar com Gadotti, Freire e Guimarães (1985) se o trabalho do educador é realmente intelectual quando ele é mero reprodutor e executor de atividades planejadas por outrem. Os autores, na mesma obra (1985:78), nos levam a refletir sobre que resposta dar à indagação anterior com a seguinte afirmação: "Se o que a classe dominante espera da escola é a preservação do status quo (...), a escola se dá também, independente do querer dominante, a outra tarefa que contradiz aquela. Tarefa do desvelamento do real".

Podemos questionar, sem no entanto contradizer, se o abandono da escola pelos jovens se dá por questões predominantemente econômicas. Após a nossa incursão teórica podemos afirmar que além das necessidades econômicas são colocadas em causa questões ideológicas que indiretamente (ou nem tanto) colocam os jovens para fora da escola.

Enquanto a sociedade se calar frente à destituição subjetiva que é destinada aos que diferem do modelo esperado, enquanto a falta de identificação com a humanidade de cada pessoa impelir à indiferença pelo que ocorre com cada um na sociedade e, principalmente, enquanto aos que é dada a possibilidade de autonomia a utilizarem apenas em interesse próprio sem que se esboce o menor investimento na mudança da ordem social, teremos uma perpetuação e até um agravamento das circunstâncias delimitadas por este trabalho no que diz respeito ao abandono da escola.

No entanto, se a educação assumir a ótica do oprimido ao exercer sua função emancipadora que visa a construção da autonomia do educando e, entendendo que a adolescência é o momento privilegiado para que isso aconteça, teremos como o melhor desfecho possível, tanto para o sujeito quanto para a sociedade, a permanência das pessoas na escola até o final da juventude.

 

5) Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. (1971). Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, 3ª edição.

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, 2ª edição.

ARENDT, Hannah (1954). Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, 5ª edição.

BOBBIO, Norberto (1992). A Era dos Direitos. Rio de Janeiro:Elsevier Editora, 2004.

CROCHÍK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial, 1997.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à Educação: direito à igualdade, direito à diferença. In Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/2002.

FREUD, Sigmund (1929). O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2002.

GADOTTI, Moacir, FREIRE, Paulo e GUIMARÃES, Sérgio (1985). Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez, 1986, 2ª edição.

GALLO, Sílvio e SOUZA, Regina Maria de (orgs.). Educação do Preconceito: ensaios sobre poder e resistência. Campinas, SP: Editora Alínea, 2004.

ORWELL, George (1945). A Revolução dos Bichos. São Paulo: Editora Globo, 2000.

 

 

1 O direito público subjetivo é aquele que o Estado tem o dever de atender. No caso da educação, o Estado tem o dever de garantir a todos os cidadãos o cumprimento dos anos de escolaridade obrigatória e, caso não cumpra, poderá sofrer ações jurídicas que o obrigarão a respeitar tal direito protegido.